Os arquivos do Mémorial de la Shoah – um sóbrio edifício flanqueado por amplos passeios no distrito parisiense de Marais – contêm a versão original de uma lei aprovada pelo regime de Vichy em 1940 que proibiu judeus de trabalharem na função pública. A versão original da lei continha uma isenção para judeus que fossem filhos de cidadãos franceses, mas a intervenção directa do primeiro ministro Philippe Pétain acabou por aplicar a proibição a todos os judeus, independentemente da sua nacionalidade.

O papel do estado francês no Holocausto é hoje um tópico altamente controverso e de grande interesse para a opinião pública. Não restam dúvidas de que os homens de Vichy eram visceralmente anti-semitas. O governo de Pétain promoveu diversas leis discriminatórias, começando pela infame proibição de os judeus trabalharem na função pública e incluindo projectos de “arianização” da economia através da limitação do número de judeus que podiam exercer certas profissões. É verdade que a Alemanha Nazi pressionou o estado francês a adoptar algumas destas medidas, em especial depois da promulgação da Solução Final em princípios de 1942. Mas antes disso as políticas anti-semitas do regime foram implementadas de forma autónoma. Por exemplo, não foram os Nazis que exigiram a revogação do decreto Crémieux, a lei que concedia cidadania aos judeus da Argélia (uma colónia francesa à época): Vichy tomou essa decisão livremente no final de 1940.

Apesar de tudo, hoje em dia o regime de Vichy tem um defensor inesperado: um judeu de origem argelina chamado Éric Zemmour, cujos antepassados perderam a cidadania francesa com a revogação do decreto Crémieux. Há muito que Zemmour defende publicamente Vichy por ter protegido os judeus franceses à custa dos judeus estrangeiros (muitos dos quais refugiados de outros países Europeus). Não há dúvida de que os judeus de origem francesa foram protegidos de forma desproporcional: judeus estrangeiros compunham cerca de um terço da população judaica do país aquando do armistício com a Alemanha Nazi, mas totalizaram dois terços dos deportados para os campos de concentração. Zemmour defendeu as acções de Vichy no seu bestseller de 2014, O Suicídio Francês, levando grupos culturais judaicos a processarem o autor com base na Lei Gayssot, que proíbe o incitamento do ódio racial e o negacionismo do Holocausto. Alguns anos antes, Zemmour já tinha sido condenado por incitamento ao ódio depois de ter dito que “todos os traficantes de droga são negros”.

A Lei Gayssot foi originalmente aprovada pelo parlamento em 1990, o início de uma década chave na reavaliação da memória histórica nacional. Jacques Chirac, eleito presidente em 1995, foi o primeiro chefe de estado francês a admitir que o seu país foi parcialmente responsável pelas atrocidades do Holocausto. O ‘revisionismo histórico’ de Zemmour em relação a Vichy não só não é original como era relativamente consensual antes de Chirac. Até à década de noventa, a versão oficial dos eventos da Segunda Guerra Mundial em França foi que tanto Vichy como Charles de Gaulle foram responsáveis por proteger os judeus franceses da catástrofe que assolou outros países ocupados. De Gaulle salvou os judeus através do seu movimento de resistência, mas Vichy também teria tido um papel benéfico ao colaborar com os Nazis, conseguindo dessa forma protelar o envio de judeus franceses para os campos de concentração. Essa tese – hoje considerada revisionista ou mesmo negacionista do Holocausto – foi defendida por figuras como de Gaulle ou Mitterrand, cuja intenção era reconciliar colaboracionistas e resistentes.

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A mudança da linha oficial francesa operada nos anos noventa fez com que os apologistas de Vichy fossem considerados persona non grata. A defesa de Vichy por parte de Zemmour foi condenada por altos dirigentes de organizações judaicas, como o Conselho Representativo das Instituições Judaicas de França (CRIF), cujos líderes apelaram publicamente a judeus para se afastarem de Zemmour e expressaram vergonha por pertencerem à mesma religião que ele.

Sem dúvida que Zemmour é um judeu peculiar; pouco religioso e ainda mais discreto em relação aos aspectos culturais do judaísmo, Zemmour vê-se a ele próprio como herdeiro de uma tradição de israelitismo francês, uma forma de judaísmo assimilado que rejeita a visão particularística do povo hebraico e assume os valores universais da República Francesa. A cruzada de Zemmour contra o “separatismo islâmico” que, segundo ele, domina as banlieues das grandes cidades francesas, tem que ser vista no contexto da sua rejeição do uso do kippah judeu em público ou de leis específicas para regularizar a matança de carne kosher. Pintar um nacionalista como Zemmour de simples racista é demasiado simplista; a ideologia que ele defende, concorde-se ou não, é mais abrangente, assente na ideia de que a república francesa só pode integrar indivíduos, nunca comunidades.

A natureza do nacionalismo de Zemmour é exemplificada por uma passagem particularmente controversa do seu último livro, A França Ainda Não Disse a Sua Última Palavra, onde o autor faz um paralelo entre Mohamed Merah, o terrorista islâmico que assassinou sete pessoas em Toulouse em 2012, e três crianças judaicas vítimas desse ataque. Tanto Merah como as três vítimas foram enterradas fora de França (o primeiro na Argélia, as vítimas em Israel), o que para Zemmour ilustra a crise de lealdade à pátria e a falta de sentimento de pertença que tanto corrói a sociedade francesa. Claro que quaisquer comparações entre um terrorista e as suas vítimas são (deliberadamente) chocantes, mas é uma imagem que exemplifica bem a matriz mental do autor e a estrutura das suas ideias.

A obsessão francesa contra comunidades particularistas de qualquer tipo tem raízes profundas, reflectindo-se, por exemplo, na legislação que proíbe a recolha de dados eleitorais com divisões étnicas (o que tornará impossível sabermos qual a percentagem de judeus que vão votar em Zemmour). Para além de um polemista, Zemmour encarna uma versão particularmente extrema do republicanismo ‘uno e indivisível’ que nasceu em 1789. Argelino, judeu, apologista de Vichy, mas também Gaulista, revolucionário, e republicano: Zemmour é simultaneamente um corpo estranho e uma personagem familiar na história francesa. Veremos se será suficiente para o levar ao Eliseu.