Há muito que ocupavam aquela casa. Seus pais, tios, avós, bisavós nunca tinham tido poiso fixo. Deambulavam de bairro em bairro, faziam negócio com locais, tentavam sobreviver. Mas nunca verdadeiramente se tinham integrado em nenhum local, nem nunca foram tratados como iguais. Frequentemente eram vítimas de “bullying” e contudo teimavam em viver no seio dos provocadores. Sentiam-se “especiais”. Por serem “especiais” eram perseguidos e por serem perseguidos sentiam-se ainda “mais especiais”. Era um ciclo que se autoalimentava. Porém, esse sentimento, esse orgulho de quem se acha diferente nunca lhes tinha facilitado a vida. Por culpa de terceiros, ou própria, sempre foram vistos e tratados como “os outros”.
A comunidade, em parte por estar saturada deles, em parte como alibi para as suas próprias dificuldades, achou por bem fixá-los numa zona de baldios, uma “zona de ninguém”.
E foi assim que o pai e a família da nossa personagem ocupou aquela casa. Foi-lhes dada por quem, não os tolerando, tinha capacidade de a doar. Foi, contudo, uma doação estranha porque é estranho que alguém dê o que não lhe pertence.
Era uma casa situada numa zona árida, nos arredores da comunidade. Era uma casa numa zona sem recursos. Escasseava água, escasseavam alimentos, mas isso não era o mais importante. Desde o início da ocupação que a casa e terrenos anexos não estavam verdadeiramente devolutos. Abandonada pela comunidade há anos, era o lar de uma “matilha de cães”.
Naquela zona da comunidade os terrenos tinham muitos “cães”. Não se sabe porquê, as origens eram incertas, mas que naquelas bandas havia mais “cães” que pelo resto da comunidade, era um facto. Pensava-se que a presença de “cães” por aquelas raias pudesse ser uma coisa histórica. Ao certo não se sabia, mas seguro era que aqueles terrenos inúteis eram ocupados por uma grande “matilha de cães”, que tratando-se de “cães”, não se lhes reconhecia na altura, nem direitos, nem entidade jurídica. “Cães selvagens” não podiam assim ser proprietários. E aos olhos da comunidade esses “cães” eram selvagens. Junto deles tinha-se sempre receio. Nunca se sabia se deles vinha afeto ou, num rompante, algo com maior agressividade. Aos olhos dos da comunidade e dos novos inquilinos eram “cães selvagens”, e assim deveriam ser tratados.
E assim foram tratados! Primeiro por medo, depois, para se ter terrenos sem “cães”, criaram-se obstáculos à sua circulação. Uns físicos, outros funcionais, outros ainda psicológicos, o certo é que ao longo dos anos os obstáculos edificados remeteram aquela “matilha de cães” para espaços cada vez mais confinados. Havia mesmo quem dissesse que o poiso certo deveria ser um “canil” a céu aberto.
Todos nós já vimos “animais selvagens”. Se há coisa que reconhecemos nos “animais selvagens” é que precisam de espaço para serem selvagens. Necessitam de espaço, e necessitam de ser selvagens. Têm falta de paisagens a perder de vista, áreas onde possam marcar a sua territorialidade, áreas onde repousar e defender a sua prole, áreas que possam legar aos descendentes para que o ciclo se perpetue.
Claro que há entre nós quem defenda que “animais selvagens” podem existir em espaços exíguos que funcionam como pequenas montras do seu habitat natural. Temos esses catálogos da vida selvagem espalhados pelas nossas cidades. Dizemos que o fazemos por questões didáticas, para que as crianças “conheçam esse mundo” cada vez mais raro e confinado. Também há quem pense que a proliferação desses espaços é a melhor forma de preservar em áreas de 4m2 o que na natureza vivia em pradarias e luxuriantes ecossistemas.
Quando visitamos esses animais congratulamo-nos e achamos que eles nos estão gratos por aquele simulacro de vida, mas quando os olhamos nos olhos não deixamos de lhes reconhecer o vazio de uma liberdade que sabem perdida sem que muitos deles sequer a tenham conhecido.
Algo de parecido era pedido aos novos inquilinos, quando lhes destinaram a casa e terrenos anexos. Dos inquilinos esperava-se que ocupassem o espaço civilizadamente e mantivessem com a “matilha de cães” um relacionamento saudável, senão, pelo menos o relacionamento possível. Da “matilha de cães” esperava-se que se acomodasse às mordomias e comodidades anunciadas e numa ou duas gerações as adquirissem como indispensáveis. Esperava-se que “cães” e inquilinos vivessem em harmonia, para que quem por lá passasse os não distinguisse na civilidade e urbanidade. Porém, nem os “cães” nem os inquilinos são assim e, quem por lá passasse, uma ou duas gerações depois, acabaria por os não distinguir no ódio e animosidade.
