Talvez não lhe tenha escapado. Há um pormenor delicioso na recepção ao Benfica na Câmara de Lisboa, esta semana: o Presidente da Câmara, Carlos Moedas, a tentar encontrar a melhor posição para não ficar escondido atrás de Rui Costa, o Presidente do Benfica.

Se não, reveja na net. Moedas faz as honras, felicitando o Benfica, mas muito particularmente o seu Presidente, por tudo quanto já deu à cidade e ao desporto português. Rui Costa devolve, começando por agradecer ao “meu querido amigo Carlos Moedas”, e olha para a esquerda para fazer o passe, mas Moedas está escondido a interior direito atrás do ombro do craque, “as palavras dirigidas à minha pessoa”. Rui prossegue, para falar do título e da equipa. Então, entra em campo um senhor, talvez um assessor, que segreda qualquer coisa a Moedas e o autarca lá se chega para a esquerda, direita do plano televisivo. Uma senhora cede-lhe o lugar, Moedas tenta encontrar a melhor posição, agora entre o ombro esquerdo de Rui Costa e a peitaça de Roger Schmidt, que sorri, simpaticamente, e encosta-se mais atrás, para facilitar. Talvez pense: “Os homens não se medem aos palmos – olhem o João Neves! Se calhar, tenho aqui o sucessor do Grimaldo… Ai, joga pela direita?”

Mas, visivelmente, Moedas não está confortável. Puseram-no ali. Penteia-se, compõe os óculos, cofia a barba, coça o nariz, sorri, põe um ar sério – repeat. Parece acusar aquele desconforto de ser um homem baixinho entre dois indivíduos altos (sei do que falo, do alto do meu notável metro e 70).

The Mayor of Lisbon, Carlos Moedas (C), Benfica president Rui Costa (2R), head coach Roger Schmidt (L) and the team`s captain Otamendi (2L) and player Joao Mario (R) make a family photo during a ceremony with Sport Lisboa e Benfica team after their winning the national football champions title, at the Lisbon City Hall, Portugal, 29 May 2023. Benfica became Portuguese football champions for the 38th time after beating Santa Clara 3-0 at home in the 34th and final matchday of the Portuguese I League. MIGUEL A. LOPES/LUSA

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A questão da diferença de estaturas, agora em sentido figurado, já se tinha colocado dia e meio antes, quando a equipa festejava no Marquês, e os comentadores de um canal televisivo de notícias pareciam relatar uma autópsia em vez de uma celebração. O futebol é o desporto mais amado do país e, independentemente das nossas preferências clubísticas ou de nem sequer apreciarmos o fenómeno, ele – o fenómeno – é indiscutível. Acorda na multidão uma alegria primordial que, por muito fútil que alguns possam considerar, só pode ter um efeito benigno em quem a vive.

O contraste, todavia, era delirante: jogadores, dirigentes, famílias, povo em geral, a celebrar, feliz, e o áudio cinzento dos especialistas naquela competição de adiantamento mental que tanto gostam de exibir. Falavam de todos os jogadores que iam sair, de todos os jogadores que o clube ia ter de contratar, dos problemas financeiros que iam ter, do treinador que ganha de mais, até da frase que disse, à chegada a Lisboa, um ano antes, e que logo lhe valeu um lugar no coração da sua falange: “Se amas o futebol, amas o Benfica.” Para os comentadores, é claro, aquilo não podia ter sido espontâneo, a eles não os enganam, foi tudo pré-combinado com o departamento de comunicação, é assim que estas coisas funcionam, etc. e tal.

Ouvia estas figuras e pensava como deve ser triste já não ser capaz do espanto. O espanto de Schmidt olhando a multidão. Dos miúdos do Benfica que, por muito pouco, festejavam o título no palco e não aplaudindo o palco, como tantos outros miúdos da idade deles ali, do outro lado da grade.

É que, enquanto os especialistas e o seu adiantamento falavam do problema da venda de António Silva, eu só via o António Silva a viver o momento da vida dele, e recordava, agora, tudo quanto dissera ao longo de um ano inacreditável. Depois de um golo de cabeça na vitória sobre a Juventus, questionado sobre a possibilidade de se transferir para um tubarão europeu: “Eu já estou num tubarão europeu”. Ou após travar Mbappé, Neymar e Messi, se sonhava agora ser chamado ao Mundial: “Eu sonho é em jogar o próximo jogo, com o Rio Ave, isso é que eu sonho.”

Um rapaz de 18 anos que saltou para a equipa porque todos os centrais estavam lesionados e nunca mais saiu, e que, dias depois, estava na selecção, a jogar o Mundial; que se sagrou campeão nacional aos 19, formando a dupla de centrais menos batida do campeonato com um campeão do mundo com quase o dobro da idade, mas tão humilde quanto ele. Celebram agora os dois em palco como dois garotos, mas os comentadores só querem mostrar quão perspicazes são. Talvez não tenham reparado quando António caiu de joelhos depois de Rafa marcar ao Braga, sentindo que tinham reencontrado o caminho para a vitória. Quando celebrou o golo de João Neves em Alvalade, como se o tivesse marcado ele, porque redimia o (raro) erro com que permitira o primeiro golo do Sporting. Quando observava, ainda há pouco, no balneário, o Presidente Rui Costa a discursar à equipa, com ar de menino que pensava: “Está ali o Rui Costa! E está a falar comigo!”. Quando declarou, no fim do jogo derradeiro, com a mesma clareza e grandeza de todas as suas acções em campo e declarações fora dele: “Sabia que ia ganhar o 38, mas não sabia se seria como jogador. Sou um jogador-adepto.” Para depois, concluir: “Sou o miúdo mais feliz do mundo.”

Nos dias anteriores, já um vídeo do companheiro João Neves, 18 anos, mas então ainda com 14, correra por essa internet: “Se calhar, desprezam-me pelo meu tamanho, mas a inteligência também faz parte. Quando não se tem bom corpo, tem de se ter inteligência.”

E nisto voltamos à Câmara Municipal. Rui Costa termina o discurso, emociona-se, dedicando o título ao seu ídolo, Fernando Chalana, o pequeno genial, falecido no início da temporada. O povo aplaude. João Neves, um metro e 74, aplaude. António Silva, um metro e 87, aplaude. Roger Schmidt, um metro e 88, aplaude. Grimaldo, Musa e outros de diferentes alturas que, por aqueles dias, também falaram de amor, como Schmidt, aplaudem. E Carlos Moedas, claro, aplaude.

As vitórias fazem-se de espanto, de amor, de risco. Altos ou baixos, ficam os grandes, por quem são e pelo que fazem. Os pequeninos, os que jogam para não perder, desaparecem sem notar, tão entretidos vão com a esperteza do seu cinismo.

Outros ainda estão a crescer. Não sabemos no que se tornarão. Mas cá estaremos para os aplaudir – ou esquecer.