No ano 2000 teve lugar a primeira edição do Programme for International Student Assessment (PISA), coordenado pela OCDE. Através da aplicação de testes estandardizados, pretendeu-se medir o desempenho de 265 000 alunos – provenientes de 32 países distintos – em três áreas de literacia: leitura, matemática e ciências. Aquando da publicação do relatório final, em 2001, o mundo da educação foi surpreendido pela insuspeita Finlândia. O parente pobre da península escandinava tinha obtido resultados admiráveis nas três componentes avaliadas, rivalizando em particular com a Coreia e com o Japão, países com sistemas de ensino reconhecidamente muito exigentes e competitivos, e que ocupavam, no ranking do PISA 2000, as duas primeiras posições em matemática. Decisores políticos e cientistas da educação viraram naturalmente a sua atenção para este pequeno país. Aparentemente, após várias reformas, os currículos finlandeses prescreviam no ano 2000 uma cultura de ensino “centrada no aluno”, programas de estudo flexíveis e grande autonomia curricular local, pouca ou nenhuma avaliação ou prestação de contas (característica supostamente promotora de igualdade, uma ideia central da chamada reforma da escola compreensiva), ausência de exames e de testes estandardizados obrigatórios, eliminação das retenções, mais foco em trabalhos de grupo, tempos escolares e trabalhos de casa reduzidos, e, de forma mais geral, menos horas dedicadas ao estudo e à escola (a doutrina less is more – ver por exemplo aqui). Estava encontrada a fórmula para o sucesso. Afinal era possível formar alunos com características cognitivas muito semelhantes às dos alunos asiáticos, mas com maior conforto para todos e sobretudo com muito menos trabalho.
Trata-se de uma quebra flagrante do famoso standard de Sagan: «Afirmações extraordinárias requerem provas extraordinárias». Face a conclusões insólitas que ferem o mais elementar bom senso, a atitude correta do cientista é a do ceticismo atento. É por esse mecanismo que fomos protegidos de grandes logros, como o da memória da água ou o do movimento anti-vacinas. Infelizmente, os cientistas da educação não nos protegeram do logro finlandês. Muitos encontraram aqui a “prova” das ideias pré-concebidas que tinham para a Escola, gerando-se um autêntico efeito de histeria que ainda hoje contamina muitos documentos oficiais, incluindo os portugueses ou mesmo os da própria OCDE.
Após este sucesso inicial, os resultados da Finlândia começaram a baixar consistentemente em todas as áreas avaliadas. Primeiro de forma ligeira, e posteriormente de forma mais abrupta. Em 2018 e em matemática, os alunos finlandeses exibem um desempenho apenas ligeiramente acima da média da OCDE.
Pode ler-se no relatório final do PISA 2018 dedicado à Finlândia, que «Os resultados continuam em declínio desde 2006 (…) A tendência de descida não mostra sinais de abrandamento em nenhuma área. Em matemática, a velocidade do retrocesso é idêntica em todos os níveis de desempenho». Ou seja, a proporção de low-achievers aumentou e a de top-performers diminuiu, situação precisamente contrária à de Portugal em 2015. Paradoxalmente, estes factos não têm feito manchete, parecendo existir uma tendência para os encobrir ou para os justificar de forma desajustada e até caricata, como por exemplo com o aumento do número de famílias de imigrantes residentes na Finlândia. Na verdade, esse efeito existe, mas vários estudos confirmam que tem um impacto extremamente pequeno.
O que aconteceu na Finlândia? O que levou a resultados tão bons no ano 2000 e ao posterior declínio? Quais teriam sido os resultados dos finlandeses em hipotéticos testes PISA realizados antes do ano 2000? Numa tentativa de responder a estas importantes questões, e através de uma cuidadosa compilação de micro-dados oriundos de testes estandardizados, Nadir Altinok, Claude Diebolt e Jean-Luc De Meulemeester elaboraram uma nova base de dados internacional sobre qualidade do ensino, de 1965 a 2010, convertendo os desempenhos em pontos PISA. O resultado para a Finlândia é o seguinte:
Ao que tudo indica, a grande aceleração deu-se durante os anos oitenta e noventa. Na verdade, aquilo que os currículos e documentos oficiais prescreviam aquando do PISA 2000 estava longe de estar implementado no terreno: a grande descentralização e autonomia local teve início em 1985 e ficou oficialmente concluída, a muito custo, em meados dos anos 90. É importante precisar que a escola finlandesa era ainda extremamente tradicional durante essa última década de progressos, e que os professores se mostravam muito renitentes em adotar as reformas propostas, apesar das frequentes admoestações do Estado. Em 1996, quatro anos antes do PISA 2000, um grupo de investigadores britânicos visitou 50 escolas finlandesas, reportando: «Turmas inteiras, seguindo linha por linha os manuais, a um ritmo ditado pelos professores. Filas e filas de alunos, todos fazendo a mesma coisa ao mesmo tempo, que fosse uma aula de artes, de matemática ou geografia. Movemo-nos de escola em escola e as aulas eram idênticas em todas elas. (…) Não detetámos grandes evidências de uma metodologia centrada no aluno ou de aprendizagem autónoma.». É curioso o facto de estas 50 escolas terem sido justamente escolhidas por serem “as mais inovadoras” e que mais acompanhavam as novas diretivas finlandesas.
Com todos estes elementos, é no mínimo difícil atribuir o sucesso dos alunos finlandeses às ideias dos documentos oficiais em vigor no ano 2000. É interessante notar que os testes psicotécnicos aplicados aos recrutas do exército finlandês mostram, grosso modo, a mesma aceleração e os mesmos progressos durante os anos oitenta e noventa, e subsequentemente uma quebra importante das suas capacidades cognitivas:
Estes e muitos outros dados podem ser encontrados na excelente monografia Real Finnish Lessons – the true story of an education superpower, da autoria do Professor Gabriel Sahlgren.
As ideias por detrás destas reformas são antigas e remontam pelo menos ao início do século XVIII sem que ao longo de todos estes anos se tenha identificado uma qualquer melhoria nas capacidades dos alunos pela sua aplicação ao ensino. Vão aparecendo recorrentemente com novos nomes e novas roupagens. Em Portugal chamam-se hoje Autonomia e Flexibilidade Curricular. São ideias sedutoras, geralmente publicitadas de forma idílica, misturando-se citações poéticas e grandes desígnios da humanidade. A referência constante ao século XXI e aos seus desafios completa a ilusão com uma falsa aura de modernidade. Mas há que recordar que o conhecimento e o desenvolvimento de reais capacidades nos jovens, como a criatividade, o pensamento crítico ou a capacidade de resolução de problemas (que é aquilo que o PISA procura precisamente medir) têm um preço irredutível. Os três gráficos de fontes independentes apresentados neste pequeno artigo são um convite a essa reflexão.
Professor do ISEG, Presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática
‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.