Esperemos que o primeiro-ministro nos venha dizer que é precipitada esta perspectiva, de os aumentos salariais no sector privado serem pagos às empresas privadas com dinheiro do Orçamento do Estado, tal como o fez sobre as análises ao que o Governo pretendia fazer em matéria fiscal – embora nesse domínio, a política de englobamento mereça mais elogios do que criticas. Mas pelas declarações que temos ouvido das associações patronais parece pouco provável. Fazem apenas questão que não se fale em “compensações” pelos aumentos salariais que poderão ser acordados em sede de Concertação Social.

É lamentável ver os empresários a quererem que seja o Orçamento do Estado a pagar os aumentos salariais, em vez de batalharem pela modernização, por aquilo que dará futuro aos seus negócios e empresas. E ainda mais grave é ver a abertura que os empresários estão a dar para condicionar a sua liberdade, aceitando estas “dádivas”, com riscos para a democracia.

Ponto prévio: não estamos aqui a criticar as decisões de aumento dos salários que, como veremos mais adiante, pode ser uma boa estratégia se for realizada com prudência e principalmente se não for o dinheiro dos contribuintes a subsidiar essa subida. Temos estado a actuar como se nunca mais fosse existir nenhuma crise com aumento do desemprego, esquecendo-nos que, se os aumentos forem imprudentes e completamente desligados da produtividade, o desemprego será maior do que no cenário alternativo de subidas mais prudentes. E que o Estado pode, em tempo de crise, ter de acabar com os subsídios salariais que parece agora preparar-se para dar ao sector privado.

Mas vamos ao que tem sido pedido pelas associações patronais para “compensarem” os aumentos do salário mínimo e dos rendimentos que se prevê que resultem do acordo de concertação social.

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A Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP), liderada por João Vieira Lopes, pediu ao Governo, logo na reunião da Concertação Social que se realizou a 6 de Novembro, que o aumento do salário mínimo seja compensado por via da actualização dos  contratos que o Estado tem com as empresas do sector. E quer que tal seja previsto no Orçamento do Estado. Já na fase em que estamos, de negociação da política global de rendimentos – a decorrer a 27 de Novembro –, o Governo não disse que não. Como se pode ler neste artigo do Público, fonte do Governo afirma que não será essa proposta que vai impedir as negociações, considerando que é uma reivindicação justa e que o encargo a ela associado não é elevado. Estamos a falar fundamentalmente de empresas de limpeza e de restauração.

Lemos isto e temos de ler duas vezes para ter a certeza que percebemos bem. Mas o Estado pode rever contratos que tem com as empresas privadas porque os seus encargos salariais aumentaram? Não existem regras de contratação pública que têm de ser respeitadas? E quando o salário mínimo voltar a aumentar em 2021, como está programado, os contratos vão ser de novo actualizados para compensar a subida? E quando outros custos aumentarem, o Estado também vai compensar as empresas? Se ao menos estivéssemos a falar de atualizações com base na inflação, mas não é isso que se passa.

Mas a CCP quer ainda a redução do IVA da electricidade, argumentando que isso permite aumentar o poder de compra das pessoas. Sem dúvida que sim, se isso se repercutir nos preços. Mas é também mais uma compensação para as empresas de um sector que, no caso da restauração, já beneficiou de uma irracional descida do IVA no início do primeiro Governo de António Costa, sem que isso tivesse aumentado o poder de compra.

Resumindo, a CCP quer que os contribuintes portugueses subsidiem os aumentos salariais das empresas privadas de comércio e serviços.

A Confederação Empresarial de Portugal, liderada por António Saraiva, quer acabar ou reduzir as contribuições para os fundos para pagar as indemnizações por despedimento aos trabalhadores. Mais uma vez, o objectivo é compensar os aumentos salariais decididos em sede de concertação social.

São cerca de 370 milhões de euros que estão em dois fundos criados em 2013 por proposta de João Proença da UGT, na sequência das alterações das regras de despedimento e indemnização. O Fundo de Compensação do Trabalho (FCT), para onde as empresas têm de descontar 0,925% do salário dos trabalhadores, permite que as empresas vão lá buscar cerca de 50% do valor da indemnização paga em caso de despedimento. O Fundo de Garantia de Compensação do Trabalho tem como principal objectivo pagar as indemnizações dos trabalhadores quando a empresa entra em insolvência e, para isso, as empresas descontam 0,075%.

