Um amigo convidou-me há dias para assistir, em Berlim, a uma sessão da meia-noite de cinema mudo, no Kino Babylon. O filme datava de 1929, ano em que foi censurado pelo estado alemão e teve banda sonora tocada ao vivo, ao piano. Tratava-se de uma ode ao amor, protagonizada por um vigarista apaixonado e por uma mulher ambiciosa que o levou à desgraça. O Babylon é um lugar cheio de patine, privado e quase encheu naquela noite. Nos grandes foyers bebia-se cerveja alemã, num ambiente descontraído, muito próprio da cosmopolita e tolerante Berlim. E ali aconteceu cinema.

Ao entrar, lembrei-me do Cinema Batalha, tais as semelhanças dimensionais e de configuração das duas salas. E foi sentado naquelas velhas poltronas, acompanhado pela minha Vollbier, que senti curiosidade em indagar sobre a programação do novo projeto municipal que sexta-feira entra finalmente em funcionamento na reabilitada sala do Porto, depois de um enorme investimento municipal e da contratação de mais de duas dezenas de funcionários para o efeito. E assim fui ao website do Cinema Batalha, que agora se chama “Centro de Cinema Batalha”.

Nada tenho contra a arte erudita e contra a cultura de nichos. Nada a opor que um equipamento público/privado, mas pago exclusivamente com recursos públicos, exiba conteúdos artísticos com cariz político, mostrando visões minoritárias e narrativas alternativas. A cultura e a arte não podem ser esterilizadas e limpas de narrativas sociais, raciais, de género ou políticas… É por isso não apenas normal que tais conteúdos sejam difundidos em projetos públicos, como é fundamental que o sejam. E nada impede que o Município apoie projetos onde eles surjam, desde que não o faça a favor apenas de uma mesma visão política ou sensibilidade.

Outra coisa é a ideia que parece instalada de que para se ser intelectual, artista, programador ou curador, se tem obrigatoriamente de radicalizar à esquerda e produzir quase exclusivamente obras de cariz político, racial ou de género.

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Ser antifascista está certo, ser homofóbico ou racista é abominável, ser ecologista é meritório, o que não podemos aceitar é que para se ser artista em Portugal ou para se ter apoios públicos nas artes, se seja obrigado a abordar determinados temas e a fazê-lo com o discurso único e vigente. Uma autarquia, como qualquer outro organismo público, está constitucionalmente obrigada a especiais deveres de imparcialidade e isenção, que não se compadecem com esse apoio sistemático a narrativas monolíticas e pensamentos únicos. E não pode cancelar tudo o resto.

A lógica obtusa do cancelamento, já teve o seu esplendor em regimes como o nazismo ou ditaduras de inspiração marxista, antes de assumirem deliberadamente a censura como prática para “educar o povo”. Em Portugal estamos agora perante um processo já entranhado e semelhante de politização da cultura, que ameaça não apenas os preceitos constitucionais sobre os deveres de isenção do Estado, como estrangula a própria cultura, ao segregar uma parte dos artistas, curadores e mecenas, mas também uma importante fatia do público.

Voltando ao Cinema Batalha, que esta sexta-feira abre portas pelas mãos do Município, se era já duvidosa a forma encontrada pela Câmara Municipal do Porto para conservar o monumental edifício (privado) e a sua função – estratégia bem diferente das adotadas em equipamentos como o Coliseu ou o Teatro Sá da Bandeira –, esperava-se pelo menos que apresentasse uma programação eclética e diversificada, capaz de elevar o conhecimento dos menos e dos mais eruditos mas que também fosse acessível aos que, querendo ou não, são obrigados a pagar a enorme conta pública do projeto.

Infelizmente, a sua programação é, afinal, mais uma extensão da mesma nomenclatura que há anos procura, com relativo sucesso, apoderar-se dos palcos do país e também dos da cidade do Porto, com a particularidade dos custos do projeto serem especialmente elevados e da programação ser ainda mais doutrinária do que é costume.

Numa visita ao website do Cinema Batalha, onde os longos textos, links e logotipos nunca referem ou indiciam tratar-se de um projeto público e pago pela Câmara do Porto, percebemos rapidamente que este Batalha não é para velhos, também não é para novos e muito menos é para os portuenses. E também não é para cinéfilos, mas sim para uma pseudoelite sustentar a sua própria narrativa política e, claro, autopromover carreiras profissionais enquanto distribui benesses.

Já tinha um dia escrito (mas é agora comprovável no dito website), que o projeto de conteúdos para o Cinema Batalha motivou já a contratação de mais de duas dezenas de funcionários que agora são quadros permanentes de uma empresa municipal e despesa corrente para o Município. O mesmo que este ano abandonou a política de redução de endividamento que seguia há duas décadas, para contrair 50 milhões de euros de empréstimos bancários, quando os juros estão a crescer. 50 milhões de euros correspondem ao endividamento, num ano, de metade da dívida reduzida por Rui Rio em 12 de governação.

