Conta-se que às sextas-feiras o rei D. Manuel I tinha o hábito de assistir às sessões do Supremo Tribunal e que, numa dessas sessões, dois homens haviam sido condenados à morte, acusados do roubo de duas bestas de carga. O rei, incrédulo, interrompeu a sessão e dirigiu-se aos juízes inquirindo-os se achavam que a vida de duas bestas valia mais do que a vida de dois homens.

Por sorte dos dois homens, o magistrado proclamador da sentença não era José Rodrigues do Santos e a pena foi revertida.

Há cerca de um mês, numa ação de campanha de lançamento do seu novo livro, o jornalista da RTP comparou matadouros a campos de concentração, equiparando judeus a porcos e industriais de carne a Hitler ou Estaline.

A estultícia de Rodrigues dos Santos já se tornou uma tradição natalícia, lembrando que há um ano, por esta altura, andava o pivot do Telejornal a vender outro livro com a interpelação que se tornou célebre “A certa altura, há alguém que diz: Eh, pá, estão nos guetos, estão a morrer de fome, não podemos alimentá-los. Se é para morrer, mais vale morrer de uma forma mais humana. E porque não com gás?”.

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Para o autor é um ato de humanismo gasear seres humanos com a finalidade eugenista de alcançar a “pureza étnica”, mas é um genocídio diário abater um animal de acordo com o exigente enquadramento legal europeu no âmbito do bem-estar animal aplicado aos centros de abate e transformação.

Rodrigues dos Santos é um hábil surfista das ondas da moda sejam as conspirações religiosas, a romantização do holocausto ou agora o animalismo. Fá-lo com a mesma habilidade comercial e o mesmo desprezo intelectual pelos seus leitores como o piscar de olho com que assina os seus trabalhos jornalísticos. Fá-lo ao estilo de Victurnien de Victor Hugo, com voz de cabra e espírito de bode.

Mas é legítimo que o faça. É legítimo que venda os livros que lhe escrevem da melhor forma que sabe, mas até onde estaremos dispostos a aceitar o seu discurso antissemita travestido de estratégia comercial?

Explicar a Rodrigues dos Santos a diferença entre um campo de concentração e um matadouro é um exercício inútil. Ele conhece-a. Apenas labora no exercício de a ignorar na tentativa que os seus potenciais leitores assimilem que ela não existe. É a essas pessoas que é merecida uma explicação, não por cortesia, não por defesa de honra, mas por honestidade intelectual, aquela que em Rodrigues dos Santos foi votada a um qualquer cárcere cognitivo.

Por detrás de um processo de produção de carne está uma cadeia de valor que vai desde os industriais de alimentos compostos para animais, produtores, farmacêuticos, geneticistas, médicos veterinários, engenheiros zootécnicos, transportadores, operadores e industriais de abate, administração pública, académicos, entre muitos outros. Uma fileira que emprega milhares de pessoas no nosso país com diferentes graus de qualificações, grande parte delas com formação superior em áreas como fisiologia, comportamento, bem-estar, saúde ou nutrição animal.

Pessoas que diariamente trabalham para concretizar uma das missões mais nobres de que se podem orgulhar: alimentar com qualidade e segurança milhões de pessoas em todo o mundo. Pessoas que não aceitarão nunca ser equiparadas a Heinrich Himmler como instrumento de propaganda.

José Rodrigues dos Santos segue a máxima dos maus jornalistas segundo a qual uma boa história não pode ser morta com factos que a desmontem. Caso contrário, teria consultado os dados do Inventário Nacional de Emissões da Agência Portuguesa do Ambiente e comprovado que no nosso país o setor agrícola sequestra mais carbono do que aquele que liberta, sendo a única atividade credora de emissões em Portugal.

A produção primária nacional é prestadora pro-bono de serviços ambientais ao país que, ao contrário do que afirma o jornalista do canal público, não são altamente financiados pelos impostos de todos nós, são resultado do trabalho de gerações e do amor à terra e aos animais de empresários que desenvolvem uma atividade de carácter predominantemente familiar.

Ver alguém cuja visibilidade mediática é patrocinada pelos impostos dos contribuintes fazer-lhe uso para acusar o Estado de subvencionar indevidamente uma atividade é, para além de uma ironia que se faz sozinha, uma tremenda falácia. A Política Agrícola Comum da União Europeia não subsidia a produção primária. Subsidia os consumidores, na medida em que promove incentivos aos agricultores para produzirem de acordo com os mais elevados padrões mundiais de segurança alimentar, sanidade, bem-estar animal, ambientais e outras e, ao mesmo tempo, a sua produção poder ser colocada no mercado a preços acessíveis e competitivos com os bens concorrentes provenientes de zonas do globo com métodos de produção menos amigos do ambiente, dos animais e da saúde humana.

Já no século XVI o rei do renascimento tardio sabia destrinçar a diferença entre a vida animal e a vida humana. Quão perdido na idade média está o pensamento animalista de José Rodrigues dos Santos?

Depois de defender a solução final e deste ataque ao consumo de proteína animal, torna-se claro quem é para Rodrigues dos Santos a sua grande referência moral. É que consta que Hitler era vegetariano…