1 Comunicação Social à deriva

Em maio de 2020 escrevi e publiquei no Observador o ensaio “Comunicação Social à deriva”, onde analisava e salientava a situação frágil, e em certos aspetos desastrosa, em que já há alguns anos se encontrava a Comunicação Social em Portugal, apontando medidas a tomar e antecipando que se nada fosse feito as coisas só poderiam piorar.

Realçava a importância de uma Comunicação Social verdadeiramente livre, independente, escrutinadora e sustentável, assente num mercado aberto e dinâmico, como algo de crítico para a nossa sociedade e democracia. E constatava que a nossa Comunicação Social, como instituição estruturante, não estava a cumprir cabalmente o seu papel.

Afirmava já nessa altura que praticamente não existiam no sector empresas suficientemente sólidas e rentáveis, grandes ou pequenas, havendo mesmo empresas que apresentavam dívidas elevadas ou prejuízos sucessivos, em certos casos durante uma vida de dezenas de anos, e que nestes casos os seus elevados prejuízos acabavam por ser suportados por mecenas ou então por financiadores com origens e propósitos desconhecidos.

Mencionava que a dimensão reduzida do nosso mercado de publicidade e a evolução tecnológica digital com a entrada reforçada de grandes plataformas internacionais (Google, Facebook, etc) estavam crescentemente a capturar aos nacionais uma parte significativa das receitas do mercado e que se tudo tornavam mais difícil, nem tudo explicavam.

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E principalmente estes fatores não isentavam de responsabilidades:

  1. Os políticos – aqueles que procuram a promiscuidade com a Comunicação Social e que a pretendem fraca e dominada e pouco escrutinadora, em vez de respeitarem a sua liberdade;
  2. As empresas/empresários do sector – aquelas que procuram perpetuar a sua posição dominante, que não se reestruturam nem se reinventam atempadamente, e que adicionalmente alimentam a promiscuidade com políticos e grandes anunciantes, praticando muitas vezes um jornalismo de recados, para não falar nos “empresários” da Comunicação Social que veem o jornalismo como instrumental para outras agendas que possuem;
  3. As agências de meios – aquelas que, pelo seu domínio e práticas, procuram capturar uma parte desproporcionada das margens e se aliam aos maiores operadores do sector influenciando em demasia a distribuição das receitas no mercado;
  4. Os reguladores – quando não atuam, com a convicção e a eficácia necessárias, não contrariando suficientemente os poderes dominantes nem estando focados na defesa da concorrência, inovação e dinâmica do sector, nem na renovação e simplificação da legislação anacrónica existente, para os tempos e tecnologias atuais;
  5. Alguns dos poderes corporativos do sector – aqueles que mais resistem à mudança e que privilegiam os interesses particulares ao geral.

Passados 4 anos (da publicação do meu ensaio) e quando quase nada foi feito, como era previsível as coisas só se agravaram!

2 As receitas do sector da Comunicação Social nacional no seu todo são muito reduzidas e não têm aumentado; as empresas em geral têm perdido valor

As receitas anuais totais líquidas das empresas portuguesas do sector em Portugal (portanto, as que ficam para os operadores nacionais) desde há muitos anos que, mesmo nominalmente, não têm crescido, ou têm mesmo decrescido, e as suas margens de rentabilidade, já por natureza baixas, têm vindo a piorar.

Em 2023 as receitas totais líquidas de todo o sector deverão ter ascendido a cerca de 650 milhões de euros (não incluindo os casos específicos do grupo RTP e Lusa), sendo cerca de 65% geradas pelos três maiores operadores.

Nestas receitas incluem-se as de publicidade, as provenientes dos operadores de telecomunicações e das receitas das chamadas de valor acrescentado, isto para quem tem televisão, as vendas de jornais e revistas em papel, estas em grande decréscimo, e as receitas de subscrições e outras receitas igualmente menores (as subscrições, atualmente cerca de 150 mil, valem apenas cerca de 9 milhões/ano).

