Num excelente ensaio Bruno Cardoso Reis imola no altar da antipatia e da desconfiança Trump, a equipa, as intenções, os resultados presumidos das políticas e as consequências para a Europa e Portugal.

Começa pelo famoso episódio do não reconhecimento da derrota contra Biden e a inerente deselegância e dificuldade postas na transição de poderes. Começa bem: um político experiente, que Trump não é, teria concedido sem enveredar pelo caminho da contestação. Porém: à luz das idiossincrasias dos sistemas eleitorais, diferentes consoante os Estados, nem todos dando exactamente as mesmas garantias da fidedignidade dos resultados, e que aqui e além autorizavam dúvidas, o ego reconhecidamente desmedido do derrotado quis acreditar que a vitória lhe foi roubada. Imperdoável? O eleitorado, pelo visto, veio a perdoar-lhe, e estão parcialmente esquecidas as objurgatórias segundo as quais o homem seria um grande perigo para a democracia, agora aqui e além renovadas por alguns espíritos mais zangados, senão assustados, com o que aí vem.

“O problema é que Donald Trump entende por lealdade a impossibilidade de exprimir qualquer tipo de visão divergente da sua, apontar qualquer falha ou problema às suas obsessões políticas”.

Será, embora custe a crer que as personalidades até agora recrutadas ignorem o tipo de relações que manteve com o seu elenco durante o anterior mandato, e que mesmo assim lhe aceitem os convites para integrarem o executivo. São ingénuos? Medíocres sem eira nem beira? Carreiristas? As suas “obsessões políticas”, por outro lado, também poderiam ser descritas como convicções, que é o que se costuma chamar aos princípios que se defendem.

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Depois, Trump é acusado, provavelmente com razão, de não estudar dossiers e ter ideias superficiais em numerosos assuntos. Não se duvida, mas isso não casa com a alegada incapacidade para constituir equipas e delegar, sem o que nunca teria feito uma carreira de sucesso.

Há de resto aqui um equívoco muito comum, que é o de achar que a competência técnica, seja em que domínio for, faz as vezes de acerto nas escolhas políticas. Não faz, desde logo porque não faltam diplomados albardados de prestigiados diplomas em todos os domínios das ciências sociais, e até de algumas tomadas por estritamente científicas, que se distinguem por dizerem coisas diferentes uns dos outros. Aliás, é por ser assim que, entre outras razões, precisamos de democracia.

Ao que parece, a selecção dos até agora conhecidos membros do Gabinete (dos quais alguns talvez não sejam confirmados pelo Senado que com tocante certeza se diz Trump ter no bolso) baseia-se na fidelidade potencial e adesão a algumas ideias axiais (poucas) que Trump terá neste ou naquele domínio.

Perdoe-se-me a ingenuidade: não me parece o pior dos critérios.

Há alguns casos, parece, imperdoáveis: a nova embaixadora na ONU não tem um excessivo respeito pela organização e ainda menos pelas posições desta em relação a Israel. Qual ONU? A dirigida pelo nosso engenheiro da terra em ebulição e das genuflexões perante dirigentes insalubres, das agências para promoção dos direitos das mulheres integradas por muçulmanos, que faz votações atrás de votações intensamente democráticas ainda que a maioria dos membros não sejam países democráticos, e que é um gigantesco monstro de ineficácia e parlapatice? Essa? Tem numerosa companhia, a Elise Stefanik, nas suas antipatias.

E o novo responsável do Ambiente, pasme-se, deseja promover a extracção de petróleo e gás e presume-se que não dê um vintém para o fundamentalismo e a histeria climáticas? Diabo: agora é que o planeta vai assar em 2050, muito depois ainda assim dos industriosos empresários das tragédias fajutas anunciadas, que são legião a produzir estudos subsidiados que os jornalistas, de virtuoso dedo em riste e olho arregalado de susto, propagandeiam.

No mais, navegamos na loucura, como por exemplo a do secretário para a Defesa que quer purgar as Forças Armadas de delírios woke. O que vem isso a ser? Chefias preocupadas com direitos de gays, diversidade, igualdade de “género” e toda a parafernália progressista importada da engenharia social nutrida nas universidades e que nas Forças Armadas contribui para pouca disciplina e ainda menos eficiência.

Há muitos mais potenciais governantes abomináveis, com um ponto comum: nem sempre políticos rodados, são fiéis a Trump e propõem-se aplicar nas suas áreas de governo todas as promessas de revolução e vassoura que Trump anunciou. Estranho caso: muito do que o homem diz não é para levar inteiramente a sério, é uma acusação consistente que se lhe faz. Mas passa a ser desde que seja possível evidenciar algumas consequências fortemente negativas no caso de interpretações literais.

