À medida que os Estados Unidos se preparam para retirar as suas forças do Afeganistão, o governo de Kabul está a colapsar como um baralho de cartas. Só esta semana, os Talibãs capturaram mais um distrito na região de Kunduz, no norte do país, e iniciaram um cerco à capital de província. Desde o princípio de maio – quando os EUA anunciaram a retirada das tropas da NATO até setembro deste ano -, mais de uma dezena de distritos foram conquistados pelos Talibãs. Tudo parece indicar que o governo afegão será incapaz de resistir ao avanço talibã sem apoio internacional.

A trágica conclusão da invasão americana do Afeganistão – reminiscente dessa outra fatídica guerra Americana, no Vietname, que acabou com as tropas comunistas a conquistarem a capital do Sul apenas dois anos depois da retirada dos Estados Unidos – serve como epílogo a uma catastrófica sequência de intervenções militares humanitárias lançadas pelo Ocidente desde o fim da Guerra Fria. Estas guerras humanitárias basearam-se na ideia que o Ocidente pode e deve usar a força para derrubar ditadores e promover os direitos humanos.

Ao promover a sedutora ilusão das intervenções humanitárias, o Ocidente pôs de lado normas de soberania nacional e integridade territorial que durante séculos regeram as relações internacionais. Desde o Tratado de Vestefália de 1648 até ao fim da Guerra Fria, que a máxima “não invadirás outros países” serviu como imperativo categórico do sistema internacional. Deste ponto de vista, o único uso legítimo da força nas relações entre Estados – para além da autodefesa – consiste na proteção da integridade territorial de um país terceiro perante o ataque de um agressor.

Foi ainda com base nesta filosofia que a comunidade internacional impediu a invasão iraquiana do Kuwait em 1991. Depois da expulsão das forças iraquianas do Kuwait, a administração americana de George H. W. Bush foi algo criticada por não ter continuado a marcha até Bagdade e deposto o ditador Saddam Hussein. Na altura, o secretário da Defesa americano, Dick Cheney, respondeu às críticas da seguinte forma: “Penso que se tivéssemos entrado lá [no Iraque], ainda hoje teríamos tropas em Bagdade. Teríamos de administrar o país.”1

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Ao longo dos anos 90, a atitude do Ocidente mudou completamente: o cauteloso respeito pela soberania nacional e integridade territorial de outros países transformou-se num irresponsável zelo messiânico pela promoção da democracia e dos direitos humanos através da força. Esta aventura começou a desenhar-se num canto remoto dos Balcãs, em Srebrenica, quando as forças de manutenção da paz das Nações Unidas assistiram impotentes ao massacre de mais de oito mil rapazes bósnios por parte de milícias sérvias. Isto ocorreu em 1995, quando o Ocidente tinha mais poder militar e autoconfiança ideológica do que em qualquer outro momento da História. A Guerra Fria tinha acabado com a humilhante derrota da União Soviética e a China tinha um PIB mais pequeno que a Itália. Se o fim do Comunismo parecia anunciar um “fim da história” em que os direitos humanos seriam respeitados nos quatro cantos do mundo, não deveria o Ocidente acelerar um pouco o processo – à força se necessário?

Foi neste ambiente intelectual que as elites ocidentais decidiram abandonar o princípio ético multicentenário das relações internacionais – “não invadirás outros países” – a favor de um novo – “não permitirás violações de direitos humanos.” O novo intervencionismo humanitário começou com o pé direito na Bósnia: entre agosto e setembro de 1995, a NATO bombardeou as milícias sérvias e impôs um acordo de paz que se mantém, periclitante, até hoje.

Entusiasmados com o aparente sucesso da aventura militar na Bósnia, as elites ocidentais começaram a aplicar o princípio da “intervenção humanitária” de forma mais frequente. Depois do sucedido na Bósnia, grupos independentistas albaneses do Kosovo – uma região da Sérvia sem qualquer tradição histórica de independência – iniciaram ataques terroristas à população sérvia, com o objetivo de provocar uma reação violenta do governo de Slobodan Milosevic que atraísse a atenção da NATO. Foi precisamente isso que aconteceu. Belgrado retaliou indiscriminadamente sobre os albaneses do Kosovo, levando os líderes ocidentais a enviar um ultimato à Sérvia: para evitar um conflito com o Ocidente, a Sérvia era obrigada a aceitar uma ocupação militar do Kosovo por parte da NATO de forma a garantir a paz. Apesar de os Sérvios estarem dispostos a conceder alguma autonomia à região, Milosevic rejeitou a entrada de tropas de manutenção da paz da NATO no Kosovo. A NATO respondeu bombardeando a Sérvia, levando à queda do regime de Milosevic e à independência de facto do Kosovo. Em apenas algumas semanas, o governo kosovar aterrorizou as populações não-albanesas de tal forma, que praticamente toda a comunidade sérvia foi forçada ao exílio2. Uma guerra conduzida pelo Ocidente para impedir uma limpeza étnica acabou com outra limpeza étnica; só mudaram os protagonistas e as vítimas.

