Raramente se viu tanto consenso político-mediático caseiro à volta de um candidato, informalmente assumido, para um cargo de topo na “alta roda” europeia.
Apesar de António Costa ter abdicado, há bem poucos meses, de continuar primeiro ministro e secretário geral do PS, alegadamente por causa do último parágrafo de um comunicado da PGR, esta sua disponibilidade não parece ter impressionado, no imediato, a totalidade dos parceiros europeus.
Ao contrário, porém, do que se assistiu com Durão Barroso, que foi intensamente zurzido nos media portugueses, quando se apresentou na “grelha de partida“ como candidato à presidência da Comissão Europeia – entregando o governo da Nação ao improvável Pedro Santana Lopes –, as televisões e os jornais não se cansam de elogiar as virtudes diplomáticas e negociais de António Costa para coordenar o Conselho Europeu.
Apareceram, é certo, alguns (poucos) colunistas a “estragar” a unanimidade noticiosa e opinativa, exprimindo reservas quanto aos méritos de Costa para o desempenho da função. Um deles, ácido, perguntava em título de crónica, se um “mau primeiro ministro” podia dar um “bom presidente” do Conselho Europeu. Convenhamos que é a chamada pergunta para um milhão de dólares (ou de euros) …
A mesma pergunta poderia ter sido formulada aquando da “deserção” de António Guterres, após renunciar, em dezembro de 2001, à chefia do governo, decidido a retirar as consequências de uma derrota eleitoral expressiva nas Autárquicas desse ano. Depois, sentiu-se solto para dar curso às suas ambições internacionais, em fuga ao ”pântano”.
Se descontarmos os “maldizentes”, é forçoso reconhecer que Costa não despertou dúvidas sobre os seus talentos intrínsecos, tão pouco em Luís Montenegro, que foi capaz de surpreender muita gente, com o anúncio na noite das Europeias do apoio da AD e do governo aos anseios internacionais do ex-primeiro ministro, deixando na sombra o seu jovem cabeça-de-lista.
No meio desta euforia cúmplice, virada para o almejado futuro europeu de Costa – na qual até Durão Barroso alinhou -, houve, é certo, alguns “desmancha prazeres“ partidários a “remar contra a maré” , desde André Ventura e o Chega, até Rui Rocha e Cotrim Figueiredo, pelos liberais. Mas são vozes que “não chegam ao céu”…
Se, por uma zanga dos deuses, Costa não viesse a ser escolhido para o Conselho Europeu, não faltariam as “carpideiras” de serviço. Em contrapartida, tudo ponderado, poderia dedicar-se, com maior afinco, ao seu renovado papel de “protagonista” televisivo, e de “senador” no “conselho de estado” do novíssimo canal Now, cultivando fidelidades muito úteis para outros voos. Desde várias sinecuras até Belém, que há muito figura nas prioridades socialistas. Fora de questão o desemprego ou o recolhimento “monástico” ao estilo de António José Seguro…
É possível que o leitor, fora dos meandros do governo ou dos partidos, se interrogue sobre os feitos de Costa enquanto autarca ou governante, e até sobre o seu falado prestígio internacional, em vésperas de ser conhecida a decisão do conclave de Bruxelas. E, talvez, se sinta frustrado.
De facto, o portfólio é modesto, e mesmo com boa vontade não é fácil atribuir-lhe uma grande decisão — obra pública, reforma legislativa ou projecto de fundo que tenham a sua assinatura.
Descontada a pandemia, que lhe impôs um acompanhamento exigente, nem sequer viu construído o novo aeroporto de Lisboa, no Montijo, que chegou convictamente a considerar assunto arrumado, recuando, mais tarde, diante da pressão de autarcas e ambientalistas.
Em junho de 2020, ainda Costa garantia que “o futuro vai contar com o novo aeroporto do Montijo”. Viu-se. E viu a sua autoridade de primeiro ministro ser desafiada e posta em xeque pelo então ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, que anunciou depois, à sua revelia, o novo aeroporto em Alcochete.
Ironia do destino: a confirmar-se Alcochete, opção validada pela Comissão Independente e por Luís Montenegro, é natural que Pedro Nuno puxe pelos “galões” e diga que teve razão antes de tempo. A menos que os lençóis aquíferos ali existentes, e dos quais pouco se fala, estraguem novamente os planos…
Ao contrário do deserto de obras emblemáticas em Costa, goste-se ou não de Cavaco Silva, este inscreveu na coluna dos projectos resolvidos, enquanto primeiro ministro, a Expo98 — e a reconversão de uma zona degradada da cidade no moderno Parque das Nações –, o CCB – Centro Cultural de Belém , a construção da ponte Vasco da Gama , a AutoEuropa, novas autoestradas e, até, a privatização de jornais que estavam na esfera pública e a abertura da televisão ao sector privado.
Faça-se uma pesquisa sobre Costa. Como autarca em Lisboa, anunciou, em 2008, a nova ponte rodoferroviária Chelas-Barreiro. O projecto ficou “encalhado” e só agora foi “ressuscitado” no quadro das acessibilidades para o futuro aeroporto de Alcochete.
Como primeiro ministro, e para sermos justos, deu seguimento a uma obra lançada por Sócrates e inaugurou o túnel do Marão, rodeado de farta polémica.
Por alguma razão, a “imagem de marca” de Costa, como governante, está sobretudo associada à “geringonça”, responsável pela degradação dos serviços públicos e paralisia do país, embora com a “atenuante” de ter contribuído para a desgraça do PCP e do Bloco…
Apesar do coro afinado à sua volta, a cantar “hossanas” sobre as apregoadas competências de negociador hábil com grande “jogo de cintura”, a paisagem política mudou com os resultados das Europeias, e alterou-se a correlação de forças no hemiciclo em Estrasburgo, com as direitas em vantagem.
