A questão capital

Muitos têm abordado, e vários com propriedade, nomeadamente neste jornal, as dinâmicas de curto prazo destas eleições.

Mas numa perspetiva do interesse de médio e longo prazo do país a questão capital destas eleições não será tanto saber quem, e como, vai a seguir e de imediato formar governo e governar.

O que vai ser realmente importante perceber, a partir do resultado das eleições, é se o país está fundamentalmente a mudar, ou não, o que se medirá pelo peso dos eleitores que vierem a rejeitar as políticas dominantes do passado, ou seja pela percentagem daqueles que não votarem na atualmente designada esquerda ou seja principalmente no PS, BE, CDU e Livre.

Assim se a abstenção ficar contida e a percentagem de votos na AD, IL e Chega ficar significativamente acima dos 50% dos votos válidos, e em particular maioritariamente no conjunto dos primeiros dois partidos que possuirão uma componente de protesto circunstancial inferior, e se as análises qualitativas da razão desse voto demonstrarem uma clara desaprovação dos eleitores relativamente aos partidos ditos de esquerda, poderemos então vislumbrar o mais importante: a possibilidade de começarmos perspetivar a transição para uma nova era.

Poderão os leitores perguntar: mas não ficará tudo perdido se por razões mais ou menos legitimas e compreensíveis, os partidos assim vencedores, da dita direita, não se entenderem na formação de um governo pós-eleições e a situação se complicar podendo ainda acabar em novas eleições?

Não, mesmo sendo o entendimento preferível e constituindo a sua falta um desperdício e uma falta de aproveitamento de uma oportunidade no curto prazo, o mais importante será irmos consolidando sustentavelmente uma base eleitoral ampla à volta de grandes princípios comuns e alternativos aos prevalecentes há mais de 25 anos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Desta forma se reposicionará o que se entende por centro político, e mais tarde ou mais cedo se concretizará a mudança, a partir dos partidos que no seu conjunto se tornem claramente maioritários, ou de outros que venham a surgir, na mesma área, se os primeiros não conseguirem corresponder.

As duas eras dos últimos cem anos: a ditadura e o pós “fascismo”

Nestes últimos cem anos tivemos, quanto ao regime vigente e simplificando, duas amplas eras políticas de cerca de 50 anos cada: a primeira desde 1926, início da segunda república, até abril de 74, e a segunda desde aí até hoje e que ainda não estará terminada.

Cada uma destas eras caracterizou-se, em geral, por possuir uma natureza e um regime específico, tendo existido uma fronteira clara entre elas, cronologicamente referenciada ao dia 25 de Abril de 1974.

Correndo o risco de sermos redutores, poderemos designar a primeira era como a da ditadura ou do “estado novo” assente num regime autoritário, centralizado e politicamente persecutório.

E a segunda era como a do pós “fascismo”, aquela em que se iniciou o regime democrático contemporâneo, e em que, pelo menos em parte, se libertou a sociedade.

Claro que esta última era não se resumiu, política, económica e socialmente a ser apenas uma contraposição ao “fascismo”, ocorrendo outras alterações estruturais significativas como a da uma maior integração europeia.

Mas o peso e a memória do passado “fascista” esteve sempre presente, e não deixou essa memória de ser instrumentalizada por alguns em práticas de catalogação e de cancelamento de outras alterativas e de pessoas.

Tipicamente as eras têm várias fases incluindo o seu período de turbulência inicial e o de apogeu assistindo-se depois a uma degradação final. No caso da primeira era referida ela finou de tão podre que, politicamente, estava.

A degradação final das eras resulta em grande parte da desadequação do regime aos desafios com que a sociedade se vai defrontando e ao se tornar evidente para os cidadãos que os mitos, tabus e “embustes” que durante essa era vão sendo criados mantidos e alimentados por grupos de interesses, nomeadamente político partidários, já não resistem ao teste da realidade.

A fase de degradação final desta era

Depois dos eventos do período 2004/11, a fase final de degradação política desta era começou quando o PS se transformou neste PS atual a partir de 2015, altura em que a sua direção decidiu aliar-se, numa geringonça, aos parceiros da esquerda mais radical, abandonando qualquer reformismo mais significativo.

Deu-se então a conversão mais profunda do PS a ideologias e políticas mais estatizantes, registando-se em paralelo uma apropriação mais alargada, dos seus afiliados, do aparelho do Estado e suas instituições.

Ao mesmo tempo este PS foi pelas suas políticas e práticas reduzindo a sua aposta eleitoralista em dois grandes grupos (que se estima poderão representar cerca de 65/70% dos seus votantes): os pensionistas e os funcionários públicos.

Até a diversidade interna do partido ficou recentemente quase anulada com a última aglutinação do que restava da sua ala mais liberal para a esfera do atual líder do partido.

Este PS deixou assim, de certa forma, de ser um partido “nacional”, ao cobrir muito pouco, ou deixar de representar outros segmentos igualmente muito importantes da população como os mais jovens, os trabalhadores por conta de outrem, os empresários em nome individual e os pequenos comerciantes.

Acresce que uma parte da sua base eleitoral de apoio referida, pensionistas e funcionários público, começou a duvidar se mesmo para os seus interesses mais próprios a ideologia e políticas deste PS, mais de esquerda e estatizante, serão as mais convenientes.

