É certo que não é por falta de hábito, até porque estamos há sete anos nesta espécie de encantamento de serpentes colectivo, mas há detalhes da nossa vida mediática que ainda me vão deixando surpreendido – o que sempre vai ajudando a evitar a queda no mais absoluto dos cinismos.
Refiro-me, antes de mais, à «vida mediática», que lamentavelmente temos, por oposição à pouca «vida pública» que ainda vamos tendo, sendo que esta última, quando se verifica, raramente consegue encontrar um espaço digno no palco mediático. Somos, afinal, e sete anos de António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa explicam-no por si, uma sociedade de entretenimento e espectáculo políticos, em que os seus actores principais são meros especialistas no «facto político» e cuja audiência já não tem capacidade de exigir mais do isso.
O «facto político» tornou-se, parece agora definitivo, o princípio, o meio e o fim da acção política. É o «facto» que subsiste por oposição à «ideia», aliás. O facto, a insinuação, a interpretação, a encenação, a manobra de distracção, a táctica, as entrelinhas, a sondagem, a popularidade, a frase-efeito, enfim, uma mise-en-scène compreensível, mas que, sem uma única ideia que lhe sirva de base, em democracia não constitui outra coisa que não a gestão da mediocridade e a mais profunda imbecilização dos espíritos.
Um dos últimos exemplos deste estado embrutecido da nossa vida mediática foi um famoso jantar de aniversário de um grupo de jovens, o Senado, no qual participaram, entre outros, Pedro Passos Coelho e Marcelo Rebelo de Sousa.
O Senado é um grupo de formação política, constituído por um largo número de jovens de várias sensibilidades à direita. É um mecanismo de criação de «vida pública», constitui em si mesmo vários espaços de discussão e debate de ideias. Celebrou dez anos de existência e organizou um evento para o efeito que se mediatizou nas últimas semanas por uma razão simples: o presidente da República resolveu criar um facto político através da intervenção ali feita por parte de um ex-Primeiro-ministro – que, ao que se pode saber, ali falou largamente da Europa. A comunicação social, outro género de deserto de ideias e superioridade moral, resolveu amplificar mais uma marcelite.
Não deixa de ser estranho que não tenha havido uma só alma em toda a imprensa que, tendo recebido a notícia presidencial de que Passos Coelho ali tinha denunciado que contava ainda ter «um horizonte político», não se tenha interessado pelo que realmente ali interessava. E o que ali interessava não era o horizonte político pessoal de um orador.
Era, em primeiro lugar, querer saber o que pensam largas dezenas ou centenas de jovens que andam há dez anos a discutir política. Se houvesse entre nós uma réstia de esperança no futuro, eram eles quem devia estar a encher capas de jornal. Em segundo lugar, e porque a experiência também conta, interessava ao público saber o que disse, afinal, Passos Coelho acerca da Europa. E, em terceiro lugar, discutir todas essas ideias, confrontá-las, questioná-las, aceitá-las, enfim, qualquer coisa.
O que aconteceu foi mais simples: alguém (e este «alguém» é, normalmente, o presidente da República) ouviu Passos Coelho dizer «o meu horizonte político» algures numa intervenção, fez questão de gerar curiosidade nos jornalistas acerca do significado da expressão, alimentou uma cacofonia mediática durante uns dias, e imagino que se tenha divertido bastante.
O Expresso, na passada sexta-feira, dava nota de que Passos Coelho tinha ficado incomodado por se ter dado tanto destaque a esse assunto menor e nada ao conteúdo da sua intervenção. E se se incomodou, teve razões para isso. Para lhe dar razão, aliás, a «notícia» prosseguiu na senda das suposições e dos cenários: estará Passos Coelho a preparar o seu regresso? O que pensa ele fazer com Montenegro? E Ventura, está confortável com um eventual regresso? Em suma: todo um rol de inutilidades.
Continuamos, ao fim de duas semanas, sem saber o que pensa Passos Coelho das questões europeias do presente e do futuro (para embrutecer ainda mais tudo isto, chegou mesmo a falar-se da hipotética ida do ex-Primeiro-ministro para o Parlamento Europeu, porque não cabe na cabeça de nenhum génio que uma pessoa experiente e que pensa nos assuntos possa falar sobre eles sem querer ocupar uma cadeira política) e, pior, sem saber o que pensam os jovens do Senado, visto que a única coisa que saiu daquele espaço «público» para o campo «mediático» foi uma irrelevância. As duas coisas que nesta história eram dotadas de algum interesse para o país foram, afinal, as mais ignoradas. E ficámos apenas com a única coisa com pouco ou nenhum interesse.
É, na verdade, bastante irrelevante para todos saber se Pedro Passos Coelho pretende ou não regressar à vida política. Esse é um problema dele, e só dele: é um cidadão maior, experiente e com discernimento suficiente para saber o que quer fazer da sua vida. O problema da direita é continuar a suspirar por ele. Ao fazê-lo, a direita não tem demonstrado outra coisa que não o seu próprio deserto: de ideias, sobretudo, e de quadros. De ideias porque se manifesta incapaz de as produzir, ou de representar, em si mesma, uma ideia de país, de sociedade e de mundo, sem a presença de uma personalidade carismática. Como se reconhecesse que, sem o pastor respectivo, não passa de um rebanho inconsequente. E de quadros porque, por um lado, parece incapaz de se refundar em termos de capital humano (mais uma vez, perante um grupo de dezenas de jovens que anda há dez anos a discutir política à porta fechada, continua toda a gente voltada para os nomes de sempre, sem se interessar sequer por outra gente) e, por outro lado, optou por esconder o seu deserto de ideias na esperança de um regresso messiânico e carismático, quando o carisma não se revela de outra forma que não no exercício pleno das funções de poder.
O legado de Passos Coelho na direita portuguesa é incontornável. E a fórmula que tem usado para participar na «vida pública» (porque me parece que é nela, e não na «vida mediática» que pretende intervir) podia ser vista como uma oportunidade de com ele aprender erros e sucessos, e de discutir as suas ideias – de um homem que, talvez mais do que todos os outros que por si anseiam, nelas tem reflectido com superioridade e sabedoria. Talvez fosse útil ouvir o «que» Passos diz, em vez de querer ouvir «o» Passos. De começar a discutir «o quê», em vez de pensar no «quem». Com o respeito e a admiração que merece Passos Coelho, estou mais preocupado com o horizonte político do país do que com o seu horizonte político. Se ambos se cruzarão ou não é, por fim, o menos relevante de tudo isto.