A publicidade, nos vários meios e de vários tipos e formatos, desde o “display” ao “branded content” e eventos passando pelos “spots” e “programmatic”, tem o maior peso nas receitas totais das empresas nacionais do sector, representando cerca de 60/62% destas, correspondendo a um valor de cerca de 400 milhões de euros, muito abaixo do seu pico em 2007/8 quando era da ordem dos 700 milhões de euros e a publicidade na imprensa/papel ainda tinha grande expressão.

As plataformas digitais internacionais, essas sim, têm crescido substancialmente as suas receitas, tendo passado de 35 milhões em 2014 para 150 milhões em 2024.

Adicionando a estes valores as receitas de publicidade angariadas pelos outdoors, fora do âmbito da Comunicação Social, chegamos a um montante total líquido de publicidade em Portugal para 2023 de cerca de 630 milhões de euros.

O valor da publicidade total em Portugal representa assim um peso de apenas 0,25% do valor do PIB português.

Na Europa, essa percentagem face ao PIB europeu é mais do dobro, ou seja, mais do que 0,5%, no Reino Unido quase 1% e nos EUA aproxima-se dos 1,4% (cerca de 360 mil milhões de dólares).

Ou seja, a dimensão diminuta do nosso mercado da Comunicação Social não resulta apenas da dimensão reduzida da nossa economia, mas também da expressão reduzida que nesta a publicidade tem.

Muitas razões existem para tal explicar, uma delas estará relacionada com o facto de haver muito pouca dinâmica empresarial em geral na nossa economia interna, ela também com muitos lugares marcados e posições dominantes e estabelecidas, e poucos novos “players” a surgirem e a necessitar de comunicar a sua diferença. Também por isso o nosso PIB não cresce mais e o percentual aplicado em publicidade é inferior.

Também diferente no mercado português é o grande peso que a TV mantém no total das receitas de publicidade, cerca de 50%, quando nos países mais desenvolvidos esse peso estará em cerca de 35%, ocupando o digital a posição cimeira, que em alguns casos já chega aos 70% (em Portugal o peso do digital será atualmente de cerca de 30%, capturado em mais de 70% pelas plataformas internacionais, muito pelo efeito do designado “programmatic”).

Assim, a mais do que previsível diminuição do peso da TV nas receitas de publicidade totais será cada vez mais uma ameaça e desafio com que se confrontam os órgãos de Comunicação Social mais dependentes da TV tradicional.

Quanto à evolução em geral do valor das empresas de Comunicação Social, basta olhar para os três maiores grupos em Portugal e ver qual era a sua capitalização bolsista (número de acções vezes preço de cada ação) em 2005/7, no seu pico, e quanto é atualmente e constatar que qualquer deles “valerá” hoje, no máximo, um quarto do que valia nessa altura, sendo a capitalização bolsista de cada um, apesar da significativa dimensão e expressão das suas organizações, relativamente “modesta” (Impresa, Media Capital e Cofina têm atualmente uma capitalização bolsista respetivamente de cerca de 26, 95 e 40 milhões de euros).

3 A distinção entre informação e entretenimento e entre conteúdo jornalístico e “sponsorizado”

Para perceber melhor o que se passa na Comunicação Social em Portugal e para planear ações de natureza mais institucional e estrutural a implementar é fundamental separar o que é informação e entretenimento.

Será importante saber, nomeadamente no que diz respeito aos maiores grupos e empresas, quanto do total de colaboradores, dos custos e receitas dizem respeito à atividade de informação e quanto dizem respeito ao entretenimento (o que implicará algum esforço de seleção, pois a distinção poderá ter algum grau de subjetividade).

Nos grandes grupos o entretenimento tem, regra geral, um peso muito elevado e não constitui propriamente uma atividade de Comunicação Social como esta é entendida.

Sem prejuízo do valor acrescentado das atividades de entretenimento, as maiores externalidades e importância para a sociedade e para a nossa democracia liberal provêm não do entretenimento mas da atividade jornalística desenvolvida e é esta que tem particulares características próprias que importa preservar e apoiar de certa forma.

