Helena Garrido, que não tem a reputação de ser uma feroz reaccionária, fez há uns tempos um excelente libelo contra o Governo de António Costa. Não era, nem podia ser, exaustivo, senão o artigo ficaria demasiado extenso. Mas falava da TAP, da “reversão” da austeridade, da distribuição de dinheiro para manter eleitores, dos empregos para rapazes e raparigas do PS, da captura do Estado, da descapitalização, degradação e desmoralização dos serviços públicos, da Educação que teve 7 anos de sucessivos anunciados progressos para (conclusão minha) chegar à derrota final, e ainda da habitação, sector que agora o Governo tem envidado esforços para acabar de demolir.

A isto acrescentou um sortido de asneiras demagógicas costianas, apesar do que, se feito por mim, o libelo seria muito mais virulento – o nosso Primeiro é uma manifestação evidente do princípio de Peter, sendo que no caso dele a presidência da Câmara de Lisboa já foi o patamar que não deveria ter ultrapassado, e onde a sua vacuidade só não foi notada por ser quase uma tradição nas funções.

E também não deixaria de falar em impostos, cujo nível é suicidário para um país como o nosso, nem no peso do Estado, que é para todos os países uma mochila necessária que carregam às costas mas cuja dimensão num caminhante débil, que precisa de andar mais depressa que os outros, é um factor determinante do arrastar de pés.

Sucede que o Estado, que Costa engordou, e os impostos, que o celebrado Centeno aumentou enquanto catedratizava sobre a fantasia de os estar a reduzir, e que a inflação agora engorda ao mesmo tempo que o Governo “dá” umas migalhas sortidas para não deixar fugir eleitores, fazem parte do pacote de problemas cuja resolução é necessária para sair do marasmo. Vamos sair? Claro que não, até onde a vista alcança, mas talvez um pouco, se o PS for varrido.

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Ao contrário do que se diz, Costa sempre teve uma ideia para o país, que partilha com boa parte do PS, do PSD, da comunicação social e da intelligentzia. Há diferenças entre a esquerda que o PS representa (a outra é ou fóssil ou demente) e a chamada direita, mas sobretudo de grau, não de essência. Mesmo que esta diferença fosse suficiente para reverter a colonização do aparelho de Estado pela cáfila voraz dos portadores do cartão PS, fazer alguns modestos cortes na despesa inútil que permitissem dar algum sangue ao anémico SNS, estancar o crescimento do Estado, cortar nas tácticas desonestas dos focus groups, e de modo geral conferir à política um módico da nobreza e decência que não tem tido.

Quem quiser ver que ideias são essas para o país defendidas consistentemente poderia entreter-se a exumar as prestações de António (como lhe chamavam carinhosamente os companheiros de painel) na Quadratura do Círculo. Exercício aliás pedagógico para os eleitores que votaram e revotaram naquele mal-entendido em forma de pessoa, tal é o abismo entre o país ambicionado e o real.

Uma é a educação. Guterres, sempre a esponja da intelectualice pateta que anda no ar da modernidade de esquerda, que deixou, juntamente com o pântano, a memória da paixão pela educação que abrasava o seu coração engenheiral, achava que era ela a mola do desenvolvimento. E deixou essa herança, que Costa glosa de mil maneiras. Porém, se sem educação não é possível desenvolvimento, daí não decorre que a educação, por si só, o promova. De resto não há nenhum factor isolado, absolutamente nenhum, que por si seja a pedra filosofal do desenvolvimento.

Os países comunistas sempre privilegiaram a educação, mas foram pela escada abaixo sobretudo por não terem podido produzir sociedades que economicamente pudessem competir com o Ocidente. E as resmas de arquitectos e dentistas, por exemplo, que agora produzimos e que nos custam os olhos da cara vão alimentar o Dubai, o Reino Unido e outros lugares, mas a terra que os formou não. Assim como todos os anos as universidades despejam no mercado gestores e economistas que se distinguem por não fazer empresas, embora estejam prontos a ministrar conselhos a quem as fez e a engordar os organismos onde se projecta o futuro e se criam empecilhos ao sector produtivo. As empresas nascem onde não há entraves à sua criação, existe capital disponível, liberdade económica, respeito do direito de propriedade, que inclui uma fiscalidade que não seja predatória, tribunais (e câmaras municipais, e autoridades disto e daquilo) que funcionem, não se tenha a pretensão de inventar um capitalismo sem defeitos nem desigualdades, e muitos outros requisitos – todos identificados avulsamente há muito.

Outra é a formação, parente da primeira, e assenta no equívoco de se achar que o poder sabe, mas os empresários não, quais são as formações necessárias. Daí que uma parte dela seja eventualmente útil; e a maior parte consista em pessoas que fingem que ensinam a pessoas que fingem que aprendem conhecimentos que de todo o modo não servem para nada. Um entendimento correcto das funções do Estado consistiria nisto: Querem os empresários fazer formação porque dela precisam? Façam-na – à custa deles e sem ajudas.