Nestes últimos 50 anos houve em muitas áreas uma evolução positiva do país em particular no esforço de qualificação dos portugueses, numa maior abrangência da prestação de serviços públicos e da rede de proteção social e na prossecução da abertura da nossa economia, mas mesmo nestes casos ficámos longe dos níveis de eficácia e eficiência que outros congéneres alcançaram e longe de criarmos uma sociedade em que a grande maioria dos cidadãos possa beneficiar de uma boa vida.

Muitas das soluções, modelos e processos adotados, mais ou menos institucionais, ao não serem ao longo do tempo devidamente reequacionados e alterados de acordo com as reais necessidades da população, prejudicaram fortemente e cada vez mais os resultados passíveis de serem alcançados nas áreas mais essenciais da vida dos cidadãos desde a saúde e educação até à habitação e justiça, passando pela criação de emprego qualificado e bem remunerado, para não falar na consolidação de uma plena democracia.

Nos últimos tempos muitos dos jovens mais qualificados abandonaram o país. As oportunidades de realização pessoal e profissional para os cidadãos portugueses residentes diminuíram e as suas remunerações (líquidas de impostos crescentes) continuam muito baixas.

Também se começa a perguntar: estamos a construir um país para quem?

Para os portugueses?

Ou principalmente para o turismo (sem dúvida uma, mas não única, das mais importantes atividades económicas a valorizar e enquadrar), para os residentes estrangeiros e nómadas digitais (que não deixam de ser bem-vindos em condições de igualdade), e onde só os mais ricos conseguem ter uma boa vida?

O que tem travado a dinâmica para a transição para uma próxima era?

Mas vamos com calma dirão uns… não é ainda cedo para anunciar o término da presente era, e antecipar o início de uma nova?

Sim, em grande parte assim é.

Mas pelo menos podemos especular sobre uma dinâmica de mudança que como o título deste artigo sugere pode ser acelerada a partir dos resultados destas eleições.

Mas o que tem travado essa dinâmica:

  1. A Europa e os seus fundos têm-nos afastado do precipício e dado um forte contributo para irmos sobrevivendo na situação.
  2. Tem sido sempre possível, ajudados pela inflação, cobrar mais impostos para pagar o eleitoralismo e os desvarios e equilibrar as contas públicas mesmo à custa de um menor investimento.
  3. O rápido envelhecimento e dependências várias da população levando-a a ser mais receosa das mudanças.
  4. As forças políticas tradicionais de oposição têm-se revelado insuficientemente capazes em combater o status quo e em apresentar convictamente propostas alternativas e claramente diferenciadores e equipas renovadas; particulares responsabilidades neste campo terá tido o PSD, com o resultado, não necessariamente negativo para a sociedade, de ter aberto espaço a outras forças no seu tradicional espaço.
  5. A sociedade em geral está manietada e instrumentalizada por numa teia mal regulada de poderes dominantes, protagonizada por indivíduos, cliques e corporações, muitas vezes em promiscuidade, que controlam o Estado e as maiores organizações, os mais relevantes mercados, sectores e transações, com lugares marcados deixando pouco espaço para o surgimento de novos atores e para uma concorrência sã promotora da inovação.
  6. O palco político, incluindo o sistema eleitoral e os partidos, é pouco transparente, atrai e é constituído por quem se mexe mais por agendas e interesses próprios e dos próximos, não atraindo suficientemente atores e líderes políticos qualificados e com experiencias diversificadas e relevantes, que se movam principalmente pelo interesse público.

O que pode ser a nova era

Essa nova era será cronologicamente a do pós pós “fascismo”, ou melhor será a era do Portugal finalmente contemporâneo, plenamente democrático e equilibradamente desenvolvido, de um país orientado para a liberdade, independência e sentido de solidariedade dos seus cidadãos, com um Estado muito menos capturado por clicks político-partidárias e muito mais ao serviço dos cidadãos, que aposta numa democracia plena numa das sociedades mais flexível, dinâmica, e educada, capaz de se relacionar com a natureza, do mundo desenvolvido.

Será uma era em que também o poder económico será muito mais bem regulado, transparente e democrático, sem posições dominantes nem lugares marcados, em que se permite e estimula a entradas de novos atores e em que não se deixa espaço para a promiscuidade político-económica.

Existirá assim uma maior igualdade, diversidade e menor pobreza, bem como uma maior inovação e a criação de mais oportunidades para a realização profissional e pessoal dos cidadãos, com a grande maioria a desfrutar de rendimentos e condições adequadas para dispor de uma boa vida num enquadramento de sustentabilidade.

Teremos assim um país construído para os portugueses e também aberto a outros que queiram cá viver de acordo com as nossa regras, e que nos apreciem e respeitem.

Podendo esta ser uma utopia estamos tão longe de a alcançar que não será uma utopia apostarmos e trabalharmos para que na próxima era dela finalmente nos aproximarmos.

E há um alento particular para isso que nos é dado pelos mais jovens que conhecem algo do passado, mas principalmente conhecem melhor o que se passa e acontece no mundo, e como o nosso atraso não tem que ser crónico.

Agora neste domingo cabe a nós todos finalmente nos decidirmos e votar.