1. Expectativa. Sussurra-se, garante-se, duvida-se, conjetura-se: esse homem, humilde entre todos os Príncipes da Igreja, servidor de Cristo e “administrador” dos mistérios de Deus, vem ou não a Portugal? Todos o desejam, muitos o esperam, virá a Lisboa ou só à Cova da Iria? Mas o que se sabe ou julga saber é apenas que o Papa pode vir a Fátima, fazendo dela um destino no ano de 2017.
Francisco dispensará — se o deixarem — passadeiras, honrarias e cumprimentos de dignitários inclinados diante de si (mas igualmente atentos às câmaras da televisão), trocando-os pelo palco das Aparições. Onde ele sabe que irradia o espírito do lugar e a essência do que o trará a Portugal. Sempre o vimos fazer isso: estar no “essencial”, nessa espécie de “sítio certo”, que é a procura de onde estão os “outros”, com quem infatigavelmente ele vai ter. Interpelando crentes e tocando não crentes. Desde o início da sua vocação que se pôs a caminho como intérprete da Igreja que sai, procura e vê, a única que podia mobilizá-lo. Da mesma forma que hoje, em Roma, continua “de serviço” ao que está no exterior dos templos, longe dos corredores do Vaticano, longe da pompa. Francisco escolheu “ir ter” com eles, todos os “eles”. Todos nós.
2. Fará isso uma vez mais nesses próximos e já míticos dias 12 e 13 de maio de 2017. Rezando e talvez chorando com os milhares de pessoas que lá estarão, mas sabendo bem que rezar significará ali, nessas horas de recolhido e intimíssimo silêncio, realçar e re-legitimar, em prece comum, a fulcral importância da mensagem de Fátima. É disso que se tratará: de nos desinstalar com aquela mensagem. Acordando-nos para o que ali se viveu há cem anos e agora se celebra, não como uma banal efeméride, mas como um mapa de salvação. Atendendo aos sinais deixados na mensagem, à sua capacidade profética, a uma atualidade inscrita no “hoje” do mundo. Um abanão que nos deixará entregues a nós mesmos, confrontados com uma escolha pesada. Mas o Papa Francisco sabe que será das “conversas” aparentemente tão prosaicas, de Nossa Senhora, há cem anos, com três crianças pobres e analfabetas, que se poderá partir. Para salvar o mundo, por exemplo.
3. Salvar o mundo, sim. Não escrevi à toa. É que talvez não se possa nem deva olhar para Fátima ou pensar nela do mesmo modo após a leitura de um livro absolutamente admirável. Porventura o mais luminoso e desafiante sobre esta história centenária, fenómeno de mistério, revelação e advertência, luz e consolação, que continua a ser Fátima e o seu enredo. Um livrinho, melhor dizendo. Trinta páginas, formato pequeno, pouco se daria por ele sem um pré-aviso amigo. Escreve-o D. António Marto, Bispo de Leiria-Fátima, publica-o a Universidade Católica Editora (integrado na coleção Argumento, dirigida por José Tolentino de Mendonça).
Já se sabe que António Marto é um dos mais inteligentes, preparados e lúcidos homens da igreja portuguesa, mas, aqui, o cometimento foi grande. “Fátima, Mensagem de misericórdia e de esperança para o mundo” — é este o titulo — captura-nos primeiro para uma elaborada reflexão sobre as aparições onde o autor começa por se interrogar sobre o que há nelas de tão “particular” que justifiquem a “atenção, a atração e o eco mundial que suscitam” para depois meter mãos à obra, mas aplainando-a de dúvidas, perplexidades, preconceitos. Tornando-a próxima, “manuseável”, simples, até através das “grandes chaves hermenêuticas” que, na sua opinião, nos oferecem “a compreensão da riqueza e atualidade da mensagem, a articulação orgânica dos seus elementos e a sua relevância histórico-cultural e salvífica”.
Uma profundíssima descida aos abismos da interpretação. Da descodificação. Do “dar a entender”. Com rigor, fulgor e — como dizer? — com uma tal “segurança” que quase me senti pessoalmente desafiada. E advertida: a leitura deste livro impede disfarces e veta os subterfúgios. Ou se leva aquilo a sério ou se fica à porta.
4. E, de repente, no alinhamento das canções, surgiu uma pausa não prevista. Sozinha em palco com a sua orquestra, Maria Bethânia pede uma Avé Maria rezada em uníssono na sala da “Concha Acústica”, na estreia do seu espetáculo. “Hoje é dia 13 de maio, dia de Nossa Senhora de Fátima. Rezem comigo esta Avé Maria”. Foi neste ano de 2016 e a sala rezou.
5. “A mensagem de Fátima é fortíssima”, disse-me há tempos o Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, numa magnífica entrevista quase só dedicada ao tema: “a mensagem lança-nos um repto de uma atualidade flagrante e que está no Evangelho”.
Surpreendi-me e não devia, com a descoberta de uma espiritualidade mariana, com a uma fortíssima convicção face ao fenómeno fatimita, a desarmante simplicidade com que sempre o perfilhou, a franqueza com, que diante de um gravador, me confessou que “gosta muito de ir a Fátima”: “Nem preciso de estar a pensar em nada, nem de dizer nada. Basta-me estar ali, só estar ali.”
Um fortíssimo testemunho. Razão, fé, teologia, história, numa reflexão de que destaco dois pontos maiores: a recondução da mensagem de Fátima à centralidade do Evangelho e os sublinhados de D. Manuel no significante valor do “humilde” na história das Aparições:
“Em toda a tradição bíblica, a preferência – podemos dizer assim – de Deus, é para se manifestar no que é pequeno, no que é simples, no que é pobre, no que é desprovido. Mais pequeno que aquelas crianças à volta de um poço ou de uma azinheira, há cem anos, na Serra d’Aire, não podia haver”.
Foi há cem anos, podia ser hoje.