Há animais no topo da cadeia alimentar a que o moral desta história não diz nada que não intuíssem. Mas muitos desses predadores, quando confrontados com os aspectos mais interessantes desta fábula, julgam-se ser deles os únicos conhecedores. Por isso se vêem como “os mais espertos e sagazes da savana”. Pura bazófia.

A presente história não é verdadeira mas também não é mentira. Está equidistante entre o que nem sempre é mentira e o que raramente é verdade. É um, “podia ter sido assim”.

E assim podia ter sido – “Era uma vez” um leão, nem novo nem velho, nem alto nem baixo, nem gordo nem magro. Era um leão perfeitamente vulgar. Igual a tantos outros com que nos cruzamos em qualquer bar ou esquina. Perdão, deveria ter dito savana pois era de um leão que confabulava.

Pois esse leão, ao contrário dos míticos que encontramos nos livrinhos de histórias, habitava na serra. Era um leão serrano. Não sei se já viram algum, mas são em tudo iguais aos vulgares leões, a diferença é que habitam na serra e é por lá que criam a sua prole.

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O facto de viverem na serra, torna-os mais rudes e bucólicos. Ao que me é dado saber, e eu que de leões conheço pouco, têm a particularidade de não gostarem de ovelhas, mas apreciarem queijos. Pois o nosso leão era assim, gostava de queijo e apreciava vinho.

Não sei se da qualidade se da quantidade, quem me contou a história não desceu a esse pormenor, mas seguro é que o leão da nossa história gostava de vinho e queijo e há muito tinha abandonado a savana para se instalar na serra. A história até este ponto nada tem de particular. Quem nunca!

Mas o nosso figurão, com a idade tinha acentuado alguns traços da personalidade. Estava mais ferrabrás. Não no sentido bélico, ou dos atributos de uma suposta coragem que o termo encerra. Era um ferrabrás enquanto predador-reprodutor. Era um daqueles fanfarrões que, em vez de dizerem ao que vêm, chegam de mansinho, e descrevem-se exactamente ao contrário do que se vêem. O contraste era de tal forma evidente que para os “que o andavam a topar” – não ouso dizer caçadores de leões, pois essa é uma prática condenável socialmente e punida por lei – , dizia eu, para os que o topam, logo lhe aplicaram a expressão – ou já a fizeste ou estás para a fazer!

Esta expressão é no mínimo curiosa porque revela uma semelhança de comportamentos entre os predadores muito mais óbvia do que à partida se poderia supor. Não há eventualmente predadores bons e maus. São todos iguais. Todos gananciosos e invejosos. Quem profere esta expressão está longe de ser o santo que se insinua, e denota sempre uma pontinha de inveja. E esse parece-me ser o cerne da questão. Há entre os predadores uma inveja, por vezes saudável, e que também por vezes facilita que os melhores, os mais capazes, estejam mais aptos a deixar os genes à descendência. Mas caros amigos não era de inteligência que o nosso leão tinha falta, como verão, era o recato o que se lhe escapava.

Talvez por se ter achado num espartilho, talvez por isso tenha, de espírito constrangido, subido as encostas para no topo da serra, por entre queijos e ovelhas, se sentir, digamos, menos desgostoso e mais livre a dar rédea solta à sua ostentação.

À partida isso não teria qualquer problema. As serras com as suas encostas altas e escarpadas são propícias a conter esses desmandos do temperamento.

Se a ostentação parece ser uma característica de alguns leões, e do nosso era-o claramente, também vales e montanhas altas parecem ser a geografia adequada para lhes conter os excessos. A natureza tem destas coisas, disponibiliza nichos para os mais variados gostos. Só temos de procurar um onde nos possamos encaixar. E assim parece ter feito o nosso leão.

E a história ficaria por aqui, aliás, não haveria história se o nosso leão não tivesse o péssimo hábito de exibir a sua gabarolice nas redes sociais. Sim, caros amigos, nas redes sociais. E não estranhe ver um leão nas redes sociais, pois nem os leões sobem às serras para procurarem recato, nem apreciam queijos, não bebem vinho, nem usam redes sociais. Isto é uma fábula, nunca se esqueça disso.

