O Serviço Nacional de Saúde (SNS) que temos é inviável, insustentável a médio prazo, e já incapaz de garantir a obrigação de proteger a saúde de quem vive em Portugal de forma geral e universal. O ponto base do pacto político é a Constituição da República Portuguesa. O articulado pode ser melhorado e incluir “no ponto de contato”, depois de “tendencialmente gratuito”, ou reforçar os princípios de “saúde em todas as políticas” e da avaliação obrigatória de impactos na saúde de todas as políticas públicas, incluindo áreas fiscais e económicas. Mas não vale a pena suscitar uma discussão longa e inconsequente se for sentido que se está em campos politicamente intransponíveis. Com a Constituição que temos, mau grado algumas imperfeições como as que resultam de conflitos entre liberdade individual e direito coletivo à proteção da saúde, podemos reformar o SNS. A Constituição, por conseguinte, não servirá de desculpa, não é entrave à mudança.
Qualquer processo de reforma do SNS, no ponto em que estamos, obrigará a duas legislaturas completas, oito anos, pelo que só será possível por um acordo de longa duração, idealmente plasmado numa lei de programação da saúde, tal como existe para outro tipo de investimentos, como os da defesa.
Os temas a cobrir deverão englobar:
- Recursos humanos nas vertentes de definição de necessidades de contingentes, formação pré e pós-graduada, remunerações, avaliação de desempenho e progressões.
- Meios técnicos tendo em vista a sua adequação, e distribuição territorial, sem esquecer a manutenção e melhorias (upgrades) dos existentes.
- Edificado, construindo os hospitais e centros de saúde em falta, resolvendo a manutenção dos que já existem.
- Política de medicamentos e dispositivos médicos, onde vai ser preciso voltar a resolver todo o problema das dívidas acumuladas, como foi feito no governo do Dr. Passos Coelho, e apostar mais forte e consequentemente na prática baseada na melhor evidência e em mecanismos sólidos e céleres de avaliação tecnológica.
- Promoção e prevenção da saúde que não podem ficar reféns de atores que olhem para a defesa da saúde como um incómodo. O maior desperdício em saúde é a proliferação de doenças preveníveis. O princípio da saúde em todas as políticas deverá ser a ideia orientadora da governação da saúde. A legislação sobre produtos alimentares, álcool, tabaco, substâncias aditivas, medicamentos, educação para a saúde e política educativa, segurança rodoviária e no local de trabalho, atividade física e desporto, urbanismo, poluição, águas de consumo e residuais, pesticidas, ruído, natalidade, emprego e segurança social, etc. e é um etc. bem longo, não pode ignorar que a proteção da saúde das pessoas é um direito e um objetivo primário de um Estado. Por exemplo, ao estarmos a discutir o inevitável e indispensável aumento do salário mínimo, convirá não esquecer os impactos positivos sobre a saúde, há muito demonstrados, do aumento do rendimento familiar disponível, quando conjugado com medidas orientadoras do consumo.
- Reforço da capacidade reguladora do Estado, incluindo maior exigência das estruturas profissionais, as Ordens.
- Financiamento para permitir as reformas necessárias em todos os pontos anteriores e, dessa forma, garantir a sustentabilidade do SNS.
O compromisso que for estabelecido deverá vincular o maior número possível de stakeholders, mas não poderá ficar dependente de forças de bloqueio, como têm pontualmente sido algumas organizações de profissionais, indústrias da saúde, agentes económicos e até organizações de utentes ou de prestadores. Para isso, o empenhamento político deve ser total e multipartidário, sem olhar a popularidades locais, táticas eleitorais ou a pressões de governantes que entendam a governação da saúde das populações como sendo naturalmente antagónica dos interesses económicos do país.