Ainda ninguém nos disse quanto custou a reabilitação do edifício, quanto custou equipá-lo e quais os custos correntes anuais que irá produzir. Mas, no mesmo website do Cinema Batalha, ficamos a saber que a Ágora, empresa 100% municipal que o sustenta, além das duas dezenas de novos funcionários contratados só para gerir uma sala de cinema, possui nos seus quadros outros 16 funcionários apenas para o departamento de gestão de recursos humanos, a que se juntam, no departamento jurídico e de contratação, outros 16, que coabitam com mais 12 gestores na direção financeira… e 9 especialistas para tratar, em permanência, de comunicação.

Sublinhe-se, a Ágora é apenas uma das seis empresas municipais da Câmara do Porto e trata apenas de alguns dos equipamentos culturais municipais (que não, por exemplo, a rede de museus) e do desporto. Cada uma das outras empresas municipais possui os seus próprios departamentos de recursos humanos, financeiros, jurídicos e de comunicação, todos em permanente engorda. E também o Município possui os mesmíssimos departamentos, ainda mais gordos.

Não foi sempre assim. A Ágora, empresa municipal de cultura e desporto, vê o seu quadro de pessoal crescer à razão de 20% ao ano, há cinco anos, se bem que os seus relatórios sempre digam que agora é que é para estabilizar. Mesmo nos anos de pandemia, sem espetáculos, com equipamentos de portas fechadas, sem festas de São João ou passagem do ano, o quadro e a despesa da Ágora aumentaram.

E o número de diretores na cultura cresceu, ganhando cada um deles mais do que o vice-presidente da Câmara, mais do que um vereador, mais do que um diretor municipal e também mais do que os próprios administradores da empresa, cujo vencimento está limitado por Lei. Não sei mesmo, aos dias de hoje, se alguns não ganharão mais do que o próprio presidente da Câmara, mais ajudas de custo. E todos acumulam com outras atividades, nomeadamente de lecionação, muitas vezes em horário de trabalho.

Se é difícil perceber que tal esteja a acontecer, é ainda mais complexo pensarmos que recentemente tenha sido nomeada uma diretora para o Matadouro, quando este não está nem se vislumbra quando venha a estar em funcionamento. E que, se e quando estiver, será privado, pois foi concessionado.

É igualmente difícil entender que o Município tenha contratado uma diretora para gerir a Galeria Municipal, um mês antes de a ter encerrado para obras, mas que um ano depois anuncie que não as fará, mas que a Galeria permanecerá fechada, por não haver dinheiro para a sua programação.

E é estranho pensarmos que o Teatro Municipal viveu todos estes anos, desde que Paulo Cunha e Silva o reinventou, com apenas um diretor, mas que agora, com o projeto consolidado, precise de dois…

Se tudo isto é difícil de entender, não é mais fácil perceber o que fazem 16 pessoas a gerir os recursos humanos de um quadro de pessoal inferior a 300, quando boa parte dele é composto por diretores, chefes, coordenadores e muitos se distribuem, não a favor de qualquer serviço ao público, mas em trabalho administrativo, como os 16 juristas ou os 12 gestores.

Não vejo como, mas admito que tudo isto seja necessário ou pelo menos defensável. Seguramente que o spin da Câmara do Porto dará palha para burros sobre o assunto. O que não é defensável é que todo este King Kong possa servir para difundir conteúdos de pretenso elitismo e quase sempre de cariz político sectário, satisfazendo uma minoria, com o dinheiro da maioria, como é especialmente gritante no Batalha.

E para que não se diga que o que escrevo carece de prova, recorro a elencar os autores e obras da programação pós inauguração anunciada para os primeiros meses e à citação das sinopses presentes no dito website:

Claire Denis (“Todo o Corpo”): “crescida na África Subsariana ocupada, é entre diversos países africanos e França que o seu cinema se vai ambientar, simultaneamente questionando os preconceitos da cultura colonial europeia e os seus mitos de progresso e sucesso”.

Tabita Rezaire (“Premium Connect”): “artista, yogi, doula e aprendiz de agricultora, recorre à imagem em movimento para desenhar um caminho para uma descolonização de corpos e mentes…”.

Agnieska Polska (três filmes): “a extinção humana, a memória, a tecnologia e o desastre ecológico são alguns dos principais temas na obra de Agnieszka Polska, artista visual polaca a quem o Batalha dedica o seu primeiro foco de artista”.

Tomás Paula Marques (vários filmes): “percorrendo as quatro curtas que compõem à data a filmografia de Tomás Paula Marques, uma preocupação comum sobressai: a do direito à autodeterminação individual e à dignidade em sociedade”.

Políticas do Si-Fi (primeiro ciclo do Batalha): “o primeiro programa temático do Batalha dedica-se a discutir o modo como o género da ficção científica vem absorvendo a discussão de questões que marcaram debates políticos e culturais do século XX e do nosso tempo. Neste ciclo organizado por subtemas — relacionados com subalternidades, controlo, diásporas, ecologia e medo nuclear — cruzam-se diferentes práticas de cinema e inquietações humanas, através de filmes que se apresentam como comentário político, ferramentas de luta e gestos de reivindicação de “futuros preferidos”.