Outra questão de natureza mais deontológica que carece também de distinção, mas aqui não cabe agora desenvolver, é entre o que é jornalismo e o que é conteúdo “sponsorizado”, e se este deverá ou não ser protagonizado por jornalistas no activo, e se a distinção é clara para o consumidor.

Esta é uma questão cada vez com mais acuidade, pois com a necessidade de gerarem mais receitas para sobreviverem as empresas de Comunicação Social em Portugal não abdicam das suas caras mais conhecidas do jornalismo para participarem em conteúdos por vezes mais “sponsorizados”, com os conflitos que tal pode gerar.

4 O Grupo RTP

Não podemos fazer uma análise sobre a Comunicação Social, mesmo breve, sem aludirmos resumidamente ao grupo RTP, que com as várias crises tem passado um pouco por entre os pingos da chuva.

De facto, ao contrário das outras empresas de Comunicação Social, este grupo, ao ter uma renda fixa de mais de 180 milhões de euros, não se confronta com o mesmo nível de desafios de reestruturação e de reinvenção do negócio dos outros. Permanece com um número elevado de estações de TV e de rádio e também de colaboradores (cujo valor individual não se pretende naturalmente colocar em causa), cerca de 1800 com um custo médio por colaborador acima dos 50 mil euros pelo menos, ou seja, 15% acima da média do mercado.

Diversas questões se podem levantar sobre este tema, mesmo que não radicais: é necessário os cidadãos despenderem anualmente mais de 180 milhões de euros com um grupo estatal de comunicação? Metade ou um terço não chegavam para cumprir o essencial? Outras empresas do sector também não poderiam, pelo menos parcialmente, oferecer programas de “serviço público”? Precisa esse grupo de deter tantas estações de TV e de rádio ou devia libertar algumas para que seja promovida uma maior concorrência no mercado?

O grupo RTP, detido pelo Estado, é realmente o maior grupo de Comunicação Social e estará na altura de se debater de novo o tema.

5 Só há razões para o Estado não intervir na Global Media. O papel do Estado na Comunicação Social

Vale a pena mencionar este tema da atualidade como caso paradigmático.

O sector da Comunicação Social também precisa, como os outros da nossa economia, de ser dinâmico e flexível. Por isso, tem de se encarar com naturalidade, sendo até benéfico, que haja uma certa rotação nas empresas do sector.

Ou seja, tem de se assumir como natural que de tempos a tempos umas empresas possam desaparecer para outros projetos poderem florescer. É mau para o país quando tal não acontece.

Se artificialmente, nomeadamente com o apoio do Estado, se mantêm indefinidamente empresas de Comunicação Social sem modelos de negócio viáveis ou que não oferecem produtos e serviços que os seus clientes valorizem suficientemente por forma a gerarem receitas para cobrir os seus custos isso será, de uma forma geral, prejudicial para a sociedade, para as novas empresas que procuram singrar no sector e mesmo para os trabalhadores da própria empresa em causa.

Isso é mau para a sociedade pelo mau exemplo que dá para os outros sectores, que passarão a solicitar ainda mais apoios, por tal se traduzir em mais um contributo para a falta de inovação e baixa produtividade de que sofre a nossa economia.

É mau para o sector e para as outras empresas do mercado porque as empresas subsidiadas pelo Estado capturam receitas que poderiam em alternativa estar disponíveis para as restantes, não permitindo assim o surgimento e consolidação de outras empresas com novas e melhores ideias, com melhores modelos de negócio, com melhores produtos oferecidos.

As outras empresas ficam elas próprias com menos condições para crescer e consolidar a sua atividade, ou mesmo para sobreviver, e, portanto, também para melhorar os salários dos seus colaboradores ou criar novos postos de trabalho.

Mesmo os trabalhadores da empresa em risco de soçobrar ficarão a médio prazo em piores condições com uma intervenção do Estado pois, ao ficar fortemente prejudicado o sector e as restantes empresas, também se prejudica o surgimento de novas oportunidades de trabalho nas outras empresas do sector.