Esperemos que os sindicatos não permitam que se acabe com estes contributos, recorrendo à memória do que se passa em tempos de crise. Muitos trabalhadores nunca receberam as indemnizações devidas porque as empresas faliram e este é um importante mecanismo para garantir que isso não acontece ou, pelo menos, é minorado. Não podemos ter memória curta e usar os tempos de crescimento para acabar com poupanças que podem amortecer os efeitos de uma crise, que um dia virá.

Pelo que estamos a perceber, os patrões querem que o Governo pague, com dinheiro dos contribuintes ou um risco acrescido dos trabalhadores, o aumento do salário mínimo e dos rendimentos em geral. Recusam-se a fazer aquilo que é a sua obrigação que é melhorar a produtividade das suas empresas. Aceitam ceder a sua liberdade por dinheiro dos cofres do Estado. Com a cumplicidade, incentivo e vantagens para o Governo.

A estratégia do Governo baseia-se no Pacto para o Crescimento com três pilares: Investimento, Conhecimento e Rendimento. A política de rendimentos tinha (tem?) condições para, criados os incentivos certos, promover a modernização das empresas tendo em vista o mais importante desafio do país, que é o aumento da produtividade. Só assim conseguiremos um crescimento mais elevado do que o medíocre que temos obtido.

A política de rendimentos que o Governo defende tem como objectivo não só aumentar o salário mínimo como também subir todos os salários. Se tal for concretizado com prudência e obviamente sem subsidiar as empresas, esta política pode forçar as empresas a encontrarem soluções de maior eficiência, aumentando a sua produtividade. Seria uma estratégia, neste caso por via da política de rendimentos, semelhante à que foi seguida entre finais dos anos 80 e início da década de 90 do século XX, de valorizar o escudo (ou de o desvalorizar menos) para forçar as empresas exportadoras a procurarem outros factores de competitividade que não fossem os salários baixos.

Além disso, e neste domínio do trabalho, o Governo deveria concentrar-se no cumprimento da legislação laboral, sabendo, como com toda a certeza sabe, que há empresas, especialmente no sector do turismo, que não cumprem as leis laborais.

Esta fase do ciclo económico, de desemprego baixo, é especialmente adequada a estre tipo de políticas. O pior que nos pode acontecer é aplicar políticas que reduzem rendimentos e aumentam as falências e o desemprego quando a economia entrar em crise. Foi isso que nos aconteceu entre 2011 e 2013, quando a falta de dinheiro obrigou o Governo de Pedro Passos Coelho a adoptar medidas que agravaram ainda mais a crise. É nos tempos de prosperidade que nos preparamos para os tempos difíceis, mas não é isso que se parece querer fazer.

O livro “Crise e Castigo e o dia seguinte” de Fernando Alexandre, Luís Aguiar-Conraria e Pedro Bação é uma obra fundamental para todos aqueles que mantêm a liberdade de pensamento, sem as amarras do actual e lamentável radicalismo tribal, e querem perceber como desembocámos na maior crise da nossa história recente em 2011. E como (digo eu), o que não estamos a fazer pode condenar-nos a repetir os erros do passado. Vai na sua segunda edição, actualizado num capítulo aquilo que já é possível ler dos últimos quatro anos.

A apresentação do livro foi feita por Francisco Assis e Hélder Reis. E Francisco Assis fez uma declaração lapidar e ao mesmo tempo arrepiante e que cito de memória: corremos o risco de viver num país de “capitalismo rentista e socialismo de miséria”.

Aquilo a que estamos a assistir em matéria de negociação da concertação social alimenta aterradoramente essa perspectiva de Francisco Assis. Depois de termos garantido rendas com as Parcerias Público-privadas e em alguns sectores como o da electricidade, preparamo-nos agora para alargar o capitalismo rentista às pequenas e médias empresas, subsidiando os aumentos salariais.

Claro que os empresários ficam agradecidos a António Costa. Claro que se olharmos para o que se está a fazer na perspectiva da conquista de eleitorado e manutenção do poder, a estratégia é muito inteligente. Depois das conquistas dos funcionários públicos e pensionistas, com dinheiro que não sabemos se teremos no futuro para lhes pagar e que agora nos falta nos serviços públicos, o novo grupo que se vai satisfazer é a dos empresários que querem viver à mesa do Orçamento. O PS consegue assim garantir mais e mais votos. Entretanto ficamos condenados ao subdesenvolvimento ditado pelo capitalismo rentista.

Esperemos que estas perspectivas venham a ser desmentidas durante esta semana de negociações na concertação social e que os empresários não venham a ser compensados com dinheiro dos contribuintes pelos aumentos salariais.