Hoje não se lê. Olha-se. Donde começo este texto por uma sua possível conclusão.
A Teologia (Católica – e saliento este ‘Católica’, devido quer à sua natureza peculiar que a inclina para o ‘e’ em detrimento do ‘ou’, quer a eu ser um teólogo Católico –) é um amoroso-racional diálogo absorvente, profundo, pensativo e realista que está atento à humanidade e ao ecoparibálon mais abrangente destoutra.
Esta Teologia, e em consequência do dito antes, é sumamente importante, também por apresentar redes de sentido plurais, conversando, de modo aberto, através do tempo e sendo investigação, interpretação, história e dialetização fundante e comunicativa numa moldura paradoxal que lhe é conatural. E é-o, devido à sua tendência de reconciliação inteligível de saudação com saudade, suavidade e salvação.
Com isto em apreço, não há como ignorar que, para quem vê a realidade com olhos abertos, é impossível não ver que tal Teologia está discretamente presente em todos os locais em que é acolhida, de modo dialogante, sanador e fecundante para esses mesmos lugares. Basta colocar tais olhos nos milhares de leigos, sacerdotes, religiosos e consagrados que dão as suas vidas por uma Teologia incarnada nas vidas dilaceradas de tantos e tantas.
Basta deixar de olhar para os Olimpos que edificamos e ver os diversos Hades das demais pessoas, até onde descem, diariamente, os crentes católicos, movidos pela Teologia, para repararem, e tornarem salutares, as cidades, as vilas, as aldeias e as suas ecologias. Em suma: esta grande Tenda – que é a humanidade integral em Cristo Jesus – em que habitamos.
Nisto, o papel da Teologia Católica é fundamental. Assim, um reconhecimento desse facto não seria um ‘favor’, mas um dever. Essa Teologia não se debruça apenas sobre Deus. De modo algum. Ela debruça-se igualmente, com um olhar configurado pelo do Deus-Amor, sobre todo o âmbito da realidade Criada que não está minimamente separa de Deus por um ‘feio, negro e enorme abismo’ lessinguiano.
Contra o que poderá ser a opinião generalizada, a Teologia Católica, pela sua universalidade, olha para toda a realidade colocando mais questões (e sobretudo a questão capital) do que meramente dando respostas. Questões que – note-se – não são apenas suas, mas de todos os diferentes âmbitos do saber, do pensar e do viver com que se cruza.
Este questionar não é relevante apenas para a Teologia. Ele é essencial também para as demais ciências – acerca das quais se pode dizer que ela é o saber primordial e mais amplo, embora sem nunca querer desrespeitar os horizontes epistémicos de tais ciências, antes deles aprender, qual mãe que sempre aprende coisas novas dos seus filhos a quem ensinou – e, mormente, para qualquer sociedade que não queira ser um gigante fátuo com pés de barro. Deveras, a Teologia recusa focar-se no pragmático, indo, teórica e praticamente, mais às grandes interrogações e, se me for permitido dizer isto, ao todo em relação com o Todo.
Instilando — não por estratégias cínicas, mas pela sua própria identidade — o sentido do discernimento, da correlação e da interpretação, a Teologia convida a uma hermenêutica da humildade em que todos podem aprender de todos. E como sou feliz a poder ser Teólogo, seja numa instituição como a Universidade Católica Portuguesa no Porto, seja com os sem-abrigo, seja nas conferências que me pedem que dê a quem quiser aparecer para me ouvir e me colocar, ou não, perguntas desafiantes, num ‘reditus’ de acolhimento para um ‘exitus’ dador de mapas de sentido para quem somos neste Mundo em que vivemos.
Posso passar por inocente, e até ingénuo, nesta minha perceção, mas essa interface que a Teologia possibilita onde se faz presente (e é, explícita ou implicitamente, acolhida) areja o solo onde as virtudes humanas e intelectuais podem crescer – no caso das segundas, pode-se mencionar o denodo, a persistência, a simplicidade, o acolhimento e a criatividade. A Teologia correlaciona pessoas de diversas áreas em conversas colaborativas e abertas acerca, como disse a encíclica “Fides et Ratio”, de tudo e do Tudo que está por detrás desse tudo.
Oh, o que eu aprendi, quer de ética com colegas da academia, quer da vida com as pessoas com quem converso um pouco por todos os lados por onde ando. E isto, devo admitir, fortalece a confiança no método teológico e no valor dos seus resultados para toda a sociedade. De facto, a Teologia leva consigo uma confiança e uma esperança no real, na verdade e nas pessoas (mesmo as que rasgam a nossa sensibilidade). Sem isto, e o pressuposto metafísico teológico, os meios de comunicação social e as redes sociais atrofiam-se em arenas de ganâncias e desonras em que os factos são manipulados e tornados indignos da humanidade e da dignidade de todos e de qualquer um.
Por outro lado, a Teologia alerta para o facto de que o nosso Mundo, onde ela também vive, não é reduzível às maravilhosas descobertas científicas, que – lá está – nunca explicarão o tudo por não poderem aceder ao Tudo. Um Mundo que é cultura, determinada por interrogações e eleições de prioridades moldadas ao longo dos séculos. E no Ocidente, e onde este influiu, tal cultura foi de tal modo impregnada pelo Cristianismo que o mencionado Mundo e a nossa quotidianidade não são cognoscíveis e compreensíveis sem o decorrente do, e dado a conhecer pela, Teologia. Inclusive a nível do que permite que o Cristianismo seja atacado como é.
