Portugal, 1976
O CDS vai para congresso. E muitos vêem-no, pelo risco de extinção, como o mais dramático e decisivo congresso desde o cerco a que o partido foi sujeito no Palácio de Cristal, cerco esse levado a cabo pelos antepassados políticos de alguns dos que hoje suportam a minoria socialista no poder. Nesse momento grave da fundação da democracia, os valorosos estoicos que lá estavam resistiram e, chamando a si o que os unia, centraram-se no essencial. O CDS não só sobreviveu como se tornou peça determinante na formação da democracia portuguesa.
Veneza, circa 1598
N’O Mercador de Veneza, de William Shakespeare, Nerissa, dama de companhia de Pórcia, uma rica herdeira de Belmonte em busca de marido, diz que “Não é pouca felicidade acertar com a justa medida. Depressa o supérfluo envelhece, mas a moderação, pelo contrário, é origem de longa vida”, abrindo assim, com esta sábia tirada, a conversa sobre quem virá a ser o digno pretendente escolhido para consorte da sua Dama. Essa escolha recairá sobre Bassânio.
Portugal, 2019
Hoje o CDS vem de dois péssimos resultados eleitorais — as eleições europeias e as legislativas — onde se ensaiaram estratégias e protagonistas diferentes. O trauma é grande; a divergência na interpretação das suas causas maior. Nestes tempos de tormenta o excesso de escrúpulo e o arregimentar de forças leais tende a amplificar o conflito e a diferença. E as emoções tendem a ser mais fortes que a razão. Dostoievski, no Crime e Castigo, bem sublinhou que onde a “razão falha, o Diabo ajuda”; e ajudas do Diabo é coisa que não convém a um partido de matriz Democrata-Cristã.
Veneza, circa 1598 outra vez
Bassânio era um dos três pretendentes de Pórcia. Seria escolhido o que passasse um teste por ela engendrado: escolher acertadamente um cofre de entre um de ouro, um de prata e um de chumbo. Bassânio, seguramente merecedor de crítica como todos os homens não isentos de vício, mas não por falta de amizade, lealdade e nobreza para com os seus, dando corpo à sabedoria que Nerissa verbalizara, mais do que se enaltecer, reflecte primeiro, avalia depois e escolhe por fim o de chumbo dizendo: “Mas a ti, mísero chumbo, que ameaças mais do que prometes alguma coisa, a tua vilania comove-me além da eloquência.” Pórcia rejubila com a escolha acertada afirmando que “(…) a soma total de mim é a soma de (…) não ser ainda tão velha (…) [nem] tão idiota que não possa aprender.”
Portugal, (resto do) séc. XXI
Edmund Burke, conhecido por ser o pai do Conservadorismo, escreveu que um “[Partido é] Um grupo de homens [e mulheres] unidos para a promoção, através de seu esforço conjunto, do interesse nacional, com base em algum princípio determinado com o qual todos concordam.”
Salientaria daqui três coisas que me parecem fundamentais no momento que o CDS vive: a união, por oposição ao sectarismo; o interesse nacional, por oposição a interesses particulares, quiçá tribais; e algum princípio com o qual todos possam concordar, por oposição aqueles que motivem maior discórdia.
No fundo, interessa perguntar se entre democratas-cristãos, liberais e conservadores, nos desafios do presente e na abertura ao futuro, num tempo de discursos polarizados e radicais, não é possível definir uma plataforma de convergência moderada e prudente. Eu estou convencido que sim.
A defesa de menos impostos, menos Estado e menos burocracia na economia, libertando os indivíduos, premiando a iniciativa, estimulando o risco e recompensando o mérito. A defesa de um Estado com preocupação activa com os mais vulneráveis, protegendo quando é preciso, apoiando quando há vontade e responsabilizando quase sempre; mas um Estado que não se resigna enquanto houver autonomia para promover e dignidade humana para restaurar, não deixando ninguém para trás. A defesa de um Estado que se limita, nos seus diversos poderes e uns aos outros, para proteger as liberdades individuais e não um estado que existe obcecado em limitar as liberdades individuais. A defesa de um Estado forte e com autoridade na segurança, na defesa e na justiça, mas ausente naquilo que os privados façam melhor e tendencialmente ausente naquilo que os privados possam vir a fazer melhor. A defesa de um Estado que privilegia as complementaridades, respeita as escolhas e racionaliza a gestão naquilo em que os cidadãos possam beneficiar dessa complementaridade, como na saúde, na educação e na segurança social. Um partido que olha para o futuro, e para os seus desafios, com a síntese do olhar de um democrata-cristão, de um liberal e de um conservador: com abertura e com prudência.
E tudo isto por convicção, e tudo isto por oposição quer a uma visão socialista do país, mais empenhada até numa prosaica gestão da situação e das clientelas que propriamente na construção de um qualquer “amanhã que canta” pleno de “homens novos”. Mas também por oposição a uma visão reaccionária, que quer a restauração de uma ordem velha e musculada de um “passado de ouro”, na verdade mais mitómano que realista.
Epílogo
Em síntese, o CDS precisará de um líder que reflicta, que agregue e não divida, que se centre no essencial e no útil, que seja moderado, aberto aos desafios do futuro e prudente nas decisões, e que depois tenha a coragem de decidir e decida bem, pelas boas razões. Como Bassânio, que fez da moderação a sua força. Ou como Adelino Amaro da Costa que, num célebre discurso na Assembleia Constituinte, em 1976, afirmou que é “na política económica, [e] na clarividência dos partidos políticos mais responsáveis (…) [que se] joga o futuro de Portugal. (…) [E que, tendo o CDS terminado] este ano com perspectivas sombrias, [j]ulgo, porém, que a nossa esperança na democracia, na reconstrução e na reconciliação, tem sérias razões para sobreviver.”