Dizia eu, que o nosso leão tinha o péssimo hábito de andar nas redes sociais a exibir o seu pavoneio. Ele, e creio que para leões com WhatsApp ou Instagram também podemos usar o termo postar, ele postava, dizia eu, fotografias de paisagens, sítios por tinha passado, outros onde tinha sido feliz, e outros ainda onde tinha sido muito feliz. Até aqui tudo bem, não fosse a natureza invejosa da generalidade dos predadores que acima referimos. O nosso leão pretendia dar uma imagem de felicidade! Mas ao dá-la, e ao fazê-lo sem o recato que se avisava, instigava, como seria de esperar, a inveja e ignomínia.

E aqui, caros amigos, reside o busílis da nossa história. Nunca deve um predador, e muito menos um leão velho e despojado dos atributos da juventude, atiçar a inveja entre os seus pares. E foi exactamente isso o que nosso leão fez.

De entre as suas muito frequentes jactâncias, havia uma em particular que acicatava os instintos animalescos dos outros predadores. E é essa parte da história que vos quero contar agora.

Por entre as serranias, havia lugares magníficos. Um desses, e um dos favoritos do nosso triste personagem, era um lago suspenso entre duas suaves encostas verdejantes, como que um espelho de água aberto para oeste, que no pôr do sol nos dava uma paleta de cores digna do mais sensível dos impressionistas. Estar naquele registo, era como entrar num quadro de Paul Cézanne e ficar inebriado pela harmonia de cores. Virados a poente, num desses fins de tarde, temos pelas costas o prenúncio da noite todo ele num céu em tons de um azul mais escuro. Um azul que lentamente enquadra a moldura de encostas verdejantes, aqui e ali sarapintadas de flores coloridas que na paisagem emergem como salpicos, que saltaram da mão do pintor embriagado pelo êxtase da sua obra.

Se já se sentem dominados pela paisagem, esperem para ver o que o quadro para oeste nos reserva. A essa hora, perto ao fim de tarde, o sol como que se despede da terra quente e encostas verdejantes. Um sol de fim de jornada, exausto com o dia de trabalho, mais um dia a encher de vida as encostas e o espelho de água envolvente.

Aqui devo fazer um ressalva. É habitual referirmo-nos aos astros e a outros elementos da natureza como se eles fossem propriedade de um dado local. Não são, mas em boa verdade, e como isto é uma fábula, também ninguém poderá levar a mal se a eles me referir como se lá pertencessem em exclusivo.

E por entre tanta beleza, a cereja no topo da paisagem seria encontrar por lá o Paulo Diogo. Um amigo e fotógrafo de vida selvagem, que camuflado e de câmara em riste, espreita uma qualquer ave, uma que se exiba majestosa, e que com um espampanante distender de asas ensaie um vertiginoso voo por entre aquelas encostas escarpadas.

Mas em boa verdade nem essas aves por lá abundavam, pelo menos naquelas horas, nem o Paulo Diogo por ali se encontra. Talvez por recear leões, talvez por ter melhores coisas para fazer.

O cenário está quase montado. Falta apenas descrever a lua, esse astro romântico que condimenta as pulsões humanas e dos animais e que na nossa história, sendo ela uma fábula, me parece um adorno imprescindível.

Dizia eu que a lua fazia a sua passagem mensal por aquelas paragens, e que, por um princípio estético, se apresentava em quarto crescente. Não um daqueles quarto-crescente representado no mundo árabe (nunca percebi porque se identificam com um quarto minguante e se intitulam terras do crescente. Fica a minha perplexidade), mas um verdadeiro quarto-crescente. Um com forma de D.

