Passamos a vida a dizer que “o coração tem razões que a razão não admite”. O que se compreende. Afinal, quando olhamos para algumas das nossas escolhas e para as consequências que acabaram por ter, em vez de nos darmos à coragem de perguntar onde é que estávamos com a cabeça quando as levámos por diante, o melhor que conseguimos é, mesmo, fazermo-nos de vítimas. E dizer que não estávamos em nós. Que decidimos com o coração. E que os sentimentos nos traíram.

A nossa relação com os sentimentos talvez não seja, digamos assim, um dia de sol. Regra geral, aprendemos a pedir desculpa quando falamos “com o coração”. E “cairmos em nós” passa por se reconhecer que para sermos honestos para com aquilo que sentimos, às vezes, é preciso um tropeção ou um percalço. Aliás, esta relação com aquilo que se sente alimenta tantos mal-entendidos que, por exemplo, há muitas mulheres que quase “garantem” que os homens, de tão “racionais”, parecem não ter sentimentos. E os homens, nas suas piadolas sexistas, dão a entender que as mulheres, de tão efusivas com os seus sentimentos, “não pensam”. Como se isso de sermos razão e coração fosse mais um slogan eleitoral que uma janela com que todos pensamos a vida.

A verdade é que os sentimentos nos organizam os ritmos biológicos. “Costuram” o equilíbrio do corpo. Dão os pretextos que nos “obrigam” a pensar. São a ponte que liga corpo e pensamento. E ajudam a perceber que pensar “de cabeça quente”, ao contrário daquilo que se diz, faz-nos ir mais longe e pensar melhor.

Por isso mesmo, é muito estanho que o mundo – que “vende”, como nunca, a vida saudável, a alimentação saudável, o exercício físico e a ideia de que “o que é biológico é bom” – continue a falar dos sentimentos como uma espécie de poluição que temos cá dentro. E, quando se trata de falar dos sentimentos, que se fique pela necessidade de os associar sempre a alguma toxicidade. Como se os sentimentos estivessem para o nosso pensamento ali, algures, entre os animais de companhia, aos quais se põe uma trela, e os animais do circo, que se domesticam, se condicionam e a quem se confere a liberdade, “espampanante”, de quem vive numa jaula. Considerando o silêncio ruidoso dos sentimentos de que não falamos, a nossa vida é, demasiadas vezes, de uma renúncia à palavra que nos adoece e que nos mata. Como se fosse normal sentir e fazer por não sentir. Ou pensar e fazer por não pensar. Vendo bem, os sentimentos são uma felicidade que nos une. Mas a forma como “fugimos” de os conversar parece uma “fatalidade” que nos aproxima.

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Fomos todos muito mal educados para os sentimentos. Muito por força de uma moral judaico-cristã que nos faz – hoje, ainda – separar sentimentos “prescritos” e sentimos “proscritos”. Como se houvesse sentimentos bons e sentimentos maus. Nunca se admitindo que os sentimentos são uma forma sábia e esclarecida de lermos as pessoas e de lhes correspondermos em função daquilo que nos dão. Mesmo quando são maus, sempre que os lemos, todos os sentimentos são bons. Maus, de verdade, são os sentimentos que, mal os sentimos, censuramos e “varremos” para baixo do tapete. A intenção da forma como nos educaram para os sentimentos não terá sido bem essa, mas fomos todos educados para os reservar, para os refrear ou para os iludir. De certa maneira, para sermos falsos. Como se “a fórmula” fosse: quanto menos verdadeiros, mais aceites por todos. Por outras palavras, a nossa relação com a saúde mental é, muitas vezes, uma trapalhada porque a forma como vivemos os sentimentos é muito… atrapalhada.

Mas, como se este modo de vivermos os sentimentos não fosse já um atentado à saúde mental, a psicologia contribuiu um bocadinho para estes mal-entendidos, reforçando a ideia de que aquilo que sentimos (e, de certa forma, aquilo que pensamos) ganha se for controlado. Como se “a palavra de ordem”, considerando o efeito dos sentimentos dentro de nós, tivesse passado a ser reprimir (as emoções), eliminar (o stress) e controlar (a ansiedade). Passando-se, daí, para um vocabulário sedutor  que acaba por representar quase um assédio à omnipotência. Quando incentiva a “auto-ajuda”. Reclama a “auto-estima”. Enfatiza a “auto-regulação”. Elogia a “auto-eficácia”. Ou recomenda o “auto-controle”. É tudo tão “auto”, tão “faça você mesmo”, que parece ser possível sermos felizes racionalizando quase tudo. Como se fosse possível ser feliz sem se sentir. E ser capaz mas não pensar.

Ora, já chega de tomar os sentimentos como perigosos. Se, por hipótese, o coração tem mesmo razões que a razão não admite, das duas, uma: ou a razão sofre de défices de atenção gravíssimos em relação à clarividência dos sinais que “o coração” lhe faz chegar; ou “o coração” é de tal forma impulsivo que não há razão que lhe assista. Porque, não sendo assim, começa a ser altura de “cairmos em nós” e de reconhecermos que sentir é pensar. E que liberdade que isso nos traz!