O nosso insucesso

Demorámos cerca de 50 anos, até Abril de 74, para concluirmos que fascismo (ou melhor, autoritarismo e ditadura) nunca mais!

Passados mais 50 anos continuamos a ser um país relativamente pobre e no geral frágil e aquém das suas possibilidades.

No princípio, nos anos logo após Abril de 74, havia alguma desculpa para as dificuldades que a sociedade então demonstrava pois estava em curso a transição de um regime autocrático para uma democracia.

Depois, iniciámos algumas reformas e beneficiámos do processo de adesão à União Europeia, progredimos, mas mesmo nessa altura não deixámos de ficar, estruturalmente, aquém do necessário.

A partir de meados dos anos 90, o regime começou a ficar crescentemente mais estatizante e iliberal (como, de certa forma, historicamente já o era) e menos reformista.

A dívida pública cresceu para níveis astronómicos e a sociedade continuou a não ser capaz de criar riqueza para sustentar um modelo social e serviços públicos abrangentes e que correspondam às necessidades dos cidadãos.

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Qualquer subida mais elevada da inflação e da taxa de juro faz tremer o País, reduz significativamente o rendimento e a poupança real da população e coloca-nos na iminência de uma grave crise.

Estamos demasiado dependentes do comportamento da economia internacional e dos apoios externos.

Naturalmente que neste meio século passámos a ser uma democracia, tendo o país muito melhorado, mas fizemos pior do que seria a nossa “obrigação” mínima, tendo em conta todo o enquadramento e apoios recebidos, registando ainda nos últimos vinte anos um desenvolvimento económico inferior ao da maior parte dos países comparáveis.

Cada vez é mais este o sentimento dos portugueses, em particular da maioria dos quase 50% que regularmente se abstêm nos atos eleitorais.

Por muito que nos vendam que estamos na moda lá fora e que puxem pela nossa autoestima (aliás, de forma por vezes forçada), os cidadãos já se vão apercebendo que estamos perante uma outra realidade.

Conseguimos ser atrativos para o turismo, por vezes de forma demasiado massificada e sem critério, e ainda para os endinheirados de fora que cá querem residir e a quem não deixamos de dar condições preferenciais relativamente aos que cá estão, criando assim novas e maiores desigualdades.

Mas não conseguimos o mais importante: ser uma sociedade que dê oportunidades e boas condições de vida aos portugueses e a todos que já cá residam, e que aproveite todo o seu potencial e competências, permitindo assim a sua realização pessoal e profissional.

Múltiplos exemplos concretos e demonstrativos se podem dar.

Os ordenados são baixos para a maioria da população (com o salário médio preocupantemente próximo do salário mínimo). Mesmo a classe dita média tem dificuldade em assegurar e suportar uma boa educação para os seus filhos ou em arrendar ou comprar habitação nos centros urbanos. Um dos serviços públicos mais relevantes, o da saúde, apresenta graves falhas estruturais e operacionais. Muitos dos mais jovens e qualificados vêem-se obrigados a ir para fora do país. Os mais velhos e desamparados não são suficientemente cuidados e apoiados.

Iremos, provavelmente, chegar a 2025 com mais de 23 anos de governação do Partido Socialista nos últimos 30 anos. Por isso, a ele e às suas políticas terão de ser atribuídas as maiores responsabilidades pelo estado a que como sociedade agora chegámos, não esquecendo as responsabilidades de outros.

No intervalo da governação socialista, durante pouco mais de seis anos, esteve no governo a atual maior oposição.

Mesmo descontando a situação gravosa em que recebeu o país, esta oposição não foi suficientemente forte e competente para mudar o rumo das coisas, revelando-se pouco inspiradora para a maioria dos portugueses que não reconheceram que lhes estava a ser proposto um projeto diferente e para melhor.

O “pantanal”

No “pantanal” português pululam espécies e hábitos já conhecidos e a combater.

É exagerada a prevalência, nos lugares de governação, dos políticos de carreira e de membros da função pública, não tendo muitos deles grande experiência do mundo real em que a maior parte dos portugueses trabalha e vive.

A Administração e entidades públicas, num modo geral, carecem de gestão de qualidade, estão pouco orientadas para o cidadão, revelam baixos níveis de eficiência e de motivação dos seus colaboradores, valiosos, mas desaproveitados.

Muitas das empresas e empresários não conseguem superar um enquadramento desfavorável ao investimento reprodutivo, faltam-lhes competências para aumentar a produtividade e acabam por ganhar costumes de sobrevivência pouco salutares.

Os partidos políticos têm dificuldade em organizarem-se, em gerirem-se e em limitar a ação dos mais carreiristas e oportunistas, que controlam o respetivo aparelho.

A base de dependentes do Estado, que naturalmente receia as mudanças, foi aumentando extraordinariamente em grande parte por motivos populistas e eleitorais, mas também por uma demografia adversa que as políticas públicas não conseguem contrariar.

Revelam-se insuficientes a independência e as competências da maior parte das instituições de escrutínio do poder, incluindo a justiça, os reguladores e a comunicação social.