Caso bicudo é o de Tulsi Gabbard, “idiota útil de regimes autoritários” que se teme venha a ajudar a vender a integridade da Ucrânia a troco de feijões, tanto mais que Trump prometeu acabar a guerra num dia. A atoarda, claro, proferida num comício, não é para levar a sério, mas a vontade de terminar a guerra é. E essa vontade não a têm os líderes europeus que são completamente a favor de que morram quantos russos e ucranianos sejam precisos até que a Rússia seja derrotada como foi, no início do séc. XX, pelos Japoneses. Isto, claro, desde que a sombra da NATO paire para conter o urso russo, sem a qual o apetite deste não ficaria satisfeito em caso de vitória. Trump tem esta ideia absurda: se neste pântano bélico é sobretudo a segurança europeia que está em jogo, não se justifica que sejam os EUA a suportar a parte de leão dos custos. E isto quando o eleitor médio americano decerto não ignora a trombeteada superioridade do Estado Social na Europa, nomeadamente na Saúde, como se o apoio que cá é negado às Forças Armadas, e lá não, não se traduzisse necessariamente em diferentes alocações de recursos públicos.

Trump não vai, creio, entregar a Ucrânia de mão beijada porque não se vê o que ganharia com isso e o homem, diz-se decerto com razão, raciocina em termos de negócio (isto é, lucros e perdas) e relações de força, não estados de alma nem neoconteorias. Esta é, de resto, a pedra de toque do seu mandato na vertente externa: se conseguir uma saída honrosa (isto é, em que nem Putin nem Zelensky percam a face) fica com um lugar exaltante na História; se não, também fica – de falhanço e vergonha.

Há o caso de Musk, o consagrado fascista que expurgou o Twitter de controles da opinião publicada, em nome da liberdade de expressão sem as peias virtuosas que os censores de serviço, ao serviço do combate à desinformação e ao “ódio”, lá quiseram e querem implantar. Vem esta liberdade acompanhada de uma quantidade prodigiosa de lixo e entulho? Vem, juntamente com as flores que, como é sabido, nascem por vezes nos monturos; e este novo fascismo, que se reclama da liberdade, é uma refrescante novidade em relação ao antigo.

Musk vai, com outro magnata, tentar cortar cabeças à hidra estatal, que lá e cá metastizou. Ficará aquém, e pode até ser que se desentenda com o colega, e os dois com Trump, que mais do que um galo na mesma capoeira não é bem uma receita para a harmonia. Mas há por aí muitos candidatos a estadistas que, achando que o peso do Estado, o intervencionismo e a regulação foram longe de mais, estejam dispostos a juntar a acção ao reformismo de paleio? Não tenho visto.

“Em suma e em termos globais, a vitória de Trump foi genericamente saudada por ditadores e candidatos a homens fortes, e causou receios entre os aliados democráticos dos EUA, na Europa mas também na Ásia”.

Um excelente ângulo, e legítimo. Tenho outro: A vitória de Trump foi a vitória da democracia. Ganhou contra as sondagens, a opinião publicada, o sistema judicial que num país em que a judicialização da política se transformou em costume foi utilizado despudoradamente para o crucificar, os mandarins do comentário, a intelligentsia e todas as lapas do pensamento incrustadas em grupos identitários.

Ou seja: abriu a porta a que se pense que há mais direita democrática do que a que existe, nem importando muito que seja uma nova ou a antiga que se desloca para onde sopra o vento.

A nós, que vivemos numa União que perde terreno no mundo enquanto nós perdemos dentro dela, isto interessa. Há dias uma ministra do nosso Governo defendeu o reforço da legislação sobre quotas no acesso a lugares dirigentes e de gestão. Dito de outro modo: que se dane a competência e o esforço, o que conta é a identidade. Hoje das mulheres, amanhã de outro grupo social qualquer que se perceba como desavantajado. E outra responsável tinha a intenção de eliminar as cores azul e rosa para distinguir os sexos, ficando tudo amarelo, possivelmente por ser tradicionalmente a cor do burro quando foge. Ou seja, somos forçados a aceitar que o sexo é uma construção social, chamamos-lhe género e quem teimosamente se agarre à tradição e ao bom senso já está com um pé na negação da ciência e na ilegalidade.

De modo que o ilustre ensaísta acha que Trump vai falhar e (um processo de intenções que lhe faço) deseja-o. Já eu acho que vai ficar aquém do que promete e talvez falhe. O que não desejo porque o progresso não vem do aprofundamento de receitas de estatização e de engenharia social que há muito ultrapassaram os limites. Como escrevi algures aquando da primeira eleição não quereria Trump para genro, sogro, sócio, companheiro de jogo ou mesa. Mas, se fosse Americano, era nele que teria votado.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não refletem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.