Agora sim, temos o nosso cenário montado. Perguntar-me-ão o que fazia o rei da savana, perdão, da serra na presente fábula, por aquele local, àquela hora em particular. Talvez tivesse sede, talvez lhe apetecesse espairecer. Fosse pelo que fosse, aliás, isto é uma fábula e não tenho de dar grandes explicações, o que é certo é que àquela hora tinha o hábito de se passear todo pomposo por aquelas paragens. Todos os restantes animais, por respeito ou medo, evitavam àquela hora estar naquele local. Talvez fosse por isso que não encontramos o Paulo Diogo nesta história. E se o não encontramos então porque o menciono, perguntar-me-ão os mais atentos? Em primeiro lugar porque sou amigo dele, e depois porque também preciso que me empreste a máquina fotográfica como vão ver.

É que num belo lusco-fusco, num desses fins de dia, quando o nosso leão, depois de saciado de água e ar puro do passeio, se preparava para regressar para junto da sua alcateia, reparou que ao fundo, na outra margem, estava uma bela gazela, que satisfazia a sua sede enquanto por entre os gestos graciosos de quem a idade ainda não pesa nos músculos e articulações, saltitava por entre as pedras, chapinhando como num bailado em digressão por aquelas paragens.

Quando a viu, o seu instinto foi o de um qualquer predador. Aquela presa pertencia-lhe e algo no seu instinto lhe dizia que teria de usar astúcia e persistência, aquilo a que, fora do mundo das fábulas, se chama de resiliência.

Mas o nosso personagem estava velho, conhecia bem as suas limitações e não estava disposto a acabar a nossa história reconhecendo que já não tinha dente para aquele “filé mignon”. E assim, fazendo uso da câmara que o Paulo Diogo me emprestou, passou os dias e semanas seguintes a dirigir-se ao lago, para escondido registar a graciosidade da gazela. Primeiro por curiosidade, depois por vício e mais tarde por hábito e pesporrência, aquela hora, escondido entre pedras e árvores, captava as imagens daquela magnifica presa. Só que, e esta história tem um final triste para o qual peço que se prepare, só que, dizia eu, tudo estaria bem se o nosso leão-ex-predador não se quisesse fazer passar pelo que a natureza já não lhe permitia. E assim, caros leitores, o leão da nossa história, em vez de guardar para si as imagens daquela formosa gazela, achou por bem andar pelas redes sociais a postar a referida criatura, sugerindo implicitamente, aos demais predadores, que aquele era território seu e que aquela presa já lhe estava marcada pelo dente. Fanfarronice pura, pois todos nós sabemos que quando o prato é de deleite a melhor opção é sempre o recato.

Não sabemos exactamente o que aconteceu. Não sabemos se a nossa gazela, ao ver-se postada nas redes sociais, achou que isso era um abuso mesmo para o rei da savana (da serra neste caso), não sabemos se outro predador espicaçado pelas imagens que recorrentemente eram postadas resolveu afiambrar-lhe o dente. Fosse pelo que fosse, a nossa gazela desapareceu de circulação, deixou de frequentar o lago, pelo menos àquela hora.

Dado que as redes sociais, Correio da Manhã e TVI24 nunca pegaram nesta história como tendo um mau final, supõe-se que a nossa gazela tenha encontrado predador mais adequado à sua graciosidade. Não se sabe se foi assim que aconteceu, mas gosto de pensar que assim foi.

Quanto ao nosso velho leão, que se tinha recolhido nas serranias, que não gostava de ovelhas mas que apreciava queijo e vinho, continuou a postar nas redes sociais estes últimos pecadilhos, e que o eram enquanto tal, pois já que nem o colesterol nem a função hepática lhe permitiam cumprir um décimo daquilo a que se propunha. Continuava a fanfarronice.

Moral da história, com a idade tudo se perde, tudo mirra menos o ego e a próstata. E se no “Outono da vida”, algo há que nos faz reviver tempos de juventude, o melhor mesmo é fazermos recato dessa felicidade pois o lago, o mundo e as redes sociais estão repletos de predadores sempre prontos a afiar o dente.