Vivemos no tempo das idolatrias. Na falta de um rumo que seguir, agarramo-nos a figuras míticas, normalmente distantes e sempre perfeitas aos nossos olhos. No frenesim que é a nossa vida, os que estão mais próximos de nós são muitas vezes postos de lado, como se cada uma dessas pessoas representasse alguma irritação ou frustração que temos dentro de nós. Somos ensinados a admirar o desconhecido, o distante e o irreal. Adoramos promessas impossíveis de alcançar e cada vez mais somos escravos da novidade permanente.
Começo por aqui, porque quando era mais novo, todos os meus amigos deliravam com vários super-heróis. Eu confesso que estranhava, porque nunca nenhum me cativava, não sentia vontade de o venerar e até me sentia de parte neste capítulo. Lá fui crescendo e quando tento pensar onde estava a primeira vez que me lembro do meu avô, a resposta mais perto da verdade parece-me ser o Galeto, um icónico restaurante lisboeta onde religiosamente íamos lanchar. “Um queque e um sumo de laranja” eram as palavras de ordem, enquanto nos sentávamos ao balcão e eu me fascinava com o elevador misterioso de onde chegava tudo. Mesmo nestes momentos onde a minha cabeça navegava para o mundo da fantasia, lá estava ele comigo. Para ser sincero, é a minha grande memória de infância. O meu avô era isto, são memórias, presença assídua, é ir ao Planetário durante 2 horas e, como se não chegasse, lá fomos nós ao Estádio do Restelo ver o Benfica perder 2-0. Sportinguista convicto, eu suspeitava que o meu avô me tinha levado lá para ver o Benfica perder e reconsiderar as minhas escolhas de criança, mas sendo quem é, tenho a certeza que foi para me fazer ainda mais benfiquista. Aliás, foi ele que me fez ficar ainda mais agarrado quando me contava que ia ao Estádio da Luz para ver o Benfica do Eusébio e eu achava aquilo fascinante. Ensinou-me a definição de paciência quando aceitava ir sozinho comigo simular a Liga dos Campeões no areal da Caparica, com a arte de ainda hoje não perceber se eu realmente dava luta.
Quando nasceu a minha irmã, foi quem me foi buscar à escola e disse que “tínhamos de ir buscar uma encomenda”. Ele, que a conhecia tão bem, tinha razão. Mas foi também na relação que tinha com ela que eu sempre aprendi. Percebi a dimensão de quem estava à minha frente e a forma como tratando-nos igualmente, sabe exatamente as nossas diferenças e como as conjugar. Quando foi a vez dos meus tios decidirem dar-me primos, lembro-me de a minha mãe dizer-me que o avô não pegava em bebés até aos 6 meses, mas rapidamente a regra foi quebrada, porque para os netos vale tudo. O meu avô sempre me puxou para cima, sempre foi subtil e inteligente a mostrar que tinha orgulho em mim. Vou-me sempre lembrar de me pedir vezes sem conta os vídeos onde intervinha nas Assembleias Gerais do Benfica, para mostrar a amigos, conhecidos e, no fundo, espalhar por Cabrela, a vila que tanto adorava. É impossível não relembrar as bolas que fazíamos com meias, panos e fita cola, irregulares, mas perfeitas para o que queríamos. Estragámos o tapete de Arraiolos da avó, mas fomos felizes como nunca e eu sei que, bem lá no fundo, até a minha avó gostou que o tapete se rasgasse e que o pó lá em casa aumentasse exponencialmente. O melhor de tudo isto é que para contar todas as histórias, talvez tenha mesmo de escrever um livro. E daqui para a frente, sempre que falar em público, vou-me lembrar dele, porque é dele que vem a coragem, a determinação, a naturalidade e a boa disposição e, claro, a distração. Aprendi que tudo “acontece aos melhores” e que temos de “reagir pela verdade da vida”. Quando crescer quero, como me dizia o meu tio no outro dia, ser igual ao melhor de sempre. O melhor filho, o melhor marido, o melhor pai e o melhor avô. Voltando ao início, porque é que nos agarramos a estas figuras míticas quando tem uma real tão próxima? Hoje, percebo que o meu super-herói é o meu avô Zé.