A comunicação social noticiou no mês passado que a construção, na Hungria, do muro para conter fluxos migratórios começou. Obra orçamentada em 21 milhões de euros, aprovada pelo Parlamento nacional. Começou a título de ensaio, a sul, planeado para ter 175 kms de extensão e quatro metros de altura, estendendo-se ao longo da fronteira com a Sérvia. Dizem as fontes que, em 2014, 43 mil pessoas cruzaram ilegalmente aquela fronteira e que este ano o número já ascendeu para 78 mil (sendo que em 2014 o Governo de Budapeste apenas concedeu asilo a cerca de duas centenas de pessoas).

O drama destas pessoas não é muito diferente dos que chegam pela fronteira sul da União. Trata-se na sua maioria de pessoas oriundas de países em estado de guerra (sírios, afegãos, iraquianos, mas até kosovares) e que não pretenderão ficar na Hungria, mas chegar aos países mais distantes da Europa rica. A maioria enfrenta a deportação como destino final, e quiçá como destino de vida. A história é conhecida.

A Europa já conheceu muitos muros, uns mais distantes, outros intramuros. A leste, a milenária Muralha da China, reflexo de preocupações defensivas. A oeste, nada de novo: um muro na fronteira sul norte-americana visando limitar a pressão migratória mexicana. No Médio Oriente, o célebre muro israelita destinado a conter as ameaças vindas da Palestina. E bem no centro, dentro de portas, o quedo muro de Berlim, espelho incontrolável da história europeia do século XX. Nas faculdades de Direito ensina-se ainda, habitualmente, o caso do homem que construiu um muro alto com espigões causando danos ao vizinho. Nos anos 80, os Pink Floyd compuseram um dos seus mais icónicos álbuns – The Wall – simbolizando e explorando o abandono e o isolamento. E foi de um velho muro de pedra que Saint-Exupéry salvou o Principezinho de uma serpente amarela venosa.

Há muito em comum a todos estes muros e nenhum deles inspirou silêncios.

É que o que parece verdadeiramente desconcertante quanto ao muro húngaro (que, aliás, nem sequer é o único muro desta natureza que a Europa conhece, já que a Bulgária ergueu também um muro ao longo de 30 dos 240 kms da sua fronteira com a Turquia, para impedir a entrada de imigrantes, pretendendo prolongá-lo por mais 82 kms), é o sussurrar silencioso da Europa a este respeito.

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Pois que há muito a dizer sobre estes novos muros. Agora que a batalha no flanco grego parece finalmente ter acalmado, talvez valha a pena reflectir e discutir publicamente a construção de muros nas fronteiras europeias. Aqui, ficam apenas algumas notas.

Em primeiro lugar, uma evidência: a Hungria e a Bulgária são estados-membros da União Europeia. Constitui parte fundamental do projecto europeu o compromisso com a democracia, as liberdades e os direitos fundamentais. É isto a chamada “União de Direito” (à semelhança dos Estados de Direito que integram a União).

Em segundo lugar, um lembrete: tanto a Sérvia como a Turquia constituem países candidatos à adesão à União Europeia. A integração dos Balcãs e o alargamento a leste permanece como um dos principais vectores do alargamento europeu.

Em terceiro lugar, uma inevitabilidade: as fronteiras nacionais na medida em que o sejam também fronteiras externas da União são igualmente fronteiras europeias – fronteiras comuns à Europa, e em particular à Europa de Schengen – reclamando por isso uma resposta europeia aos problemas que aí se colocarem (e não é só no Mediterrâneo, que, infelizmente, eles surgem).

Em quarto lugar, o equívoco: malgrado o esclarecimento do Governo de Budapeste segundo o qual a construção do muro não viola qualquer tratado internacional ou europeu, a questão está longe de ser simples ou pacífica. Vale a pena recordar que o Tribunal Internacional de Justiça entendeu, ainda que num contexto diferente, que o muro israelita violava o direito internacional, chamando a atenção para uma ideia aqui inteiramente relevante: a proporcionalidade.

Certamente que o muro húngaro (e búlgaro) será construído em território nacional. Em todo o caso, é sabido que também o exercício de competências nacionais no quadro da União Europeia se deve fazer com respeito pelos princípios em que a União assenta. Ora, dizem os Tratados europeus que a União se funda “nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias”. Que estes valores são “comuns aos Estados-Membros, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo, a não-discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres”. E que o Conselho da União pode verificar a existência de um risco manifesto de violação grave a estes valores, e caso considerar verificada a existência da violação pode decidir suspender alguns dos direitos decorrentes da aplicação dos Tratados ao Estado-Membro em causa, incluindo o direito de voto do Governo desse Estado-Membro no Conselho.

Não tenhamos dúvidas. Existem mecanismos políticos e jurídicos para que a Europa fale e actue. E, enquanto não o fizer, teme-se que o silêncio e a inacção venham a ser “just another brick in the wall”…