O acordo entre a Arábia Saudita e a República Islâmica do Irão, anunciado na Sexta-Feira, 10 de Março, em Pequim, parece milagre. Não só porque a “grande discórdia” histórica do Islão entre sunismo e xiismo é hoje representada por estes dois Estados, mas porque a divergência se estende actualmente a vários conflitos – no Iémen, na Síria, no Líbano.

A discórdia entre sunitas e xiitas remonta aos primeiros tempos do Islão, à sucessão de Maomé e do Califado político-religioso. Para a linha dominante, a sunita, a sucessão legítima de Maomé fazia-se pelos que lhe eram mais próximos, os companheiros de campanhas e combates do Profeta: os califas Abu Bakr, Omar, que conquistou o Egipto e a Síria, e Osman.  Para os xiitas (shia quer dizer dissidência ou seita) o sucessor deveria ser Ali, que sendo primo e genro do Profeta, casado com a sua filha Fátima, era, familiarmente, o mais próximo de Maomé. E depois da morte de Osman, assassinado no seu palácio de Medina, Ali, aclamado pelo povo, acabou por suceder-lhe. Mas. Ali encontrou grande resistência entre os omíadas da Síria, chefiados por Muawia, e foi morto em Kafa, na margem do Eufrates, em 661.

A sucessão decidiu-se no campo de batalha. Mas os xiitas, vencidos, mantiveram bem acesa a chama da dissidência – e tinham Ali e o seu filho Hussein como mártires. Embora os sunitas dominem largamente o mundo islâmico (serão 90% dos crentes), os xiitas mantiveram bastiões significativos, nomeadamente no Irão e no Iraque, onde estão os seus santuários.

Os dois poderes do golfo

A casa de Saud viu o seu fundador, Ibn Saud, ganhar o poder na península arábica em 1932. E no fim da Segunda Guerra, no encontro com F.D. Roosevelt, em 1945, no Egipto, Ibn Saud fechou a aliança entre a monarquia teocrática saudita e a república americana; aliança que iria marcar a segunda metade do século XX. Era uma parceria estratégica – económica, política e militar – em que os recursos petrolíferos sauditas seriam vendidos às grandes companhias, às míticas Seven Sisters – Anglo Iranian Oil Company, Shell, Standard Oil of Califórnia, Gulf Oil, Texaco, Standard Oil of New Jersey (ESSO), Standard Oil of New York –, e os Estados Unidos garantiriam a segurança do Reino.

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As Seven Sisters dominavam a produção e distribuição do petróleo do Iraque, do Irão e da Arábia Saudita. Mas foi no Reino de Saud que foram encontradas as grandes jazidas petrolíferas a seguir à Segunda Guerra Mundial, uma guerra em que o factor petrolífero tinha sido decisivo, já que o petróleo, ou a sua falta, condicionara toda a estratégia e capacidade de iniciativa da Alemanha na Frente Leste. Hitler fora para a guerra sem equacionar o abastecimento energético e pagara bem caro esse seu esquecimento que lhe comprometera toda a campanha da Rússia, ao ter de avançar para o Cáucaso no Verão de 42. Políticos e homens de negócios aprenderam a lição.

O rei Saud, o mais velho dos filhos do fundador Ibn Saud, sucedeu ao pai em 1953. Começou por adoptar uma linha independente e neutralista na Guerra Fria, influenciado pelo alinhamento pró-Moscovo de Nasser do Egipto; reaproximou-se dos Estados Unidos quando Eisenhower bloqueou os anglo-franceses e Israel na crise do Suez de 1956; e retomou depois uma linha próxima de Nasser. Mas o conflito no Iémen, nos anos 60, fez com que os sauditas regressassem à aliança americana.

Em 1973, a guerra do Kippur e o embargo e crise petrolífera que se lhe seguiram, trouxeram de volta a hostilidade Riyhad-Washington; mas a cooperação com Washington voltaria a estreitar-se quando a Arábia Saudita se tornou líder da Organização dos Países Produtores de Petróleo e passou a poder comprar tecnologia militar aos norte-americanos.

Foi uma aliança decisiva para a vitória do Ocidente na Guerra Fria. No início da Administração Reagan, o novo czar da Inteligência americana, Bill Casey, pediu aos sauditas que aumentassem a produção e exportação de petróleo para fazer cair os preços e agravar as dificuldades financeiras dos soviéticos, cujas receitas vinham, em grande parte, do crude. E os sauditas não só o fizeram como, também a pedido de Casey, ajudaram os movimentos anti-governamentais no Afeganistão, em Angola e na Nicarágua.