Outra é o apoio da Europa, que se materializa em subsídios. Já é assim desde 1986 e o bodo sempre se destinou a assegurar a convergência, a qual já existiu num período relativamente curto mas se esfumou entretanto – há mais de 25 anos, com excepção daqueles em que, por causa das dificuldades da Alemanha e da Itália, se deu uma ilusória aproximação à média. Extraordinário que se acredite que é com subsídios a fundo perdido que as diferenças se esbatem: o Norte da Itália é, comparativamente ao Sul, rico, e assim se mantém não obstante as transferências de meios; e os países que escalaram lugares no desenvolvimento dentro da EU não dispuseram de mais abundantes recursos alheios que nós, que deslizamos em direcção ao produto por cabeça da Albânia. Ao qual sem dúvida chegaremos se o eleitorado continuar a ser comprado a esmolas que acredita serem triunfos e munificências que julga não lhe saem do bolso.

Claramente: O mecanismo dos subsídios garante o poder da burocracia europeia (ao qual não nos podemos subtrair porque Portugal, embora não se tenha ainda reparado, há muito deixou de ser um país independente), o da burocracia política caseira, isto é, o PS e o PSD, o das agências governamentais que vivem da selecção das candidaturas, e o dos gurus da economia que têm visões para o país, todas redentoras, todas a apostar que agora é que vamos dar o salto, e todas falhadas. O exemplo mais recente é o PRR, que está a servir para financiar o Estado e dar uma aparência de crescimento, que porém não será sustentável (com perdão da expressão, tirada do jargão de economista).

Garante isto. E também a corrupção, o financiamento da concorrência desleal e a torrefacção de fundos em projectos ocos ou faraónicos. Finalmente, e talvez não em último lugar, a ideia de que o investimento privado é uma coisa que não é pensável sem apoio do dinheiro dos contribuintes é um dano permanente à sanidade da economia.

Outra é o papel central do Estado. O Estado de Costa sabe, os cidadãos, mormente os empresários, ignoram. E é precisa a mão reguladora, permanentemente em estado de diarreia legislativa, que diz o que se deve produzir, onde, de que forma, com que regras, tudo salpicado de autoridades e multas, as primeiras pesporrentes e metediças, as segundas terroristas.

Outra é a igualdade. A igualdade é uma maldição de esquerda que a direita comprou. A dignidade humana impõe que não haja pessoas na miséria, e que o mínimo de subsistência, ajuda na saúde, na justiça e na educação estejam assegurados. Mas lá onde a obsessão com a igualdade económica implica, como entre nós, praticamente o achatamento da classe média e a decapitação dos ricos, e por conseguinte da acumulação de capital, o que sobra, na ausência de crescimento, é a distribuição da pobreza para uns, e da mediania pobreta para outros. Estes últimos, se tiverem formação (e têm, crescentemente) e forem novos dão à sola para mais verdes pastagens. É uma das realizações de Costa, e o mais seguro testemunho, pelas suas consequências, do manto negro que pousou sobre o país.

Outra são as gloriosas conquistas de Abril, em particular o SNS. Este serviço, por ter sido concebido como universal e gratuito, só pôde funcionar nesses termos enquanto a dívida pública crescia sem rei nem roque, e distinguiu-se por progressos assinaláveis nos indicadores de saúde. Desde a falência socratiana, porém, o PS interiorizou a convicção de que não é boa ideia ignorar os credores e os nossos patrões europeus. E logo o SNS mostrou o ligueiro, sendo agora uma ruína grotesca, tão completa que a maior parte das camas já estão no sector privado; e a verdadeira saúde tempestiva é coisa para quem a pode pagar depois de ter pago os impostos que sustentam a outra. Há um sítio, um sítio apenas, onde o socialismo funciona bem – é no papel.

Há mais, muito mais: a economia circular, as energias renováveis para combater o aquecimento global, e dezassete outras ideias moderníssimas que vamos seguir dando o exemplo a um mundo admirativo, desde que a UE apoie – e apoia, graças a Deus. Daqui a dez anos as ideias serão outras, como as de hoje não são as mesmas de há vinte.

De modo que não é verdade o que, sobre Costa, diz a Helena:

Sim, temos alguns objetivos com os quais todos estamos de acordo, entre eles aumentar o rendimento por habitante e especialmente reforçar o peso dos salários no PIB. Mas como é que lá vamos chegar? Não sabemos e temos todas as razões para crer que o Governo também não sabe”.

Eu, que se me perdoe a petulância, sei alguma coisa. E também a sabe Helena Garrido e todos os que, não sendo comunistas nem aparentados, ganharam alguma impermeabilidade à propaganda, que, juntamente com a eficácia terrorista da AT, são os únicos sectores em que os dois últimos governos brilharam.

Crescer? Costa não sabe, mas tem a excelente desculpa de nunca ter sabido.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.