Mas então vamos deixar desaparecer marcas históricas da Comunicação Social? Este sector não é diferente dos outros? Não é necessário para a nossa democracia? Não é isso que justifica ter um grupo do Estado como a RTP? Porque não ter mais um e nacionalizar a Global Media? Então o Estado também não subsidia a cultura e as artes ou a investigação e desenvolvimento de base porque as despesas as receitas não cobrem os custos, porque não a Comunicação Social?

Mesmo num cenário em que não surjam investidores para todo o grupo Global Media – de notar que aparentemente já há candidatos que acreditam na sua viabilidade – e este entre numa fase de “pré-liquidação”, partes do grupo poderão ser adquiridas por investidores nelas interessados, inclusive nalgumas das marcas detidas, eventualmente em conjunto com os colaboradores a elas alocados. Cada marca só não sobreviverá se ninguém a valorizar minimamente.

O sector da Comunicação Social tem algumas diferenças importantes face a outros dado o papel que tem de escrutínio dos vários poderes da sociedade, do contributo indispensável que dá para a liberdade de expressão, da informação e esclarecimento que presta à população em geral.

Mas tal não quer dizer que, até para cumprir bem a sua função, não possa ou não deva funcionar como outros sectores, ou seja, num mercado aberto com múltiplos atores, sem posições dominantes, em sã concorrência, sem interferência do Estado, exceto na sua insubstituível função direta de regulação ou indireta de administração da justiça. Aliás, a Comunicação Social, por maioria de razão, assim deve funcionar.

6Conclusões

A situação de degradação da Comunicação Social portuguesa é um processo que decorre desde há muitos anos e que não foi invertido pela incapacidade e demora na tomada de decisões dos seus principais agentes.

O problema é, portanto, estrutural e não se resolve com uma maior concentração do mercado, em empresas ainda mais dominantes, nem através de subsídios volumosos e recorrentes do Estado.

Qualquer apoio a considerar pelo Estado deve ser generalizado e transversal e não implicar
tratamentos preferenciais nem desigualdades injustificáveis entre empresas. Apoios do tipo
estímulo fiscal às assinaturas ou majoração dos custos de publicidade para os anunciantes
poderão dar algum contributo mas não resolverão o essencial.

O sector da Comunicação Social em Portugal pode ser rentável, mas para isso tem que acabar com as principais causas já apresentadas para o seu relativo descalabro.

E é também preciso que as empresas do sector adaptam a sua estrutura e custos à possibilidade de obtenção de receitas num mercado relativamente diminuto.

Isso pode implicar fazer menos, mas não necessariamente, nomeadamente se houver mais inovação, melhores estratégias, gestão, organização e motivação dos recursos humanos, maior produtividade.

O presente enquadramento, perverso ao desenvolvimento da atividade de Comunicação Social, tem de ser alterado por melhor regulação que promova as melhores e não as piores práticas, que estimule suficientemente os incumbentes a se reestruturarem, que não dificulte a entrada de novos atores e a sua sustentabilidade económico-financeira, que escrutine a estrutura accionista, governação e financiamentos dos vários órgãos, assegurando a sua transparência.

Na situação atual é muito difícil a qualquer novo operador competir com os maiores operadores que pela sua escala, histórico e recursos têm maior poder negocial com os anunciantes e com as agências de meios, maior atração para as fontes de informação e comentadores, maior capacidade para recrutar colaboradores e lhes pagar um maior salário, maior capacidade para promover através da TV os seus outros meios e produtos, maior possibilidade de aproveitar o esforço da inovação e do pioneirismo dos outros para depois adotar, legitimamente, conceitos por estes desenvolvidos.

O setor da comunicação social é diferente dos outros pela sua relevância única para a liberdade de expressão, para o escrutínio de todos os maiores poderes da sociedade e dos mais poderosos, pela voz que pode dar aos cidadãos, pela sua capacidade de os informar e esclarecer com rigor e verdade.

É essa a essência do Jornalismo independente e de qualidade que queremos ver em Portugal e que tem que assentar em boa práticas de regulação, em mercados dinâmicos e abertos, e em empresas saudáveis e boas empregadoras com capacidade de remunerar os seus recursos humanos de forma justa e compensadora.