Entretanto, em 1953, os Estados Unidos e a Inglaterra tinham apoiado a restabelecimento no trono do Xá Mohammad Reza Pahlavi, do Irão, derrubando Mossadegh, o seu primeiro-ministro neutralista que quisera nacionalizar o petróleo contra os interesses das Seven Sisters. O Irão foi extremamente beneficiado pela subida do preço do petróleo em 1973, lançando então uma série de projectos destinados a reproduzir o brilho da “grande civilização persa”. Para isso, dinamizou a OPEP, de que era membro fundador em 1960 com o Iraque, a Arábia Saudita, o Kuwait e a Venezuela. Mas o Xá, aliado do Ocidente, tentou ao mesmo tempo uma modernização e secularização que ofendeu o clero xiita e o mobilizou contra os Pahlavi que, no seu esforço reformista, perderam o apoio dos religiosos, mantendo a hostilidade da Esquerda. A partir do Verão de 1978, houve grandes manifestações de rua que, ao cabo de vários meses, levaram à queda do Xá, dando lugar ao triunfo da clerocracia xiita e à fundação da República Islâmica do Irão.

Vizinhos e inimigos

A partir da revolução iraniana de 1979, que levou os ayatollah ao poder, Riyadh e Teerão entraram numa rivalidade hostil, quer em termos de ideologia e discurso político, quer de interesses regionais. Esta hostilidade conheceu altos e baixos: em 2007, o presidente Ahmadinejad do Irão visitou Riyadh e foi recebido pelo rei Abdullah; mas em 2011 a guerra civil na Síria iria reencontrar sauditas e iranianos em campos contrários – os sauditas a apoiar os rebeldes e o Irão o presidente Bashar al-Assad. Em 2016 a hostilidade conheceu novo limite, com a execução do sheik Nimr Baqir al-Nimr, um importante clérigo xiita, crítico da monarquia saudita. A multidão atacou e saqueou, então, a embaixada saudita em Teerão, o que levou ao corte de relações e ao fecho das embaixadas dos dois países.

Entre 2016 e o recente acordo, as relações entre os dois grandes Estados da região degradaram-se, com a Arábia Saudita e a República Islâmica do Irão a olharem-se mutuamente como “inimigo principal”, chegando os serviços de segurança sauditas a cooperarem com os de Israel contra Teerão.

Nos finais da Administração Trump, em 2020, foram assinados entre Israel, os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein os chamados Acordos de Abraão; acordos influenciados pela Casa Branca, mas permitidos pelos sauditas. Deste modo, com Marrocos e o Sudão a aproximarem-se também de Israel – o que o Egipto e a Jordânia já tinham feito em 1979 e 1994 – quebrara-se a bipolarização na região. Porém estes acordos de Abraão, do tempo de Trump, foram um dos últimos sinais de intervenção de Washington no Golfo.

Quando, no curso da guerra Rússia-Ucrânia, a Administração Biden quis convencer os sauditas a aumentarem a produção petrolífera (para, numa estratégia semelhante à de Casey nos anos oitenta, penalizar a Rússia), a proposta não só foi recebida com o redondo não do príncipe herdeiro Bin Salman, o homem-forte de Riyadh, como, juntando o insulto à injúria, a OPEP resolvia ainda cortar 2 000 000 de barris/dia na produção. Os apelos à democratização do presidente americano tiveram também efeitos nulos ou contraproducentes.  Os Estados do Golfo são autocracias e têm optado por uma “terceira via” no conflito Rússia-Ucrânia –  tal como muitos dos estadps africanos e sul-americanos, pouco  sensíveis a “cruzadas das democracias”.

A alternativa chinesa

Sabe-se agora que, desde 2021, se têm vindo a suceder encontros secretos entre negociadores das duas partes, no Iraque e em Oman, numa gradação ascendente que chegou aos ministros dos Negócios Estrangeiros. Discreta e habilmente, a China era compradora de petróleo dos dois rivais, embora importasse muito mais da Arábia Saudita (1 670 000 barris/dia em 2020).

O acordo entre os dois principais inimigos regionais parece ser um factor de estabilidade para a segurança do Golfo, podendo até ter um impacto positivo, quer na longa guerra civil síria, quer na mais dura confrontação no Iémen.  Mas ficam de pé outras interrogações: o que farão os Estados Unidos e Israel quanto ao programa nuclear do Irão, agora que o Estado-pária recuperou estatuto?

Do ponto de vista geopolítico e da rivalidade Estados Unidos – República Popular da China, não há dúvida que Pequim marcou pontos ao conseguir este Acordo entre inimigos radicais. E explorou o sucesso com sentido de oportunidade, fazendo-o coincidir com o início do terceiro mandato de Xi Jinping.  Assim, numa altura em que os Estados Unidos estavam a liderar a “cruzada das democracias” contra Moscovo, Pequim afirmava-se como o grande arquitecto da Paz.

Com esta geometria variável de relações – com os Estados Unidos, com a China e com a Rússia –, os sauditas parecem querer assumir-se como uma potência ascendente na cena mundial; uma potência que não quer ficar hipotecada a alinhamentos rígidos de blocos ou identidades ideológicas. O Irão, marginalizado pela pressão americana, viu que só tinha a ganhar com um acordo que o retirava do isolamento. E a China, sem postulados doutrinários externos, quer aparecer como guia e mediadora de uma ordem internacional alternativa à ordem internacional liberal, por definição alinhada ideologicamente.