Se esta nova configuração do parlamento europeu afectará ou não a distribuição dos lugares cimeiros da União, é algo que saberemos em breve, podendo alguém ficar pelo caminho.
A verdade é que Costa, que era visto como favorito, caiu alguns pontos na bolsa das apostas….
Como “um azar nunca vem só”, o Ministério Público deixou escapar, cirurgicamente, um sortido de escutas telefónicas, visando Costa e João Galamba, divulgadas pela “dupla” CNN/TVI.
O Ministério Público está a especializar-se em “operações especiais”, desencadeadas, em períodos sensíveis da vida política, seja a bater à porta da casa de Rui Rio, no Porto, ou na sede do PSD, em Lisboa; seja em desembarques aparatosos na Madeira; seja, ainda, através da porosidade do segredo de Justiça, com a divulgação pública de escutas, estranha à própria defesa de António Costa.
Diga-se, de passagem, que manter um governante sob escuta telefónica anos a fio, ainda que esse ex-governante se chame João Galamba, com forte atracção pela asneira (como se viu no despedimento rocambolesco do seu assessor), é insustentável em democracia e como método de investigação.
Permitir, por desleixo ou por outra razão menos curial, a divulgação de excertos dessas escutas (abrangendo conversas relacionadas com o despedimento político da ex-Ceo da TAP), em vésperas da possível indigitação de Costa para presidir ao Conselho Europeu, é uma coincidência “dos diabos”, que, independentemente do inquérito interno em curso, que vale ou que vale, deixa sob grave suspeita o papel de quem deve acautelar o segredo de Justiça.
Com este enquadramento, na linha do controverso parágrafo do comunicado do MP, que forçou Costa a demitir-se, o silêncio da actual PGR não lhe fica bem e legítima que Pedro Nuno Santos utilize mais este episódio como pano de fundo para defender que “temos o direito a que haja uma explicação pública” e a exigir essa explicação a Lucília Gago, primeira responsável da hierarquia.
Com outro entendimento das coisas, a procuradora geral adjunta, Maria José Fernandes, lamentou a “utilização em excesso” das escutas a políticos e criticou “as escutas de cinco anos”, que “parecem mais escutar às portas e não uma solução processual de recolha de provas”.
E até o antigo Procurador Geral, Cunha Rodrigues, lamentou, o “abuso das escutas telefónicas”, entendendo que “não é admissível” um governante estar sob escuta durante quatro anos, e sendo a sua divulgação violadora da lei e do bom senso. É inegável que tem razão.
O MP converteu-se, gradualmente, em mi(ni)stério público. A banalização das escutas soma e segue…
O (permeável) segredo de justiça, volta não volta, sobe a cena, e agita-se por entre polémicas, em especial quando respeita a políticos com nome na praça.
É uma espécie de “segredo de Polichinelo” que pode reaparecer a qualquer momento, com os media por perto, deviamente instrumentalizados.
O recurso sistemático à ferramenta mediática, sempre ávida de novidade, passou a fazer parte do dispositivo que se articula com uma certa preguiça da investigação.
Há coincidências que dão que pensar, tanto em relação à candidatura de Costa à presidência do Conselho Europeu, como ao folhetim, já tristemente célebre, das “gémeas brasileiras”, portadoras de uma doença grave e rara, o qual tem servido, sem subterfúgios, para atingir o Presidente da República.
São histórias que têm permanecido no espaço público, e preenchido, em excesso, os serões televisivos e as colunas dos jornais.
Aliás, o ”caso das gémeas” promete “temporada” na ribalta até outubro, prazo que se prevê necessário para a conclusão dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito.
Até lá, portanto, o Presidente e o filho vão continuar sob pressão, e sob escrutínio “até ao tutano”.
No meio desta azáfama, com muita intriga à mistura e fuga às responsabilidades, subalternizou-se, completamente, o drama de uma mãe, tratada na Comissão de Inquérito, por alguns deputados, com uma aspereza inútil. Foi impróprio e indigno.
Em política não vale tudo. Tão pouco no jornalismo, que fica na “mó de baixo”, quando sujeito a modelos pouco escrupulosos, na vertigem da competição pelas audiências.
A síndrome do “big brother” e do “reality show” alastrou e tomou conta, em boa medida, da informação televisiva, pública e privada, cada vez mais vertida em formato tabloide e sensacionalista. E está para durar.
Por tudo isto, não admira, que Costa se mostre mais cauteloso, baixando a fasquia das expectativas. Até ao próximo fim de semana, quando o “estado maior” europeu voltar a reunir, “muita água vai passar ainda debaixo das pontes”, enquanto já se ouvem vozes críticas, como a do polaco Donald Tusk, ex-presidente do Conselho Europeu, interrogando-se sobre a “clarificação das questões legais” e se será oportuna a designação de Costa, antes de fechado o inquérito judicial que o envolve, embora nem esteja constituído arguido.
Moral da história: não são “favas contadas”…
Nota em rodapé:
A porta-voz da extrema esquerda bloquista, Mariana Mortágua, formulou uma pergunta “simples” (….): “como se sentem os deputados do PS a votarem em André Ventura para o Conselho de Estado”?
A resposta, sem querer especular sobre o “estado de alma” dos deputados socialistas, parece também “simples”.
Devem sentir-se iguais aos colegas de bancada, em 2015, quando votaram uma lista que incluía Francisco Louçã, em representação do Bloco de Esquerda, para o mesmo órgão consultivo do Presidente.
E por lá cirandou até 2022… sete anos, a doutrinar em nome do radicalismo bloquista, do qual é um dos principais ideólogos…
Costuma dizer-se, por muito que Mariana finja espanto e indignação, que os extremos se tocam…