O relacionamento de Portugal com o mar tem sido marcado por encontros e desencontros, intimamente relacionados com os momentos de prosperidade ou de empobrecimento nacional. Com a economia profundamente afetada pela atual pandemia da COVID-19, e depois do enorme esforço de recuperação da crise financeira de 2008, é altura do país pensar num reencontro com o mar, que contribua para o ressurgimento nacional.

A partir do século XII Portugal iniciou o seu primeiro encontro com o mar, quando a ação governativa conferiu um carácter marítimo às diferentes políticas públicas, em especial à economia, à cultura e à defesa. Neste contexto, foram criadas novas atividades de desenvolvimento marítimo, fomentada a mentalidade, a vontade e a identidade marítima nacionais, promovida a segurança marítima, e incorporados três ativos marítimos relevantes no nosso património territorial: Lisboa (1147); Silves (1189); e Alcácer do Sal (1217).

A celebração da paz com Castela em 1411, aliada ao aparecimento de lideranças carismáticas, dotadas de uma visão marítima inovadora (D. Dinis e D. João II), permitiram que nos séculos XIV e XV a sociedade fosse mobilizada para as principais políticas públicas marítimas e, através do mar, Portugal descobrisse novas zonas de exploração económica, concretizando os feitos mais épicos da nossa história coletiva, cujas consequências perduraram no tempo.

Em contraponto, entre os séculos XVI e XX, por força das conjunturas externas marcadas por sucessivos conflitos e em consequência da sua política internacional, Portugal foi assolado pelos efeitos perturbadores de várias circunstâncias estratégicas, que forçaram um distanciamento do mar e obrigaram à focalização do país nos esforços políticos e militares destinados a preservar o império e a independência.

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O último quartel do século XX trouxe a paz, oportunidade decisiva para Portugal materializar um novo encontro com o mar, premente e indispensável para superar as dificuldades financeiras em que tem vivido. Contudo, para que isso seja possível, interessa pensar naquilo que precisamos fazer, desde já, para que, com o contributo do extraordinário ativo marítimo que é a plataforma continental estendida, o país se possa focalizar na visão estratégica: ressurgir com o mar!

Este exercício deliberado de reflexão permitirá obter uma perspetiva sobre os desafios marítimos nacionais nas dimensões económica, cultural, ambiental, política e securitária, e identificar formas de superação, traduzidas em linhas de ação que explicitam o que fazer e como fazer para Portugal se desenvolver em segurança, explorando todas as potencialidades que o mar encerra.

Na dimensão económica, os desafios resultam da crescente competição pelos recursos marinhos e da não aplicação de medidas assentes na equidade, na solidariedade e na partilha, que geram crescentes conflitos de interesse entre múltiplos atores internos e externos. A sua superação implica: fomentar áreas de especialização nas infraestruturas portuárias, nos transportes, nas pescas, na construção e reparação naval, e nos recursos naturais (minerais, energias renováveis e biológicos); promover marcas distintivas do turismo, da cultura, do lazer e do desporto, associadas à sustentabilidade dos oceanos, que explorem as circunstâncias geográficas do país e a arte de bem receber que nos caracteriza; obter capacidade científica e tecnológica acrescida, que permita identificar e explorar, com inovação e sustentabilidade, os recursos inertes existentes nos fundos marinhos da plataforma continental; desenvolver a cooperação com países com interesses marítimos convergentes (e.g. Brasil, Noruega, Japão e Coreia do Sul), baseada em parcerias multilaterais ou bilaterais, e que envolvam empresas, universidades e laboratórios.

Na dimensão cultural, os desafios derivam do enfraquecimento do pensamento crítico e reflexivo e do esbatimento dos valores imateriais e materiais relativos ao mar, que provocam a progressiva degradação da mentalidade, da vontade e da identidade marítima nacionais. A sua superação implica: desenvolver os sentimentos, as ideias e as formas de pensar e de sentir do povo sobre o mar, através da promoção de uma literacia dos oceanos, ativa e efetiva, desde o ensino básico ao superior; reforçar os meios e incrementar a ação dos organismos académicos e científicos, públicos e privados, cuja atividade contribui para o desenvolvimento dos recursos, das capacidades e das competências marítimas de Portugal; fomentar a pesquisa, a difusão e a preservação do património cultural integrado pela história, ciência, letras e artes relativas ao mar.