Prevalecem os poderes dominantes e os respetivos abusos, em muitas áreas e mercados, pouco abertos e flexíveis, com lugares marcados e dificultando a entrada de novos atores.

Os fundos europeus continuam a ser despejados na sociedade sem grande critério virtuoso, muito para tapar buracos e satisfazer as clientelas, e para retirarem pressão à necessidade de serem realizadas reformas.

Temos uma Sociedade Civil no geral fraca, pouco ativa, pouco organizada e pouco livre, que receia confrontar o poder vigente, abstendo-se de lutar e de promover com convicção as suas ideias.

Duas razões fundamentais que explicam o nosso insucesso

Vale a pena salientar duas das razões fundamentais e transversais que explicam porque as coisas recorrentemente correm mal, levando a estes fracos resultados.

A primeira razão deriva de termos, nos principais órgãos de poder público, demasiados decisores, sem grande experiência em gestão de recursos escassos, que atuam com base nos seus interesses e dos seus grupos, mais do que pela procura do interesse comum e que não possuem o espírito de independência, serviço público e de liberdade necessários. Alimentam outros grupos e poderes dominantes, incluindo nas áreas empresariais e sindicais, ou dos “comentadores de carreira” e comunicação social, com os quais desenvolvem elevada promiscuidade. Trabalham de forma mais tática, de curto prazo, com insuficientes convicções para ousar questionar o status quo ou a cultura prevalecente. Despendem os dinheiros públicos – de todos – como se fosse uma benesse por eles dada. Não são escrutinados por um (desejável) sistema estruturado de atribuição de responsabilidades e de reporte de resultados.

A segunda razão deriva de as políticas e decisões implementadas em Portugal ao longo dos anos, transcritas para legislação complexa e muitas vezes incongruente, não incentivarem nem aproveitarem as capacidades e dinâmica dos portugueses e das suas organizações.

Antes inibem, de um modo geral, a respetiva iniciativa, castram a inovação e a consequente produtividade, não aproveitando, assim, todo o potencial dos cidadãos, mesmo quando estes vão gradualmente alcançando um grau educacional superior.

Ou seja, o enquadramento existente desincentiva o cidadão a arriscar, a investir, a propor mudanças, a trabalhar, tanto no espaço dito privado como na administração pública.

Portugal estará entre os países do mundo ocidental que nos últimos 50 anos (para não dizer 100 anos) menos cultivou os princípios e valores da liberdade, autonomia e responsabilidade individuais e o seu equilíbrio salutar e profícuo com a igualdade e com o interesse coletivo, que menos abertura e tolerância demonstrou a novas ideias e políticas e que menos conteve o Estado na sua expansão interventora e dominante, não o colocando ao serviço dos cidadãos e das suas organizações.

Estes princípios e valores – parte deles originalmente enunciados de forma estruturada e filosófica pelo liberalismo clássico a partir do século XVII/XVIII – constituem uma base política e cultural sólida das sociedades modernas mais desenvolvidas. São princípios e valores que não evitam, antes permitem, assegurar a criação, naquelas sociedades, de um Estado social mais eficaz e sustentável e uma maior justiça social, o que inclui políticas equilibradas e construtivas, que se revelem necessárias, de redistribuição/tributação de rendimentos e de patrimónios.

Podem, portanto, enquadrar diferentes tipos de governações temporárias (no sentido em que será natural que se alternem) social-democratas, democratas-cristãos, moderadamente nacionalistas ou internacionalistas, mais ou menos conservadoras, mais ou menos liberais.

Aquilo com o que estes princípios e valores não convivem bem é com a falta de liberdade; com as desigualdades múltiplas e excessivas; com as restrições pesadas à autonomia e iniciativa dos cidadãos e suas organizações; com as posições dominantes e abusadoras nos mercados em geral e nos sectores empresariais em particular; com a promiscuidade político-empresarial; com a falta de leis claras e de aplicação universal da “Rule of Law”; com um Estado avassalador e com impostos avassaladores para o nível de vida existente, controlado e instrumentalizado por corporações políticas e outras.

As dicotomias em análise

Muitos dedicam-se a explicitar as principais dicotomias base e essenciais que dividem as sociedades de hoje e relativamente às quais os respetivos cidadãos têm de tomar uma opção.

Vamos só falar das mais mencionadas e abrangentes e daquelas que pressupõem a manutenção de um sistema democrático, pelo menos formal e institucionalmente e com um mínimo de “checks and balances”, e não francamente autoritário e intolerante.

Uma primeira e mais antiga é a da divisão esquerda/direita.

Esta dicotomia tornou-se pouco clara, demasiado simplista e demagógica, subjetiva, surgindo frequentemente como uma necessidade de autodefinição e de se criar nos outros uma determinada perceção de si próprio que pareça bem.

Há, por exemplo, quem vá ao ponto de sentir a necessidade de se definir como de centro esquerda e ainda da parte esquerda ou direita desse mesmo centro esquerda.

Assim, as designações esquerdas/direita são muitas vezes usadas como um rótulo e arma de arremesso, assente em preconceitos forçados, do que como uma distinção estruturada e sólida, com várias políticas associadas concretas e exclusivas para cada lado.