O financiamento do SNS é um instrumento, entre outros, para garantir que se cumpra o direito à proteção da saúde. Li com agrado o recente artigo do Prof. Mário Amorim Lopes que recomendo. Pessoalmente, prefiro o Estado como pagador de todo o sistema, embora me pareça que há instrumentos como a ADSE que podem ser melhor aproveitados e tornei-me um defensor da obrigatoriedade de todos os contratados pelo Estado serem inscritos nesse seguro público. Há, certamente, soluções mistas – com Orçamento de Estado, Seguros Públicos e Privados – que até já existem em Portugal, a partir das quais podemos evoluir num período de tempo relativamente curto.
Quanto à contratualização interna, de que os centros de responsabilidade integrada são um exemplo, tenho reservas que já anteriormente expressei e estou convicto de que este modelo só tem viabilidade em contexto da produção de atos como exames e, talvez, algumas intervenções menores. Toda a contratualização interna, até mesmo para o “exterior” com modelos de preço compreensivo, acarreta o risco de haver compromisso da qualidade em benefício do custo. Mas também é verdade que se o pricing em saúde é de extrema complexidade, não é matéria irresolúvel.
Seja como for, o mais importante é que o dinheiro não falte onde seja preciso, não se desperdice no que não faz falta e assegure que nada fica por ser pago. Obrigatoriamente, haverá a necessidade de assegurar o lastro básico de custos fixos e montar um sistema em que o dinheiro siga o cliente. La Palisse não diria melhor. Mas hoje não é assim e o financiamento público é racionado à partida, abaixo das necessidades básicas e sem contemplar os picos de procura além da inflação gerada, às vezes mensalmente, pelo aumento de preço das tecnologias. Os menos conhecedores, observadores exteriores à luta diária pela sobrevivência económica de um SNS subfinanciado que vai escamoteando carências pelo esforço hercúleo dos seus profissionais, dirão que não será por falta de dinheiro, mas por deficiências de gestão que o SNS está mal. São as duas coisas e nem sempre ter menos é garantia de melhor gestão. É preciso mais dinheiro, melhor distribuído e, certamente, melhor gerido. Vai ser preciso gastar em investimentos com retorno para que se garanta a capacidade de prover cuidados a quem deles necessite, com a qualidade adequada ao longo do tempo. Isto é, sustentabilidade.
O financiamento deve ser o necessário e adequado para que os componentes de resultados e profissionalismo, controlo de riscos, eficiência no uso dos meios e satisfação dos utentes e profissionais sejam atingidos. O fim da reforma não será a poupança, mas sim a melhoria da qualidade. É certo que o modelo de financiamento, tal como a retribuição do trabalho, influencia a eficiência, mas não é por mudar o modelo de pagamento e distribuição de dinheiro que o SNS deixará de precisar de “pipas de massa”.
É preciso mais dinheiro para investir na prestação de cuidados de saúde, mas não é evidente que tenha que vir todo dos impostos pagos pelos Portugueses. No fim pagamos todos, mas poder-se-á pagar mais depressa ou mais devagar. Sejamos absolutamente honestos. Os níveis de investimento constante nas estruturas, meios técnicos e pessoas necessárias para manter uma estrutura de saúde com cobertura universal, geral e tendencialmente gratuita não pode repousar apenas em estruturas que sejam propriedade do Estado. Uma prestação de cuidados apenas assente na estrutura do Estado, um SNS monolítico, não chega para as nossas necessidades atuais e nunca poderá chegar para o que aí vem, se pensarmos nos preços crescentes de tecnologias e aumento de pessoas a precisarem de cuidados. E aqui entraríamos numa outra discussão, evitada por uma certa esquerda, a das PPP – que, no campo da prestação de cuidados de saúde, deveriam ter sido melhoradas e não extintas – e da partilha de risco ente o sector privado e o Estado. Note-se que eu não tenho uma visão acrítica sobre as PPP da saúde, ainda por avaliar completamente, já que os supostos bons resultados financeiros precisam de ser cotejados com melhores resultados de saúde, o que ainda não foi feito. E há áreas onde as PPP falharam rotundamente, sendo a do acesso a consultas de seguimento um dos exemplos mais clamorosos.