Na dimensão ambiental, os desafios advêm, essencialmente, das questões relativas à interação mar-terra, à poluição e à sobre-exploração de recursos, geradoras de uma situação de crise que, por afetar o desenvolvimento sustentável do planeta e as perspetivas de sobrevivência da humanidade são, hoje, temas centrais da agenda internacional dos oceanos. A sua superação implica: fomentar um compromisso das lideranças mundiais e promover os mecanismos internacionais multilaterais, que limitem a utilização irracional dos oceanos, preservando a sua sustentabilidade futura; aperfeiçoar a regulamentação, a vigilância, a fiscalização e o controlo das atividades industriais marítimas; conter os efeitos das perturbações ambientais, em especial da poluição marítima, ações onde a educação, a comunicação pública, a ciência, a tecnologia e a inovação são determinantes.

Na dimensão política, os desafios decorrem do movimento global de expansão jurisdicional nos oceanos, que a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) veio permitir aos Estados costeiros, proporcionando-lhes, pela extensão da plataforma continental, uma nova zona de exploração económica. A sua superação implica: salvaguardar os interesses e a singularidade marítima nacional nos fora internacionais multilaterais com responsabilidades no mar, fomentando parcerias com Estados arquipelágicos, tendo em vista preservar os direitos que nos são consagrados pela CNUDM; manter um empenhamento ativo em organizações internacionais multilaterais, na defesa do desenvolvimento sustentável, em parceria com outros países interessados, gerando consensos positivos e capitalizando energias e benefícios mútuos; promover a dimensão e a centralidade marítima de Portugal na comunidade euro-atlântica, através da participação, ativa e qualificada, nas Nações Unidas, na NATO, na UE, na CPLP e na Comunidade de Estados Ibero-Atlânticos (CEIA).

Por último, na dimensão securitária, os desafios são consequência de acidentes naturais e de outros acidentes marítimos, de atividades ilícitas, de conflitos geopolíticos e de ameaças militares e híbridas emergentes, que agravam os riscos, os perigos e as perdas das pessoas, das organizações e dos Estados. A sua superação implica: fortalecer a cooperação internacional, na capacitação de parceiros, na utilização de sistemas de conhecimento situacional marítimo, na aplicação da legislação e na realização de operações, privilegiando as atuações na regiões da Macaronésia (formada pelos arquipélagos dos Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde) e do Golfo da Guiné, em parceria com países aliados e amigos; articular o planeamento e incrementar as capacidades públicas securitárias, ajustando-as às responsabilidades acrescidas que decorrem da extensão da plataforma continental, explorando o potencial do duplo-uso (militar-civil), no exercício da autoridade do Estado no mar; reforçar a coordenação dos diferentes departamentos públicos com responsabilidades securitárias no mar, promovendo sinergias operacionais e envolvendo o setor privado.

A abordagem multidimensional, acima apresentada, realça o contributo individual de cada campo de ação para o ressurgimento de Portugal com o mar: a economia funciona como o motor deste desígnio nacional; a cultura é a energia mobilizadora das pessoas e da vontade coletiva; o ambiente serve de balança entre as aspirações presentes e a sustentabilidade exigida para as gerações futuras; a política é o instrumento que transforma a visão em prioridades de atuação; e a segurança representa a condição de tranquilidade indispensável ao sucesso das restantes dimensões.

Na sua essência, a natureza diversificada dos desafios marítimos nacionais e a responsabilidade interdepartamental pela implementação das respetivas linhas de ação, demonstram a necessidade da sua agregação formal em dois documentos estruturantes, interdependentes e complementares:

  • A estratégia nacional de desenvolvimento marítimo, focada nas dimensões económica, cultural, ambiental e política;
  • A estratégia nacional de segurança marítima, orientada para a dimensão securitária.

Assim deverá ser, porque o ressurgimento com o mar só será possível garantindo a permanente coordenação, orquestração e mútua potenciação entre o desenvolvimento sustentável e a segurança efetiva.

A boa formulação das duas estratégias preconizadas constitui um requisito indispensável para que Portugal possa fazer pleno uso da fabulosa zona de exploração económica que é a sua plataforma continental estendida. Todavia, de pouco ou nada servirá a formulação de novas estratégias nacionais para o mar, por mais brilhantes que sejam, se não formos capazes de as operacionalizar com sucesso, o que implica o envolvimento comprometido das entidades públicas e privadas com responsabilidades e atividades no mar, bem como a frequente monitorização dos resultados e a consequente correção do rumo seguido.

Para isso, é fundamental implementar, ao nível da Administração Central do Estado, metodologias e processos de gestão estratégica, devidamente comprovados noutras organizações, que garantam, simultaneamente, uma liderança centralizada e uma responsabilização dos vários departamentos intervenientes na execução das referidas estratégias. Só assim conseguiremos ressurgir com o mar, tarefa onde todos necessitamos de nos envolver, porque sem o empenho coletivo dos portugueses nada acontecerá de relevo, apesar dos esforços realizados por pessoas notáveis que, individualmente, muito fazem neste importante domínio do nosso futuro comum!