Mesmo um dos critérios mais razoáveis para estabelecer a divisão entre quem é de esquerda ou de direita – os primeiros teoricamente darão um maior peso à igualdade face à liberdade (e, portanto, tenderão a favorecer uma mais forte redistribuição/tributação de rendimentos e patrimónios) – tem-se revelado demasiado curto e pouco claro. E o critério mais sentimental da esquerda deter maiores preocupações e bondade sociais já pouco colhe.

Entretanto surgiram outras dicotomias.

Uma segunda, entre quem defende um modelo tradicionalista (acentuadamente conservador, de base moral ou mesmo religiosa), e quem tenha uma perspetiva mais secular, porventura revolucionária no sentido da procura da criação do homem novo e bastante mais aberta na moral e nos costumes (que no extremo pode chegar ao “wokismo”).

E uma terceira dicotomia, entre quem aposta numa corrente nacionalista e mais protecionista (por ex. face a importações ou à imigração) e quem opta por uma corrente mais internacionalista, de fronteiras abertas e de cidadãos do mundo, com solidariedade global.

Todas as dicotomias terão o seu mérito mas, naturalmente, são formas simplistas de enunciar duas opções diferenciadas para uma visão e políticas para a sociedade, muitas vezes com forte componente emocional.

De facto, para melhor perceber o posicionamento de cada pessoa, teremos de a confrontar com os vários tipos de dicotomias, que na altura sejam relevantes, e perceber onde se situa em cada uma, por exemplo numa escala de 0 a 100.

A dicotomia agora “fundamental”, a ser ponderada pelos portugueses

Outras dicotomias, como entre coletivistas e individualistas, federalistas e não federalistas (esta mais importante quando se fala na Europa) e entre reformistas e não reformistas poderiam eventualmente também ser referidas e incluídas neste rol.

Mas na nossa situação atual e nestes tempos pós-modernos, fará mais sentido referir, como mais fundamental, uma quarta dicotomia que torna mais clara a separação de águas e que terá maior aplicação prática, ainda que não deixando também de ser simplista e de necessitar de análises complementares.

É a dicotomia entre quem defende sociedades mais estatizantes, em que o Estado é que planeia, guia e dirige a sociedade, sendo o seu farol; um Estado grande na sua dimensão e abrangência, tomando todas decisões e medidas essenciais, tocando todos os maiores sectores da sociedade, que não só garante mas presta diretamente e quase em exclusivo todos os serviços públicos à população – e quem defende que o Estado deve ser forte nos seus atributos principais, incluindo na função social e reguladora, mas deixando um espaço claro, e naturalmente maior do que o seu, para a autonomia e liberdade dos cidadãos, para que estes possam tomar as suas iniciativas, constituindo-se no seu conjunto na principal força da sociedade.

Nesta última opção, o Estado acredita nos cidadãos e retira o máximo partido das suas capacidades e potencial, sem deixar ninguém ficar, na sua dignidade, para trás.

A primeira opção será mais a das gerigonças e deste Partido Socialista, que se tem revelado nos últimos 30 anos cada vez mais estatizante, alargando e ocupando a máquina e instituições do Estado, tratando frequentemente este como seu e o indivíduo como um número, subjugando-o a um teórico coletivo mais facilmente “gerível” ou mesmo manipulável.

A segunda opção será mais a de todos aqueles que acreditam que a aposta no cidadão, nas suas capacidades, liberdade, autonomia e independência é a melhor forma de reforçar um coletivo mais capaz de corresponder e de garantir o interesse comum e os objetivos sociais que devem prevalecer como determinantes numa sociedade e que, aliás, não devem ser prejudicados a favor de um crescimento económico selvagem, que seja pouco equilibrado e justo.

Um novo caminho

A sociedade civil menos dependente, mais jovem (de idade e de espírito) e mais livre já começa a rejeitar o “pantanal” existente.

São eles, os menos dependentes e mais jovens, os primeiros promotores da mudança e de um novo caminho ao qual acabarão por se associar muitos dos mais velhos e mais dependentes, que compreenderão que a manutenção do caminho até agora prosseguido acabará também por não lhes ser favorável, além de não quererem deixar de contribuir positivamente para o futuro do País e das novas gerações.

Será porventura necessário, para que a mudança aconteça, como já ocorreu muitas vezes no passado, que a pressão determinante venha do exterior, mas a sociedade só acabará finalmente por mudar quando os portugueses o quiserem e o aceitarem, alterando assim progressivamente a sua cultura coletiva.

E a maioria só aceitará a mudança se a perceber como justa, se trouxer oportunidades para todos e reduzir significativamente as múltiplas desigualdades existentes, o que pouco tem acontecido no caminho até agora percorrido.

Por isso, volvido quase meio século de termos recusado o designado fascismo, e sem estabelecer naturalmente equivalências históricas, surge agora uma pergunta:

Não estará na altura de recusarmos este socialismo com o qual temos vivido nestes largos últimos anos e de apontarmos para princípios, valores e políticas diferentes que nos permitam ser uma melhor sociedade e dispor de uma melhor vida futura?