A duração inesperada de um acontecimento esperado tem efeitos inversamente proporcionais nos respetivos contendores. Fortalece presumíveis vencidos e enfraquece os que haviam antecipado vitória. Como disse um dos filósofos gigantes do século XIX, as guerras podem ser um «banho de aço» para os povos. O mal fortalece as vítimas cuja alma despreza.

Um dos aspetos que mais releva do debate em torno da guerra entre Rússia e Ucrânia é o valor dado à especialidade na guerra, em oposição à crença no valor da paz. Possivelmente, face à sucessão histórica infinda de guerras, habituámo-nos a esperar mais acontecimentos de guerra do que de paz, apesar de esta ser sempre aquela que é “querida por todos”.

Um ideal de progresso da humanidade ruiu completamente com a entrada em cena do problema do mal, nos termos do século passado (o mais homicida da história). Hoje, prolongamos e acentuamos a divisão entre os que creem que o mundo é como é, tal como o recebemos e encontramos, com todos os seus males (guerras, massacres, latrocínios, espoliações, violências de todo o género), e aqueles cujos ideais exigem que ele seja diferente, começando justamente pela crença no valor paz.

«Paz perpétua», «paz negativa», «paz positiva», «armistício», «tréguas», nomeiam sugestivamente a diversidade de significados atribuídos à palavra paz.

Enfrentando o presente com o peso dos males passados, caímos facilmente nas ilusões geradas por um determinismo retrospetivo, de que fala Henri Bergson, filósofo para quem o devir histórico é completamente insuscetível de previsões finalistas.

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Sem revelarmos grande consciência disso, acabamos por dar crédito a novas formas de maniqueísmo: só o mal reina, o mal é incontestavelmente o poder dominante na História e sobre o ser humano, apesar de alguns vislumbres de bem e de justiça.

Os filósofos, provavelmente identificados mais com a paz, mesmo quando parecem pensar exclusivamente a guerra, não têm sido especialmente convocados para o debate. Mas talvez devessem sê-lo. Seja de modo expresso, seja como injunção sistemática, a temática da paz aparece em todos eles.

O núcleo problemático condensa a ideia de que as linhas que separam o positivo do negativo, em cada um de nós, podem ser traçadas apenas com uma clareza relativa. «O coração de um mesmo homem tem tendências diversas».

São inimigos da paz todos os movimentos e sentimentos negativos, tais como inveja, ódio, avidez, espírito de poder, ressentimento, etc. «Devastam o coração humano, ainda antes de devastar as cidades».

Cito dois exemplos, que vale a pena reter: Agostinho de Hipona (“a grande autoridade doutrinal do Ocidente”) e Max Scheler, filósofo alemão de inícios do século XX e um dos grandes ignorados nos roteiros do pensamento sobre a guerra e a paz.

Ao primeiro devemos o conceito de referência acerca da paz: «tranquilidade da ordem em todas as coisas» (De civ. Dei, XIX, 13). Indiferente aos perfis do poder (monarquia, aristocracia, democracia, nada lhe diziam), mas muito sensível ao que perfazia a função deste, vê na paz o desígnio essencial de qualquer povo. A paz é obra da justiça. Muito enfaticamente, chega mesmo a dizer que os governos (regna) sem prática de justiça constituem um «bando de ladrões» (De civ. Dei, IV, 4).

Sem justiça, qualquer Estado degenera em tirania. Dominados pelos «males da sociedade humana» (falsitas, ambitio, concupiscentia, pecuniae, avaritia, libido…), nem há paz nem há justiça, seja entre os homens, seja entre as nações.

Apesar de «as próprias guerras serem conduzidas em vista da paz», não há, propriamente falando, “guerras justas”. Escreve Agostinho: «Se os combatentes [bellatores] têm a sua grandeza e a sua glória» é, contudo, «mais glorioso matar a guerra pela palavra do que matar os homens pelo ferro, e adquirir ou obter a paz pela paz do que pela guerra» (Ep., 229, 2).

Resumindo: só a paz permite dissipar o mal e abrir perspetivas de esperança: «A paz é um bem no qual mal nenhum existe».

Max Scheler introduz Bergson na Alemanha e é talvez o filósofo que mais atualiza o repto feito por Shakespeare, «ouvir a voz do tempo».

Inicialmente convicto da necessidade da guerra (que lhe valeu expressas e ferozes críticas de Ortega y Gasset, em 1916), Scheler alterará radicalmente essa posição, propondo-se reabilitar a perspetiva de uma «paz perpétua» («ideia de tal modo universal e de tal modo presente em todas as culturas que de modo algum podemos abandonar»).

Às objeções segundo as quais a paz perpétua seria uma ideia longínqua e irrealizável (um mero «sonho»), responde que o valor intrínseco das ideias é independente da sua realização ou atualização. Todas as ideias são precárias, enquanto não forem resolutamente defendidas.