Por outras palavras: não há a realidade tal como a conhecemos, nem cognição abrangente da mesma, sem se levar em conta como nos relacionamos com Deus-Amor (nem que seja para O negar). Quem não deseja ser mais plenamente ele mesmo? Ocorre que isto, como Gödel demonstrou, nunca é possível apenas ‘desde dentro’. A alteridade é fundamental. Assim, a posição da Teologia é de constante insatisfação deferente ante o Mundo e a sociedade com as suas culturas. E é-o, não por despeito, mas por amor e generosidade estimulante pelo que de melhor existe em tudo.
Filhos, também e entre outros, da ‘cultura hegemónica’ de Antonio Gramsci, da ‘distopia punitiva’ de Michel Foucault, e do ‘erotismo orgástico’ de Wilhelm Reich, os nossos contemporâneos, sejam eles quem forem, podem ter na Teologia (Católica, no meu caso) um meio para encontrarem a sua, ardentemente buscada, identidade autêntica face ao destruir diário das nossas comunidades. Um meio para estruturarem vidas e sociedades íntegras e sustentáveis, pois sustentadas. Um meio para gerarem um ethos que fecunde a todos e a tudo num gesto de transmissão na poética da existência.
Isto que acabei de apontar, evita, ao abraçar a fragilidade e a plenificação, as escatologias das utopias totalitárias que ensanguentaram o séc. XX e estão a ensanguentar o séc. XXI. E isto, apesar de não sabermos, não obstante os prognósticos pioneiros do jesuíta Roger Boscovich no séc. XVIII, no que tais escatologias contemporâneas confluirão nas suas variantes de trans-humanismo e pós-humanismo. Variações essas em que o futuro descartará a humanidade em troca da Inteligência Artificial. Nada, assim, como a Teologia para (ensinar a) ler e interpretar a realidade por um saber que é salvífico, pois totalmente vivido no exigente amor com as suas múltiplas camadas de diversidade.
A Sabedoria deseja ser conhecida, e, assim e como diz o “Livro dos Provérbios”, o amor surge e faz-nos ficar apaixonados, inseparavelmente de um pensamento crítico analítico, pelas grandes ideias e as ainda maiores ações passadas, presentes e futuras. Para uma Teologia que estuda isto ‘desde dentro’ e ‘desde fora’ do tudo, nada disso se trata de ‘arqueologia’, ‘wishful thinking’ ou ‘ficção-científica’. É literacia do humano e da Criação. Uma literacia que funda um respeito baseado, não na conjetura superficial, mas na verdade empática a níveis profundos.
Eis aquela verdade crística que, afetando e reformando inapelavelmente as nossas vidas, reverbera, muitas vezes inconscientemente, em toda a imaginação humana, ou não fora o crístico o Humano por antonomásia. Assim, a Teologia não dá normativas exteriores, mas, como já disse, fomenta demandas íntimas, fazendo de toda a ação prática algo de genuinamente prático e em movimento de aperfeiçoamento comunitário na autenticidade e no amor. A Teologia não explora, como bem disse Bonhoeffer, as fraquezas de ninguém (até porque se só servir para momentos trágicos será inapelavelmente insuficiente), mas ajuda na coragem de nos darmos.
Isto, no fundo, é a Teologia: mostrar que a nossa vida não é acerca de nós, mas dos demais cada vez mais plurais< que moldam a pluralidade daquela mesma ciência sempre em expansão. Mostrar, de modo inteligível e evocativo, o que é a mais justa opinião e intervenção cívica e até política (numa eventual heterotopia). Eis a razão pela qual os teólogos, mestres em cultura (não estudam eles História, Filosofia, Sociologia, Psicologia, Medicina, Arte, Antropologia, Economia, Literatura, Gestão, Cosmologia, Biologia, Religiões do Mundo, Direito, Bioética, etc.?), devem ser cultivadores de humanidade.
Cultivadores e cuidadores, sem dúvida, dos homens e das mulheres. E isto, seja nas Universidades onde revelam a organicidade dos diversos saberes, seja pelas ruas onde se faz o léxico da vida, seja em publicações de maior ou menor gabarito (com alcance diretamente inverso) e, entre outros tópoi onde nunca deixam de estar presentes, púlpitos sofridos de desgaste, incompreensões, difamações e ódios figadais.
Se a Teologia (Católica) não for pervertida por ‘isto’ ou por ‘aqueles’ (na linha do denunciado por Lonergan em “Method in Theology”); se ela for a Teologia da verdade religiosa no amor (como falou sem cessar Staniloae Dumitru), então, a sua relevante vocação, estendida paradoxalmente a todos (mesmo os ateus e agnósticos), é apreciativa, integrativa e terapêutica. E isto passa por encontrar, e ajudar a encontrar, o amor em tudo, desde a inglória pernóstica ‘Colina de Ares’, aos demais lugares por onde Paulo passou a dar a conhecer a Teologia: as sinagogas, as margens dos rios e as ruas e vielas onde, tristemente, Êutico foi vítima da sua eloquência (da qual nada tenho).