Todos sabemos que o dinheiro contamina a política, mas a maioria ignora que a política vai agora contaminar o dinheiro. O contágio foi iniciado na China e avizinha-se uma pandemia digital do ponto de vista democrático.
A política irá afetar as nossas carteiras? Vamos deixar de poder decidir sobre o nosso próprio dinheiro? Infelizmente, sim. Aliás, é por isso que a centralização das moedas digitais será irresistível nos regimes autoritários e não só.
Não foi por acaso que as moedas digitais dos bancos centrais (CBDC) surgiram primeiro na China, sendo ideais para controlar politicamente os cidadãos. Outras CBDC estão já na forja em vários países, sendo importante perceber que este dinheiro digital é diferente do dinheiro eletrónico dos nossos cartões bancários. Tratando-se de um tipo de dinheiro programável, as CBDC estão umbilicalmente ligadas ao poder.
Tal como o correio eletrónico substituiu o correio postal, as moedas digitais substituirão as tradicionais, porque comportam menos custos e são mais convenientes. Não se trata de fazer futurologia, mas sim de observar tecnologias comprovadas e fatos consumados. Ninguém “desinventará” a tecnologia blockchain, criada para realizar transações na Internet sem recorrer a terceiros. Pelo contrário, esta forma expedita de transacionar irá disseminar-se rapidamente.
As implicações éticas, políticas e económicas desta inovação tecnológica representam um marco histórico no desenvolvimento humano. Tenho dedicado especial atenção a este assunto por duas ordens de razão: por um lado, julgo que estamos perante uma das mais extraordinárias oportunidades de desenvolvimento na história da humanidade; por outro lado, creio que a eventual centralização de tamanho poder digital significa um revés para a privacidade e a liberdade, capaz de destruir a própria democracia.
A nossa vida é cada vez mais digital. Até o dinheiro passou a ser transacionado sem recurso a bancos, fluindo diretamente entre as carteiras digitais instaladas nos smartphones dos próprios interessados. Não estamos a falar de apps equivalentes a terminais bancários, mas sim de apps que fazem as vezes dos próprios bancos. A evolução tecnológica que tornou esta desintermediação possível é um mecanismo automático para gerar confiança em quaisquer transações realizadas em redes criadas para o efeito na Internet. Estas redes foram originalmente concebidas para serem públicas e descentralizadas, mas começam a ser centralizadas por governos certamente interessados em reforçar o seu poder.
As moedas digitais podem ser descentralizadas ou centralizadas. Antes das CBDC chegaram as criptomoedas, a versão original destas moedas programáveis. Sendo descentralizadas, não são tuteladas por qualquer entidade. Por isso, podem ser transacionadas com chaves privadas criadas pelos seus proprietários. Ao contrário, as moedas digitais centralizadas (por enquanto confinadas a algumas cidades na China) não admitem a utilização de chaves privadas. Isto é muito problemático, porque estas chaves são “máscaras digitais” que protegem a privacidade das pessoas e a saúde da democracia.
Enquanto as criptomoedas são programadas em código aberto (open source) e transacionadas em redes públicas descentralizadas, a programação das CBDC é efetuada em código fechado (closed source) para que estas moedas sejam transacionadas em redes de acesso controlado. Ora a centralização e eventual monopólio estatal das moedas digitais não é compatível com a privacidade e a liberdade, sobretudo porque as futuras carteiras digitais serão tão programáveis quanto os murais de redes sociais como o Facebook, o que veremos na segunda parte. Como as moedas digitais são programáveis, o dinheiro já não tem de reduzir todo o valor a uma única dimensão. Para quê centralizar o maior sistema de incentivos da humanidade? Será para “entregar o ouro ao bandido”, desperdiçar a criatividade da sociedade civil e castrar a inovação?
Na recém-chegada Internet do Valor transacionam-se dados originais, enquanto na anterior Internet da Informação apenas se partilhavam cópias. Esta evolução fica a dever-se à invenção de um protocolo para escrutinar automaticamente a validade das transações efetuadas em redes digitais, tornando a Internet o meio de eleição para negociar dados representativos de valor (“tokens”), por exemplo, dinheiro (criptomoedas), arte (NFTs) e até votos. A presente capacidade de escrutinar valor sem recorrer a terceiros, dá plena autonomia aos membros destas redes para ajuizar, tomar e executar decisões diretamente na Internet. É a previsível disseminação dessa inusitada independência que volta a fazer da Internet uma força transformadora da sociedade.