É assim que, num escrito de 1927-1931, A ideia de paz perpétua e o pacifismo, contrastando com posições assumidas anteriormente (escritos de 1915), leva a cabo a tarefa de fundamentar e legitimar o conceito de paz perpétua.

Organiza a sua investigação, explica-no-lo ele próprio, em torno da resposta a quatro questões fundamentais: 1. «Será a ideia de paz perpétua compatível com a natureza humana?»; 2. «Constata-se na história uma “evolução” tendente para a ideia de paz perpétua?»; 3. «O nível atual da humanidade permite-nos albergar a esperança de uma realização “previsível” da ideia de paz perpétua?»; e 4. «Haverá presentemente instituições ou estratégias de discurso capazes de articular efetivamente a realização da paz perpétua?».

Uma posição meramente pacifista («pacifismo universal»), responderá «sim» a todas as questões; o militarismo radical («militarismo disposicional») responderá «não» à primeira. Entre ambos os extremos, Scheler assume uma posição ‘moderada’, respondendo afirmativamente às duas primeiras e negativamente às duas últimas.

Começa então por defender a tese segundo a qual «a paz perpétua é um valor positivo incondicional», realçando que, num suposto mundo ideal, ela «deveria existir sempre». O núcleo racional repousa na ideia de que o mal não é radical, mas decorrente de raízes puramente históricas ou conjunturais. Não sendo a «essência da natureza humana» a justificar a guerra ou as formas bélicas da vida, a paz perpétua terá de ser possível em algum momento da história da humanidade (embora não possamos prever exatamente quando).

Quanto à segunda pergunta, declara responder «sim», registando que não pode haver uma ciência positiva acerca da paz perpétua. Ao contrário das perspetivas fatalistas (muito em voga já na sua época), mostra-se contra qualquer forma de determinismo. Não podemos ter experiência direta do progresso, nem prever as ações livres de um homem. Há, contudo, leis mais gerais e mais profundas que norteiam o sentido em que avança a história do desenvolvimento da humanidade.

Essas leis nomeiam as causas e os processos que levaram, por exemplo, à abolição da escravatura, da servidão, das relações de vassalagem, à instauração da democracia e secularização da sociedade. É por isso que os caminhos de hoje conduzem cada vez mais, do domínio sobre as pessoas, ao domínio sobre as coisas. As mesmas leis hão de abolir também a guerra, num futuro, de forma plena.

Estamos em 1927; Scheler analisa a situação política da Europa, que compreende à escala mundial (relações entre a Alemanha e a França, países colonizadores e colonizados, Itália fascista, «ânsias expansionistas de toda a URSS», etc.). Vê especial perigo no fascismo italiano e crê que a guerra «não é improvável».

Tal como hoje, as tensões entre os interesses e os poderes não favorecem a paz: «As guerras são tanto mais prováveis quanto mais e maior é a descompensação das tensões existentes». Ou ainda: «Quanto mais barris de pólvora albergar um edifício, tanto maiores são as possibilidades de incêndio».

E pergunta, depois: «Será então improvável a realização de uma paz perpétua num tempo previsível, por mais que se conjuguem todas as forças morais?»

Um qualquer pacifista (identifica oito tipos) responderia afirmativamente. Presentemente a paz é inviável – diriam eles. Mas é sempre mais fácil prever o «impossível» do que o «possível».

Segundo Scheler, tudo depende da vontade dos homens de se soltarem de alienações seculares. A paz nunca é provável, mas é sempre possível. É uma forma incondicional de bem. O valor dela torna insignificantes todos os argumentos de feição utilitarista que remetem para a ordem dos interesses.

Scheler faleceu em 1928; não pôde ver confirmados os seus medos: «só a boa vontade e uma política inteligente por parte dos líderes dos povos, dentro da Europa, poderá evitar guerras.»

Desde então, o aumento da violência e intensidade das guerras arrastam cada vez mais a humanidade para um mesmo e único destino. O verdadeiro problema, portanto, está em saber se realmente queremos sair da nossa maldade.

Agostinho e Scheler ensinam que as raízes da guerra não estão na natureza humana mas na perversão dela. Só a perversidade é má por natureza. O próprio Scheler é autor de uma obra sobre o ressentimento (1912), que descreve como auto-envenenamento, causado pelo alimento de sentimentos negativos e que destroem o viver-comum.

A paz impõe-se hoje, mais do que nunca, como tarefa primordial e inadiável de toda a humanidade. Implica a eliminação da guerra, e não apenas a prevenção de um complexo de ódio ou de rancor. Diferir a paz é refinar a guerra e incubar ainda mais sentimentos hostis. A paz continua a ser um longo sonho não resolvido do passado, cuja realização não pode ser entregue apenas aos especialistas na guerra.