Ainda que os não visse com bons olhos e os não tivesse na melhor das considerações, a comunidade sempre esperou que os inquilinos encontrassem uma solução de compromisso.
As coisas não foram fáceis desde o início. Os “animais” estavam habituados à liberdade e desde cedo se viu que seria difícil colocar limites à sua movimentação. As dificuldades rapidamente foram reconhecidas pela comunidade que de imediato disponibilizou os meios necessários para que os inquilinos pudessem ter a “matilha” sob controlo. Para a comunidade havia duas coisas que eram igualmente importantes. Não queriam que os inquilinos abandonassem a sua residência, ninguém os queria por perto, mas também ninguém queria que a “matilha de cães” saísse do território onde estava acantonada.
De início a comunidade fechou os olhos ao que já era indício dos maus tratos que viriam depois. Afinal eram “animais” e estava-se numa interpretação muito literal do Livro Sagrado, segundo a qual tudo o que tinha sido criado antes do homem era para seu uso e sustento. Eram tempos em que a noção de propriedade remetia para o proprietário o direito de decidir do usufruto de tudo o que lá se encontrava.
Não foi assim com espanto, surpresa ou indignação que a comunidade assistiu à apropriação de quase todo o espaço por parte de inquilino e descendentes, limitando dessa forma a vida de uma “matilha” que teimosamente persistia naquele espaço.
E vários foram os estratagemas que os inquilinos usaram para se livrarem ou, na melhor das hipóteses, diminuírem o que consideravam ser uma praga. Limitaram-lhes a água e alimento, limitaram-lhes a liberdade e as capacidades de circulação e, sempre que havia casos de doença por entre a “matilha”, deixaram que a natureza seguisse o seu curso, desde que a quarentena fosse eficaz em manter as maleitas confinadas. Afinal, o que não nos infeta não nos afeta.
Tudo se fez e incentivou para que a “matilha” desistisse e acabasse por se dissipar como manhã de nevoeiro. Mas os “cabrões” tinham índices de fecundidade impressionantes. Por muito “sarnosas e escanzeladas” que as mães se apresentassem eram sempre acompanhadas por um séquito de “filhotes ranhosos” a perder de vista. Ao vê-los até aos próprios inquilinos se lhes amolecia o coração e se interrogavam se alguma vez ia ser possível viver com os “cães” em harmonia. Mas eram lamechices que rapidamente passavam quando a “matilha” se apresentava entre um misto de “obediência canina” e a ferocidade de quem numa dentada aplica toda a sua raiva e frustração.
Havia “cães” que os inquilinos receavam. Eram os mais agressivos e havia um histórico cada vez mais frequente de ataques físicos aos habitantes da casa. Sempre que um destes ataques acontecia, as condições da “matilha” deterioravam-se com redução de alimento e água. Se um elemento da “matilha” atacava um inquilino, era toda a “matilha” que sofria. De início, reduziam-lhes os bens essenciais e quando viam que isso não era suficiente, havia sempre uma “carga de pau” para amaciar aqueles espíritos selvagens.
Claro que a história tinha outro prisma. Ao fim de alguns anos de ocupação os inquilinos esqueceram-se que os “cães selvagens” já por lá estavam antes. E por deste pequeno pormenor se terem esquecido, não entendiam a raiva e ingratidão que estes lhes manifestavam quando lhes atiravam um naco de carne ou lhes estendiam a mão para um afago e consolo. Eram “cães” que não conheciam “dono”.
E sempre que este sentimento de ingratidão lhes invadia a alma, lá vinha mais uma “carga de pau” para ver se da próxima eram mais gratos.
A comunidade de início fechou os olhos às atrocidade que por lá se passavam. Os inquilinos tinham direito de usufruto de tudo quanto existia na propriedade. Porém, com o tempo este zeitgeist foi-se alterando. O direito à propriedade passou de um direito para uma responsabilidade de preservação de bens e respeito por “animais“.
Foi assim que nos últimos anos se assistiu a uma pressão por parte da comunidade para que os inquilinos respeitassem os “direitos dos animais” e os protegessem. Estes deveriam ter as suas necessidades de água e alimentos devidamente supridas. Em caso de doença deviam ser tomadas as medidas necessárias para minorar o sofrimento e ajudar à sua recuperação. As jovens crias e as fêmeas durante o período de aleitamento deveriam ter proteção adicional. Os maus-tratos não seriam tolerados e em alguns casos deviam mesmo ser criminalizados.
Pelo menos, era assim que a comunidade pretendia que as coisas se passassem. Os inquilinos tinham outra visão da realidade. Para eles, aquela “matilha de cães” não tinha que ali estar. Por muito que tentassem nunca iriam esquecer os ataques que nos últimos anos tinham sofrido. Bem podia a comunidade ameaçá-los que os proprietários encontravam sempre boas justificações para pressionar e tornar ainda mais insuportável a sobrevivência daqueles “cães”.
