A TAP é talvez o caso que melhor ilustra como os erros se pagam. O melhor que poderia ter acontecido a António Costa era ter perdido as eleições para evitar ter agora de enfrentar a sua herança, como está a acontecer e se vê de forma tão clara na TAP. O interessante, do ponto de vista do interesse académico, é como António Costa tem conseguido sair incólume destes sete anos em que governou para conquistar e manter o poder, pelo poder e para o poder. Assim como interessante é ver o PCP e o Bloco de Esquerda a actuarem como se não fossem também responsáveis por esta herança, por estes tempos difíceis que estamos a viver na Saúde, na Educação e, claro, pelo caso da TAP.

Quando, a partir de 2015, assistimos à política designada de “reversão” da austeridade, que não era mais do que usar a margem financeira ganha entre 2011 e 2015 para dar dinheiro aos funcionários públicos e aos pensionistas, veio logo à memória o que tinha acontecido em 1985. Também nessa altura o então primeiro-ministro Aníbal Cavaco Silva recebeu um país com margem para chegar depois à maioria absolta em 1987. Com António Costa, simplificando, assistimos ao mesmo receituário: distribuir dinheiro para conquistar eleitores. A diferença é que Cavaco Silva levou menos tempo para conquistar a maioria absoluta e nos oito anos seguintes mudou o país, quer porque assim tinha de ser por via da adesão à então CEE, quer porque tinha uma ideia para o país que concretizou com os recursos que vinham da União Europeia.

António Costa tem a maioria absoluta, tem dinheiro, mas falta-lhe a si e à sua equipa uma ideia para o país. Como vê Portugal daqui a cinco anos, quando em princípio deixar de ser primeiro-ministro? Como gostaria de deixar o país passados mais de dez anos de governação? Sim, temos alguns objetivos com os quais todos estamos de acordo, entre eles aumentar o rendimento por habitante e especialmente reforçar o peso dos salários no PIB. Mas como é que lá vamos chegar? Não sabemos e temos todas as razões para crer que o Governo também não sabe.

Foram sete anos a distribuir dinheiro e arranjar empregos para os rapazes e as raparigas, numa captura inédita do Estado por um único partido, enquanto o PCP e o BE assistiam calados e sem nada denunciarem à descapitalização e degradação dos serviços públicos. Hoje António Costa tem a Educação que construiu durante sete anos, tem a Saúde em que não investiu até à pandemia, tem os serviços públicos em geral degradados e desumanizados, sem capacidade de recuperação da pandemia. Tem a TAP que escolheu ter quando resolveu aumentar a participação do Estado na companhia e seguir o modelo que seguiu nos apoios durante a pandemia. E na habitação, a sua responsabilidade é ainda maior, porque soma ao seu mandato de primeiro-ministro, o de presidente da Câmara de Lisboa.

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Se as políticas públicas tivessem sido diferentes, se em vez de usar a margem financeira, ganha durante o ajustamento de 2011-2014 e deixada por Pedro Passos Coelho, a distribuir dinheiro pelos funcionários públicos e pelos pensionistas tivesse usado, pelo menos uma parte, para investir nos serviços públicos, o país estaria melhor. Se em vez de prometer reversões, que seriam impossíveis na sua totalidade, como agora se demonstra no caso dos professores, tentasse prosseguir com algumas reformas do Estado, como a simplificação e desburocratização, o potencial de crescimento seria hoje mais elevado. Se em vez de assustar os pensionistas com Pedro Passos Coelho, tivesse tido a coragem de fazer uma reforma nas pensões, hoje não teria de ter feito o truque dos aumentos das pensões e a inevitável reforma que aí vem significaria menos cortes para os pensionistas futuros. Se em vez de criticar a reforma do arrendamento urbano de Assunção Cristas, que permitiu ter hoje os centros das cidades recuperados, tivesse continuado a incentivar a iniciativa privada na construção e no arrendamento, em vez de continuar a agora desnecessária política de atrair quem quer fugir aos impostos no seu país, talvez hoje estivéssemos com mais casas. E podíamos continuar, com a Educação e a Saúde que são cada vez mais um factor de desigualdade.

Mas o problema mais grave não é tudo isto ter acontecido, não é o passado, mas o que vemos para o futuro. O mais grave é não vermos no Governo ideias, energia e capacidade para agora, com a maioria absoluta, adoptar medidas que de facto gerem a mudança no sentido de mais prosperidade. O pacote da habitação é um exemplo. Sim, de facto o Governo mexeu-se, mas aquilo que anunciou corre o risco de ser impraticável e, pior ainda, assustar imensas pessoas que têm casas para arrendar, redundando numa redução da oferta.

Aparentemente os portugueses estão conscientes do que se está a passar. Na sondagem feita pelo Centro de Estudos e Sondagens de Opinião (Cesop), da Universidade Católica, para a RTP, a Antena 1 e o Público, verifica-se uma subida muito significativa das preocupações com a governação. A inflação é identificada como a principal preocupação de 20% dos inquiridos e as matérias económicas, que incluem temas como economia, baixos salários e desigualdade somam 36% das respostas, quando em Julho de 22 correspondiam a 24%. Mas as matérias ligadas à governação – que surgem logo como segunda preocupação manifestada com a governação, a que se juntam a corrupção e a credibilidade/capacidade dos políticos –, passou a ser identificada por 30% das pessoas, mais do dobro dos 14% de Julho de 22.

O que se faz, o que se anuncia, parece continuar a sofrer do vício original deste governo: anunciar a distribuição de dinheiro e governar para conquistar o coração de urbanitas que têm o seu mundo limitado aos centros das grandes cidades e confundem os seus problemas com os problemas do país, sem terem qualquer capacidade de distanciamento. O facto de a habitação ser identificada por 3% dos inquiridos nesta sondagem é bem o reflexo da diferença que existe entre os problemas que ocupam o Governo e os que preocupam a maioria das pessoas. E nesta sondagem vemos bem que é na comida (e na saúde) que estão os maiores problemas. Esta é uma crise que como todas afecta a classe de rendimentos mais baixos, mas que chega sob a forma de dificuldades de pagar as contas da alimentação.

É interessante que apesar do diagnóstico expresso na sondagem, os resultados apontam no sentido da manutenção do Governo – mais do que acharem provável que cumpra o mandato até ao fim, consideram que é melhor para o país. António Costa, parecem querer dizer os portugueses, tem de gerir a sua herança. E quem sabe conseguir ainda deixar uma herança melhor ao seu sucessor do que aquela que acabou por dar a si próprio e com a qual tem de lidar. O país não parece ver alternativas e entra em modo sobrevivência, como António Costa.