Se as eleições municipais no Brasil parecem marcar o princípio do fim do bolsonarismo, a política vigente de terra queimada está mais forte do que nunca. Nos resultados do primeiro turno deste pleito, uma imensa massa popular votou no gado e na soja, sobretudo nas regiões mais remotas onde o desmatamento acontece. É aqui que a bancada ruralista confirma a sua capilaridade ao nível local, através de uma rede de cabos eleitorais e de muito dinheiro que patrocina a eleição dos seus candidatos.
Na Amazónia e no Pantanal, pecuaristas foram eleitos ao longo dos eixos rodoviários de escoamento da produção agropecuária. É o caso dos municípios de São Félix do Xingu, Altamira, Novo Progresso, Borba, Humaitá, Canutama, Labréa, Alto Boa Vista, Apuí, Novo Aripuanã, Marcelândia, Feliz Natal, Juara, Peixoto de Azevedo, União do Sul, Pedra Preta, Colniza, São José do Rio Claro, Corumbá, Porto Velho, Nova Mamoré, entre tantos outros municípios que batem novos recordes de desmatamento nos últimos anos.
Esta realidade, apesar de assumir hoje proporções nunca vistas, não é nova. Até hoje, nenhum governo conseguiu demarcar-se dos interesses da bancada ruralista, independentemente do seu quadrante político. A novidade é que o avanço das agendas designadas pela Frente Parlamentar da Agropecuária, não é mais moderado pelas instituições e normas de defesa do meio ambiente, hoje asfixiadas pelas pressões políticas concertadas das bancadas do boi, da bala e da bíblia no Congresso e no Senado brasileiros.
A conjuntura crítica de devastação que se vive hoje no Brasil é o produto de um pacto social entre grandes latifundiários expansionistas e uma miríade de agentes económicos que participam de forma fragmentada em processos formais e informais de apropriação de recursos naturais. Este pacto assume formas mais ou menos discretas e nunca é declarado explicitamente, mas é tacitamente reconhecido por todos os atores, enquanto suas práticas criminosas são legitimadas pelas ações e não-ações do Estado.
O governo de Bolsonaro escancarou esta realidade de forma ostensiva, estimulando a impunidade a crimes ambientais como moeda de troca ao seu apoio parlamentar. Se a derrota dos candidatos do seu círculo político mais restrito parecem, à primeira vista, enfraquecer o atual governo, a eleição e reeleição de prefeitos e vereadores ligados ao agronegócio são instrumentais para implementar no terreno o programa predatório que conduziu o “Mito” ao poder.
Neste quadro político-institucional, só a mobilização imediata e firme de uma frente ampla em defesa da natureza e dos povos indígenas poderá barrar a fúria de destruição desta legislatura. A jurisprudência brasileira pode ainda acionar ações de inconstitucionalidade que visem evitar graves retrocessos à conservação do meio ambiente, como é o caso dos Projetos de Lei 191/20, e 2633/2020, entre outros diplomas que circulam nos meandros políticos de Brasília e que são tão caros a este governo.
Face aos compromissos assumidos pelo Brasil no plano internacional, é também necessário exigir soluções para reduzir as emissões de gazes de efeito estufa pelo complexo industrial da carne. O recém-criado Observatório do Meio Ambiente pelo Conselho Nacional de Justiça, bem como o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima e o Fundo Amazónia, podem ser usados para dirigir ações judiciárias para a proteção de interesses inter-geracionais e a defesa de direitos humanos, particularmente em territórios especialmente protegidos.
É importante notar, que apesar da sociedade brasileira ser profundamente marcada pelo patrimonialismo, a priorização de uma lógica expansionista pelo lobby do agronegócio representa apenas os interesses restritos de uma parcela deste setor. Na verdade, a preponderância de uma perspetiva que busca o lucro imediato, constitui não só uma ameaça ao meio ambiente, mas também à própria atividade agropecuária, que se coloca numa posição cada vez mais difícil de fragilidade hídrica, decorrente da sua expansão contínua.
Cabe assim, também, ao próprio setor combater os passivos ambientais, sociais e económicos que o aumento extensivo da produção agropecuária representa, comprometendo a sustentabilidade do seu sistema produtivo. Para além dos seus impactos na degradação ambiental e nas graves perdas de biodiversidade, esta lógica expansionista traz na sua esteira insalubridade, pobreza, seca e escassez.
O que estas eleições revelam, é que a base ideológica que deu origem ao atual quadro de devastação ecológica é muito mais representativa da sociedade brasileira do que o núcleo duro de apoio a Bolsonaro. Por isso, uma verdadeira alternativa só poderá emergir de uma mudança profunda de prioridades das suas forças sociais, para que seja possível o surgimento de novas arenas políticas, capazes de vencer os interesses económicos que hoje têm o Estado na mão.