Já iam longe os tempos em que eram “cães selvagens”. Agora a sua existência cingia-se a um espaço cada vez mais exíguo e com menos condições. A comunidade, sempre que era confrontada com aquelas condições constrangia-se por se achar impotente para quebrar o ciclo de agressividade, maus-tratos e mais agressividade.
Pesarosa e com sentimento de culpa a comunidade elaborou programas de auxílio aos “animais”. Mas, por muito boas que fossem as intenções não tinham como ajudá-los sem a colaboração dos inquilinos. Os dias passavam e a saúde dos animais ia-se deteriorando com muitos deles a ultrapassarem um ponto de não retorno. A comunidade reclamava. Reclamava, mas quando os inquilinos lhes perguntavam: se gostam tanto dos “cães”, por que não os levam para as vossas propriedades? Ninguém se disponibilizava para os acolher. Hipocrisia era o que por ali mais abundava.
Um belo dia, o impensável aconteceu. Um grupo de “cães” pulou a cerca e rapidamente se dispôs a escavacar tudo o que encontrou pela frente. Destruiu bens, alimentos, máquinas. Nem as pessoas escaparam! Quem por ali rondasse teve a morte por perto. Exceção, e não foram poucos, para os que esbarraram com ela de frente. Pouco escapou à manifestação de fúria e, quando saciados na sua raiva e violência regressaram ao local de onde tinham saído. Para trás ficava o caos, a destruição e a morte de muitos que até aí se julgavam a salvo.
Mas não estavam. Os muros que tinham erguido, as cercas que tinham levantado não eram suficientemente robustas para conter a revolta que por ali tinha fermentado.
Não se sabe se houve facilitismo, se baixaram a guarda ou se simplesmente se julgavam intocáveis. Algumas mentes mais perversas pensavam que o que sucedeu tinha sido previsto e, alguns acreditavam mesmo que a chacina e devastação tinham sido incentivadas, para no rescaldo da vingança varrerem definitivamente com aqueles “cães” dali para fora. Custa-me a acreditar que houvesse quem sacrificasse alguns dos seus para fazer valer os seus propósitos. Custa a acreditar que haja gente assim tão perversa, mas também quem pensava que um ataque bem sucedido dos “cães” era inimaginável\ rapidamente ficou desmentido pela realidade.
Fosse pelo que fosse e com a conivência de quem quer que tenha sido, o certo é que alguns “cães” tinham saído da cerca e chacinado inquilinos e membros da comunidade. Reclamou-se então por vingança e medidas que protegessem os inquilinos e impedissem que a situação se repetisse.
Porém, que “cães” tinham atacado os inquilinos? A ideia geral dos residentes e de uma comunidade chocada com o sucedido, era que os “cães” que tinham “provado sangue humano” tinham de ser abatidos. Mas como distinguir os muito raivosos dos um bocadinho menos raivosos? “Cães” não se manifestam publicamente. Habitualmente guardam para eles mesmos o ressentimento e animosidade. Todavia, mesmo que se manifestassem, ninguém esperava que os menos raivosos viessem acusar os de maior raiva como os responsáveis a ser punidos. Isso não acontecia. E não acontecia porque nessa “matilha de cães”, os acontecimentos dos últimos anos tinha-os tornado raivosos a todos. A uns mais, a outros menos, mas no fundo eram todos raivosos e quiçá, com uma raiva justificada – a mim não me compete julgar, apenas me limito a contar os factos.
E os factos foram que os inquilinos daquele espaço, iniciaram uma “carga de pau” que aos olhos da opinião publica parecia demasiado violenta e agressiva. Os inquilinos defendiam-se dizendo que os mais raivosos deveriam corresponder a 10% da “matilha”. Por cada cem “cães” abatidos, dever-se-ia castigar dez de maior raiva. Os outros noventa eram danos colaterais de menor teor de raiva. Poderiam acrescentar ainda que eram mortes preventivas porque a raiva, para quem a já sentiu sabe que assim é, é algo que com o tempo só tende a aumentar.
Em pânico com uma matança que parecia indiscriminada a comunidade, a ONU, os Verdes, os Rosa, os Vermelhos e os das cores todas do Arco-Íris tomaram uma posição em conjunto para moderar a violência dos inquilinos. Já não vivíamos em tempos em que os proprietários são senhores dos destinos de tudo quanto existe nos seus domínios. São proprietários, mas esse acto de posse é transitório e não retira a ninguém a responsabilidade de respeitar e preservar aquilo que a comunidade reconhece como propriedade. A sociedade evoluiu e o actual zeitgeist aponta para que todos tenhamos direitos, mesmo os “animais” – “Todo o animal tem o direito de ser respeitado. O homem, enquanto espécie animal, não pode atribuir-se o direito de exterminar os outros animais ou de os explorar, violando esse direito. Tem a obrigação de empregar os seus conhecimentos ao serviço dos animais.” – in Direitos dos animais.