No entanto, o sentido desta transformação é incerto. Afinal, não esqueçamos que apesar da Internet ter sido originalmente concebida para descentralizar a informação, encontra-se hoje dominada por meia dúzia de gigantescas plataformas tecnológicas que controlam quase toda a informação. Da mesma forma, em vez de servir a descentralização do dinheiro e a granulosidade da governação, também a nova Internet do Valor pode vir a ser capturada pelos “donos disto tudo”.
Ainda por cima, quem melhor compreende esta nova realidade, na sua maioria jovens habilitados e aptos informaticamente, parece mais interessado em comprar bitcoins do que em debater e explicar as consequências da presente mudança. Ora, a miopia política de pessoas bem informadas é tão confrangedora quanto perigosa para a democracia.
Para perceber o que está em causa, convém saber que quaisquer entidades podem confiar a 100% nos acordos realizados entre si numa rede blockchain. Isto é tão contraintuitivo que convém repetir: estas redes permitem transacionar valor real na Internet de forma automaticamente segura. É esta garantia de segurança que torna possível a existência de contratos cuja execução fica assegurada no preciso momento em que são celebrados, os chamados smart-contracts ou “contratos inteligentes”. Estes contratos tanto podem contabilizar moedas como votos, pelo que vêm agilizar os negócios e a política. Por outras palavras, praticamente nada será como dantes.
O facto de ser possível tomar e executar decisões de forma autónoma, em redes escrutinadas apenas pelos respetivos membros, sem ter de esperar por validações ou autorizações de terceiros, tem profundas implicações económicas e políticas. Por exemplo, o Twitter adicionou há semanas um recurso que permite o envio de gorjetas e outras doações em bitcoins como se de um mero tweet se tratasse. Esta funcionalidade está disponível em smartphones e outros dispositivos com o sistema operacional iOS e será também realidade nos dispositivos Android. Claro que esta evolução tecnológica não seria preocupante se fosse utilizada apenas para dar gorjetas…
A questão é que se tornou possível obter consensos digitais sobre a legitimidade e validade das transações efetuadas no mundo real! Os protocolos informáticos das redes blockchain definem as regras que presidem às decisões, estipulam quem nestas pode votar e programam até a respectiva auto execução. No fundo, estas redes digitais integram os poderes legislativo, judiciário e executivo, podendo tal autonomia ser auspiciosa num esperançoso mundo liberal mas, também, preocupante no “novo normal”.
Não podemos deixar de pensar nas consequências do obsoletismo de uma separação de poderes que tem sido imprescindível ao bom funcionamento da democracia. Não se julgue que as redes blockchain permitem apenas formar consensos sobre o rigor de transações financeiras. Nada disso. Para além de possibilitarem o escrutínio automático dos votos necessários para acordar decisões políticas, estas redes viabilizam uma implementação inexorável dessas mesmas decisões. Como a contagem dos votos dos participantes em redes blockchain é instantânea e as transações efetuadas com rigor matemático, quaisquer acordos surtem efeito imediato (justificando a expressão “contratos inteligentes”). Na verdade, a confiança nestas redes é garantida a 100% (senão o Bitcoin nada valeria), pelo que a tecnologia blockchain ameaça o sustento dos intermediários da confiança adstrita aos negócios e à governação, suscitando a atenção de banqueiros e políticos em todo o mundo.
As chaves criptográficas utilizadas para fazer tudo isto e para operar as moedas digitais são demasiado poderosas para serem monopólio do Estado. Pensando bem, não admira que a proibição das criptomoedas esteja já em curso na China. Trata-se da primeira passadeira vermelha estendida às moedas digitais centralizadas, visando o seu domínio exclusivo. Se a mesma fórmula vier a ser repetida noutras paragens, acredito que aumentará o pendor autoritário dos governos e contribuirá para uma propagação viral do pensamento único.
Para estabelecer um “cordão sanitário” em redor do mundo livre face à pandemia digital que se avizinha é necessária uma reforma liberal do dinheiro. Na segunda parte deste artigo, veremos como a continuidade democrática depende da livre concorrência entre moedas digitais patrocinadas pelo Estado e pela Sociedade Civil.