Seguramente, 99% dos leitores nunca ouviu falar de nenhum destes autores ou cineastas, yogis, doulas ou aprendizes e que 99,9% não tem qualquer interesse em ser levado ao sacrifício de ser doutrinado, sentado numa cadeira forrada do Batalha.

Já não digo que se inscrevesse de permeio uma sessão do Bamby para que crianças de famílias mais ou menos conservadoras pudessem assistir ali a um filme. Mas se tal fosse possível, estas doulas e aprendizes encontrariam no velho filme da Disney sinais de algum sexismo ou mesmo atentados à dignidade animal dos veados de cauda branca, cuja existência em África não consta e cuja cor da cauda lhes pareceria tóxica. Mas pelo menos, que pudéssemos assistir no Batalha a um filmezinho a que qualquer mortal resistisse sem esforço e sem levar uma injeção parcial sobre colonialismo, contra a globalização ou a favor da igualdade de género.

Recentemente o arquiteto contratado pela Câmara do Porto para projetar a reabilitação do Cinema Batalha confessou uma satisfação e um lamento. A satisfação é “a verificação de que aquilo [o Batalha] era um projeto revolucionário que juntava um grupo importante de artistas ligados ao PCP”. O lamento é a desvirtuação do seu próprio projeto de reabilitação, por ter sido necessário “meter o Rossio na Betesga. Havia [no Batalha] uns foyers muito generosos, era esse o seu carácter mais revolucionário: ser uma câmara escura diretamente aberta à cidade. Isso foi um bocadinho prejudicado, pela necessidade de espaço da Ágora, que tomou conta do Batalha, para lá meter 20 funcionários. Querem ter uma pequena biblioteca, uma loja, uma casa de chá, um bar, cacifos…”. Citei Alexandre Alves Costa, em respostas recentes ao jornal Público, a propósito do projeto de reabilitação de que é o autor.

Quando uma entidade pública decide gastar milhões aos contribuintes, sem sequer tentar ou conseguir encontrar parcerias, mecenas (deveríamos perguntar porque razão não os quer ou os não consegue) ou outros financiamentos públicos ou privados, exige-se-lhe duas coisas: que o investimento seja aplicado de forma parcimoniosa e também que os conteúdos sejam ecléticos e não sigam narrativas de pensamento único. A programação de um equipamento público deve voltar-se para o serviço público, “como uma câmara escura que se abre à cidade” – volto a citar Alexandre Alves Costa – e não ser instrumento de uma coutada de fação que ali realiza o seu festim.

Nunca entrei no Cinema Sá da Bandeira quando este exibia os famosos filmes, que na era pré-internet faziam furor. Mas pelo menos, nesse tempo, a “festa” da pornografia era paga por quem lá ia e era lucro ou prejuízo de privados. Também não fui agora convidado a entrar no Cinema Batalha, mas estou, como os outros munícipes do Porto que nunca lá porão os pés, há vários anos a pagar a pornográfica conta pública desta nova “festa” de uma parte da esquerda-caviar da cidade e arredores.

Na verdade, nem sei se teria roupa que encaixasse no dress code “Queer” que parece mandatório no projeto e, assim me fico por casa ou vou ao privado Trindade, a ver bom cinema ou sempre e quando visitar o meu amigo em Berlim.

Toda esta orgia de nicho de uma certa esquerda-caviar pseudointelectual (que não é sequer a esquerda ou pelo menos toda a esquerda) é patrocinada por um presidente eleito pelo conservador eleitorado do Porto e que, tendo em 2021 desperdiçado a sua maioria absoluta, é presentemente sustentado politicamente pelo PSD, pelo CDS e (embora cada vez menos) pela IL. E isso é, entre muitas outras coisas expressas neste artigo, igualmente perplexizante.

PS: Após a minha última crónica, acerca de um procedimento para conceção de um novo logotipo para o ICBAS e Centro Hospitalar Universitário do Porto, que promete pagar honorários a designers com “um vale de compras do El Corte Inglés no valor de 500 euros”, recebi dezenas de mensagens de apoio e muitas informações. Numa delas, foi-me dada a conhecer a existência de um concurso semelhante promovido pela mesma entidade em 2011, e em que foram apresentadas 150 propostas por cerca de 90 concorrentes. Segundo a carta que me foi disponibilizada e então enviada aos concorrentes pelo presidente do júri e diretor do Instituto, nenhuma cumpria “os critérios de criatividade pretendidos” que o programa do concurso nunca relevou quais eram. Ou seja, o ICBAS anda em procedimentos de contratação para a conceção de um novo logotipo há pelo menos 11 anos, sempre incorrendo nos mesmos erros e sempre desprezando o trabalho e papel dos profissionais do setor. Há outra curiosidade nesse procedimento de 2011, é que o diretor do ICBAS que então assinou a carta é hoje o Reitor da Universidade do Porto.