Uma reforma sistémica deve preocupar-se com questões como o acesso em tempo útil e a comodidade dos utentes, sejam doentes ou saudáveis, nos pontos de prestação de cuidados. O sistema deve poder ser concorrencial e colaborante, com regras explícitas que envolvam matérias que irão da publicidade ao controlo da qualidade e definição de preços justos. O acesso generalizado de todos a todo o sistema, com liberdade total de escolha, só poderá acontecer com controlo de qualidade assegurado e garantindo que o pagador não é enganado. Por isso, a reforma deve também incluir um reforço da capacidade do Estado regulador, necessariamente dispendiosa e com custos geralmente omitidos nas contas dos que julgam ser simples privatizar totalmente a prestação.
A intervenção do Estado na saúde não poderá ser apenas reguladora, ainda menos quando também há assimetrias de rendimento familiar e de distribuição geográfica das populações como acontece em Portugal. As questões das assimetrias na informação e na perceção de serviço recebido, habitualmente avaliado a curtíssimo prazo pelo consumidor, introduzem desvios no mercado da saúde que o afastam de outros sectores de vendas a retalho. Precisamos de uma complementaridade entre sectores público, social e privado. O SNS não pode, nem deve, ser completamente substituído pelo resto do sistema, os setores social e privado, na esperança de que estes possam cumprir todas as tarefas acometidas ao SNS estatal.
Quase tudo o que se tem escrito sobre a reforma do SNS incide em como diminuir a despesa em saúde, do Estado e das pessoas, elencando formas de ter um SNS mais barato. Ora, o problema não passa inicialmente por reduzir o gasto em saúde. O que está em causa é melhorar a efetividade e a eficiência, garantir que a razão entre dispêndio e benefício diminuiu à custa do aumento proporcional do denominador. Uma coisa é certa. A despesa com saúde vai sempre aumentar e só poderá diminuir quando o número de doentes que exijam tratamentos longos e caros tendencialmente decrescer.
Excelente, o texto do Prof. Miguel Gouveia. A eficiência será conseguida pelo combate ao desperdício, eliminando locais de prestação, horas de trabalho, deslocações desnecessárias, procedimentos e tratamentos inúteis, e pelo reforço da formação e controlo da boa prática. O financiamento público não deve cair na armadilha de julgar que será por ser racionado que o desperdício desaparece. Mais do que “despejar” dinheiro, o financiamento deve escolher bem as suas prioridades e sequências de intervenção. Um exemplo? A necessidade de começar imediatamente a criar uma rede de comunicações, funcionante e operacional a tempo inteiro, amiga do utilizador, que junte todas as instituições de saúde, permitindo a generalização do processo clínico eletrónico único. Há mais necessidades, mas quem resolver a questão da interoperabilidade e comunicações dará um passo enorme para a melhoria da eficiência e segurança clínicas. Ainda mais simples? Que os telefones sejam atendidos quando se liga para alguém de uma instituição do SNS.
Em Portugal e um pouco por todo o mundo abundam grupos de trabalho, fóruns de reflexão, think tanks, associações, academias, escolas, convenções, agremiações que se dedicam a discutir e produzir algum pensamento, muito dele com qualidade, sobre a saúde. Já o escrevi anteriormente, não nos faltam documentos com propostas de todos os quadrantes. Não vamos precisar de reinventar a roda. Na verdade, neste pequeno “ensaio” não escrevi nada de novo.
Em suma, temos de aproveitar o que já foi pensado e escrito, implementar as soluções conhecidas e cientificamente comprovadas para aumentar a saúde da população e melhorar as respostas à doença, com a certeza de que só com vontades política e socialmente unidas será possível assegurar o direito universal à proteção da saúde.