Dois anos depois do ataque à Sérvia, os Estados Unidos invadiram o Afeganistão. A ocupação americana do país foi o primeiro passo da “Guerra ao Terror” lançada como resposta aos atentados do 11 de setembro. Mas a missão dos EUA no Afeganistão foi muito além da autodefesa. O Presidente americano à época, George W. Bush, explicou que o seu objetivo não era apenas derrubar os Talibãs, mas também “ajudar o Afeganistão a desenvolver um governo estável (…) um exército nacional (…) e um sistema de ensino de qualidade tanto para rapazes como para raparigas.”3 Vinte anos depois, e apesar de os EUA terem gasto quase um bilião de dólares na quimérica tentativa de criar um Estado moderno no Afeganistão4, as medievais milícias talibãs avançam pelo país sem encontrarem sequer um esboço de resistência.

Em 2003, os Estados Unidos invadiram o Iraque em busca de inexistentes armas de destruição maciça. É difícil recordarmo-nos agora da atmosfera de alarmismo prevalente depois do 11 de setembro, quando “especialistas” de defesa alertavam para a possibilidade de recorrentes ataques terroristas em grande escala. Um atentado biológico com Antrax ou até mesmo um ataque nuclear aos Estados Unidos eram considerados cenários plausíveis. Para justificar a invasão do Iraque, o Presidente George W. Bush afirmou perentoriamente: “Não restam dúvidas de que o regime iraquiano continua a possuir e a esconder algumas das armas mais letais que alguma vez existiram.”5 Na verdade – e tendo em conta a rapidez com que o exército iraquiano colapsou perante os invasores -, Saddam apenas possuía algumas das armas menos letais que alguma vez existiram.

As consequências da invasão do Iraque foram desastrosas a todos os níveis. O Iraque não abrigava redes de terroristas islâmicos quando Saddam estava no poder; mas o colapso do governo iraquiano após a invasão criou um vazio de poder que propiciou a ascensão do Estado Islâmico. O Irão exerce atualmente mais influência dentro do Iraque do que os próprios EUA, apoiado pela maioria xiita do país. Longe de agradecer aos “exércitos de libertação” americanos por terem trazido a democracia e os direitos humanos para a região, as populações árabes e muçulmanas ficaram com uma opinião ainda mais negativa dos “cruzados” do Ocidente.

Como se os desastres no Afeganistão e Iraque não bastassem, o Ocidente decidiu repetir a proeza na Líbia. Em 2011, o ditador Muammar Qaddafi estava prestes a ganhar uma curta guerra civil contra opositores motivados pelos ideais da “Primavera Árabe”. Apesar de vários políticos europeus, como Nicolas Sarkozy ou Silvio Berlusconi, terem cultivado boas relações com Qaddafi, a NATO tomou a decisão de intervir na guerra civil líbia a favor dos insurgentes. Em apenas sete meses, os bombardeamentos aéreos ocidentais mudaram a situação militar por completo, levando à vitória dos rebeldes e ao assassínio de Qaddafi (quando soube da morte do ditador, a secretária de Estado americana, Hillary Clinton, achou apropriado reagir com uma graçola: “Nós chegámos, nós vimos, ele morreu.“) Tal como no Iraque, derrubar o regime foi a parte fácil; estabilizar o país depois do colapso do governo demonstrou-se uma tarefa impossível. Incrivelmente, o presidente americano Barack Obama revelou, em 2014, que a NATO “não tinha planos para o dia seguinte” à deposição de Qaddafi.

A intervenção na Líbia foi mais um falhanço total. O objetivo do Ocidente era apoiar a formação de um Estado democrático; mas hoje a Líbia não tem qualquer Estado, muito menos democrático. O objetivo do Ocidente era prevenir violações dos direitos humanos; mas hoje a anarquia reina na Líbia, onde mercados de escravos coexistem com permanentes conflitos de guerrilhas. O objetivo do Ocidente era evitar a proliferação de grupos terroristas, mas hoje a Líbia acolhe milícias ligadas tanto ao Estado Islâmico como à Al Qaeda. Milhões de imigrantes ilegais passam hoje por território Líbio a caminho da Europa, alimentando as redes de tráfico de seres humanos que agem abertamente no país.

O balanço das intervenções “humanitárias” do Ocidente nos últimos 30 anos é claro: trataram-se de conflitos desnecessários que não só não resolveram quaisquer problemas como pioraram a situação. O Ocidente causou a morte de dezenas de milhares de civis inocentes; desestabilizou por completo o Médio Oriente; e ainda por cima perdeu influência na região para atores hostis como a Rússia e o Irão. Não há dúvida que Milosevic, os Talibãs, Saddam e Qaddafi lideravam regimes sanguinários; e certamente que as intervenções humanitárias foram conduzidas com boas intenções. Mas de boas intenções, o inferno está cheio.

[1] Citação em Bruce Montgomery, Richard B. Cheney and the Rise of the Imperial Vice Presidency, página 95.

[2] Misha Glenny, The Balkans, 1804-2012: Nationalism, War and the Great Powers, página 662.

[3] Discurso de George W. Bush, a 17 de Abril de 2002, no Instituto Militar da Virgínia.

[4] Ver o estudo “United States Budgetary Costs and Obligations of Post-9/11 Wars through FY2020: $6.4 Trillion” da Brown University.

[5] Discurso de George W. Bush a 18 de Março de 2003.