O Leopardo, a obra-prima literária do escritor italiano Tomás de Lampedusa, publicada postumamente em 1958, foi ferozmente atacada pela intelectualidade esquerdista que o considerou retrógrado e saudosista. No entanto, passados cinco anos, quando Luchino Visconti, o famoso realizador comunista (com ascendência aristocrática) o transformou em filme, a aceitação e o sucesso foram generalizados.
Agora é a Netflix que explora o potencial narrativo deste romance (também há uma história de amor que se presta ao estilo das séries de época) intemporal sobre as revoluções e subida e queda das elites no poder.
O romance narra a decadência da aristocracia siciliana durante o século XIX, especialmente durante a unificação italiana conhecida como Risorgimento. Através da saga da família Salina, Lampedusa oferece uma perspetiva cética e melancólica sobre as mudanças políticas que marcaram profundamente a sociedade italiana na época. No cerne da trama, o Príncipe de Salina mostra-se um desapaixonado observador em relação às transformações que afetam a estrutura social e política da Sicília. Confrontado com a crescente ascensão da classe média e burguesa, que leva à decadência dos privilégios da aristocracia feudal, o Príncipe Fabrizio, apesar de reconhecer a inevitabilidade dessas mudanças, demonstra uma atitude cética em relação aos seus efeitos sobre a sociedade.
“É preciso que tudo mude para que tudo continue como está“, ressalta o Príncipe de Salina, numa citação icónica da obra. Esta frase revela a compreensão paradoxal do personagem em relação às mudanças políticas. Para preservar a posição e poder, algumas adaptações são necessárias, mas a essência da sociedade permanece relativamente inalterada.
O ceticismo do Príncipe de Salina também se manifesta em relação à eficácia e ao propósito da política. A luta pelo poder e o fervor revolucionário do Risorgimento são vistos como uma peça de teatro onde os protagonistas mudam, mas os conflitos subjacentes permanecem inalterados. Diz ele que “a política é coisa de sujos. Querem derrubar os Bourbons, mas para quê? Apenas para dar lugar a outro rei.”
Dom Fabrizio questiona se as mudanças políticas realmente trarão melhorias substanciais para a vida das pessoas comuns. Se os problemas intrínsecos não são resolvidos, apesar das promessas de progresso e liberdade feitas pelos líderes políticos da época, o povo continuará a enfrentar desigualdades sociais e económicas: “Quando tudo isto tiver acabado, as pessoas serão ainda mais pobres do que são agora”.
Efetivamente, a ascensão ao poder da Casa de Saboia tornou o povo siciliano ainda mais miserável, fator decisivo para o crescimento da máfia, em cuja génese esteve a proteção dos trabalhadores dos grandes proprietários.
Além disso, o Príncipe de Salina percebe a hipocrisia e a ambição oculta por trás dos discursos políticos. Os líderes do novo regime não são tão diferentes dos aristocratas decadentes do passado. A ambição pelo poder e a busca por vantagens pessoais prevalecem, independentemente do sistema político.
Ao retratar a Sicília do século XIX, Lampedusa oferece uma visão sombria e cética sobre as mudanças políticas. O autor sugere que, embora o cenário político possa mudar, a essência humana permanece inalterada, com os seus vícios e virtudes. A ideia de que as mudanças políticas radicais podem resolver todos os problemas sociais e económicos é ilusória: os que se declaram antissistema, uma vez no poder, farão exatamente o mesmo que os que os precederam.
O Leopardo é uma reflexão profunda sobre a natureza humana, a ilusão do progresso absoluto e o ceticismo em relação às promessas de mudanças políticas radicais. Por meio da figura de Dom Fabrizio, Lampedusa convida-nos a questionar e analisar criticamente o contexto político da nossa própria época, em que o ceticismo é uma consequência do afastamento entre um poder político cada vez mais arrogante e centralizador e uma sociedade civil cada vez mais fraca e desmotivada.