Quando os homens se abandonam aos seus demónios, em vez de procurarem incessantemente de que bem são eles capazes (e que Bem lhes faz sinal através das suas buscas), tudo se arrasta sob a lei tirânica do maléfico, dizia Kant.

Quando se é incapaz de prevenir o mal, sofrem-se inevitavelmente as consequências da sua radicalização. ‘Desradicalizar’ vem sempre demasiadamente tarde. Aconteceu com o “espírito de guerra”, de que nos fala Edgar Morin. Conduziu à guerra e alimenta a guerra. Resta-nos agora saber evitar o pior.

A expressão extremada do espírito de guerra é o fanatismo, nas suas inúmeras modalidades (nazismo, estalinismo, maoismo, polpotismo… putinismo). Num dos seus artigos, publicados no jornal Le Monde (5/02/16), Morin justifica a necessidade crescente de uma verdadeira educação para a paz no recrudescimento generalizado do fanatismo. Vê nele a maior ameaça à democracia e o caminho mais curto para a guerra. Apresenta-no-lo sob as seguintes facetas: reducionismo, maniqueísmo e reificação.

O reducionismo nomeia a ignorância da complexidade e a ilusão da simplificação. Toma-se o todo pela parte. Patenteia-se nas relações humanas superficiais. Presumimos conhecer alguém apenas pela aparência ou por algum traço de caráter expresso na nossa presença. Se sentirmos medo ou antipatia, reduzimos a pessoa ao pior de si mesma. Já se sentirmos simpatia ou amor, reduzimo-la ao melhor de si mesma. Ou seja, vemos o melhor no que é nosso e o pior no que é dos outros – aspeto típico do espírito de guerra.

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Por sua vez, o maniqueísmo ideologiza identidades, tornando-as absolutizadoras (étnicas, ideológicas, culturais, religiosas). Reserva-se um poder absoluto de disposição dos indivíduos e de dominação da sociedade. Existe apenas a luta do Bem absoluto contra o Mal absoluto. Desenvolve uma visão do mundo cujo propósito declarado é castigar os partidários do mal, favorecendo também, dessa maneira, o maniqueísmo do inimigo. É necessário que um dos lados seja o pior, para que o outro lado justifique o seu desejo de morte e destruição (inimigo). O inimigo representa sempre o pior da humanidade. Nessa ambivalência, o maniqueísmo de um gera o maniqueísmo do outro: beligerância gera beligerância. Ora está um por cima, ora está o outro (motivo pelo qual é também denominado “fatalismo”, “necessitarismo”).

Por último, reificar (coisificar) significa ideologizar e sacralizar. Segregam-se ideologias que encobrem motivações inconfessadas (ódio, orgulho, petulância); sacralizam-se racionalizações em nome das quais se é capaz de matar e morrer. Inventam-se deuses; personificam-se e divinizam-se indivíduos.

Os fanatismos despontam na exata medida que as democracias esmorecem ou adormecem sobre as conquistas do passado.

As guerras reavivem e expõem fanatismos. Reabrem traumatismos. É também o caso daquela que presentemente assola e aflige a Europa. «Porquê a guerra?» – é a pergunta que todos fazemos. Como se, repentinamente, o mais improvável tivesse sucedido. Mostra-se que não estamos preparados para lidar com o inesperado. Pensámos, eventualmente, estar curados do mal que assolou, dominou e arruinou a humanidade no último século. Afinal, ele aí está de novo, a retirar-nos o chão sob os pés.

Devemos, portanto, interrogar-nos: como é que o político, justamente concebido para instaurar as condições institucionais de coexistência pacífica entre os indivíduos e entre os Estados (entre os homens), se pode transformar em lugar e fonte de fanatismo? Trata-se de uma perversão episódica que resulta da perversidade de alguns (Hitler? Estaline? Pol Pot? Putin?), ou de uma tentação permanente do «género humano» que alguns levam aos extremos?

A ideia de que a paz é melhor do que a guerra só é uma evidência em tempos de paz. A própria história humana parece contradizer a evidência da afirmação de Heródoto, segundo a qual «nenhum homem é destituído de razão a ponto de preferir a guerra à paz», como no-lo recorda Raymond Aron (Paix et guerre entre les nations).

A guerra lançou e ganhou raízes na humanidade. Tornou-se um fantasma permanente. Herdámos, sucessivamente, guerras religiosas e guerras entre as nações. O grande século das nações (XIX) originou mesmo duas guerras mundiais. No século passado a paz perdurou apenas cerca de três décadas, com exceção dos conflitos nos Balcãs (década de 90). Os períodos de paz efetiva («tranquilidade e ordem», na definição de Agostinho de Hipona), isto é, de uma paz não meramente assente na ausência da guerra, são realmente efémeros.

Por outras palavras, se os estados de guerra são cíclicos, é porque as respostas encontradas têm sido insuficientes para os conter. Ou a guerra é na verdade inevitável ou carecemos de outras respostas, além das existentes.

A paz tornou-se o grande problema da humanidade. Explicar como pode ela ser alcançada requer examinar as causas importantes da guerra. É este justamente o propósito expresso de Kenneth Waltz, em Man, the State and War. Segundo ele, as interpretações tradicionais são demasiadamente conservadoras, porque favorecem o culto do passado. Escreve: «em vez de perguntar se podemos ter paz onde antes houve guerra», perguntemos antes: «Há formas de reduzir a incidência da guerra, de aumentar as possibilidades da paz?». «Podemos ter paz com mais frequência no futuro do que no passado?».

Waltz apresenta então três sugestivas «imagens» explicativas: a guerra como consequência da natureza e do comportamento do homem; a guerra como resultado da organização interna dos Estados; e a guerra como produto da anarquia internacional.

A realidade dos factos humanos condu-lo a valorizar especialmente a última. Não é uma ideia nova, realça. Origina-se em Tucídides: «Foi o crescimento do poder ateniense que atemorizou os lacedemónios [espartanos] e os forçou à guerra». Significa que, desde então, o problema é a existência, sempre, de um mais forte. Um jogo de forças em que um “eu” se encontra como um “outro” visto como inimigo que faz nascer glórias e humilhações. Dos mais fortes e dos mais fracos. A guerra, portanto, suceder-se-ia, inevitavelmente.

Para que a paz vigore não basta haver uma autoridade superior aos Estados. Temos de aprender com a história: é necessário um trabalho de luto, para enterrar as nossas humilhações e as nossas glórias, curar traumatismos, eliminar fanatismos. Falta-nos uma educação da memória, uma educação das emoções e das paixões. Uma educação para a paz. Caso contrário, estaremos unicamente a sonhar com a idade de ouro dos poetas, com uma fábula, parafraseando Espinosa.

O excesso de memória é tão pernicioso como a falta dela. É preciso que o passado acabe. O peso da memória leva ao exacerbamento e ao culto do passado, que, como estamos a ver, pode degenerar em violências e guerras. E aqui tudo é cíclico, há apenas dois valores.

Hoje, temos demasiada informação mas talvez pouco pensamento. Repetimos à exaustão o aforismo de Clausewitz segundo o qual «a guerra é uma simples continuação da política por outros meios», retirado de uma obra inacabada (Da Guerra). Como se tudo tivesse de ser como sempre foi. Não sabemos o que o general prussiano diria se pudesse rever e acabar essa obra, como era seu propósito expresso. Mas sabemos que os determinismos históricos nos destinam à guerra, diminuindo o futuro.