É um pequeno preço a pagar pelos privilégios de viver em democracia: ter de levar com umas almas que, volta e meia, falam em nome do “povo”.
Por qualquer razão misteriosa, este subgénero de criatura crê-se investido à nascença de aptidões especiais que lhe permitem ouvir melhor que o seu semelhante os pensamentos silenciosos dos concidadãos; interpretar o zeitgeist; agregar e analisar, num subconsciente matemático qualquer, o somatório de todas as opiniões que ouviu e até das que não ouviu. Se o expressassem apenas em privado, só os familiares e vizinhos é que sofriam, mas faz parte destes miraculados insistir em partilhar com o mundo a sabedoria do seu dom, como se uma entidade divina qualquer os tivesse enviado à Terra com essa missão ou, pelo menos, tivessem sido contratados para esse fim pela ONU.
Como reconhecer estes mensageiros celestes, se se passeiam entre nós como mortais iguais aos outros? É muito simples: substituem o pronome pessoal “eu” ou “nós” por “o povo”, questão complicada do ponto de vista gramatical, quanto mais do antropológico. Na prática, isto resulta na repetição rotineira de sentenças como: “O povo não gosta”, “o povo está farto”, “o povo está cansado”, “o povo sente-se enganado”, “o que o povo quer é”, “o povo não quer saber de”, “o que preocupa o povo”, “o que interessa ao povo”, “o povo não vai nessa [cantiga, conversa]”, e outras que tais.
Em tempo de eleições, é claro, aparecem mais e em lugares mais altos, tipicamente, nas lideranças partidárias. Dizem: “O povo disse”, “O povo falou”, “O povo foi muito claro”, “É preciso saber interpretar a vontade do povo” e formulações afins, saídas da boca de quem se considera esta câmara de eco mágica que destila, do caos da vozearia, a mensagem comum, por regra, curiosa e inexplicavelmente, consonante com os seus interesses.
Ora, lamento, mas trago notícias chocantes: o “povo” nunca disse nada. E não disse porque não se reuniu na cave do prédio, debateu e emitiu um comunicado conjunto. Quem “disse”, foi o Zé, e a Margarida, e a Maria, e o Vanderlei, através dos respectivos votos. No fim, aquilo com que ficámos foi com o registo de todas estas vontades – e então, pusemo-nos a fazer contas de forma a encontrar a solução que pudesse agradar ao maior número de indivíduos possível. Dito de outro modo: ninguém sabe o que o povo quer porque o povo, como mostram os resultados de qualquer eleição, quer coisas diferentes. Uns querem a direita moderada, outros a esquerda moderada, uns a direita extrema, outros a extrema-esquerda, uns o centro, outros os de coisa nenhuma, uns a novidade, outros os de sempre. O que há são pessoas; o “povo” não existe.
Vem isto a propósito do começo da temporada dos debates, das cogitações sobre a solução de governo que saia das eleições dos Açores e da recente sondagem da Universidade Católica para o Público, RTP e Antena 1, que diz algumas coisas surpreendentes: que a maioria dos inquiridos recusa maiorias absolutas, prefere um governo da Aliança Democrática com acordos parlamentares com outros partidos de direita, preferencialmente a IL, e, pasme-se, que seja o partido mais votado o chamado a formar governo.
Até tive de ir apanhar ar, rever os níveis de açúcar e limpar três vezes os óculos antes de ler outra vez. Então, isto não era tudo mais ou menos ao contrário do que o que nos têm andado a dizer? Nem vamos discutir o facto de esta ser uma das poucas sondagens que vimos até agora com uma amostra com mais de três dígitos (1192 inquéritos válidos). A evidência de cada sondagem chegar a resultados diferentes (ou uma empresa de sondagens única seria suficiente) deveria bastar para termos mais pudor antes de falar em nome de supostas vontades colectivas.
Os partidos que mais gostam de andar com o povo na boca, isto é, os populistas de esquerda e os de direita (por outras palavras, os que acham, por exemplo, que “o povo” é contra os imigrantes ricos e os que acham que “o povo” é contra os imigrantes pobres), são, precisamente, aqueles que “o povo” menos costuma escolher em eleições. Porque “o povo” vota, desde 1975, esmagadoramente no PS e no PSD. Não na UDP, nem no MRPP, nem no Bloco, nem na CDU, nem no PDR, nem no Livre, nem no Chega, nem no PNR. O problema é se o PS e o PSD fingem que deixaram de saber isto e passam a querer travestir-se dos porta-estandartes ideológicos que nunca foram nem poderiam ter sido.
Se o Partido Socialista e a Aliança Democrática quiserem salvar o regime democrático e, por arrasto, a sobrevivência a prazo dos seus próprios partidos, respeitem, realmente, as “vontades populares”. Deixem governar o partido mais votado e o Parlamento falar pelos vários “povos” que representa; saibam fazer política na oposição e não só quando estão no poder. Párem de usar os extremistas como arma ou ela ainda vai disparar nas mãos de alguém. Afinal, se tantos discutem hoje se nascemos ou não com um género definido, não quererão, certamente, obrigar-nos a ser esquerdossexuais nem direitossexuais radicais cisgénero. Se calhar, nascemos politicamente gender fluid (eu, pelo menos, quero casas de banho onde pessoas de esquerda e direita se possam encontrar).
E deixem passar a democracia, que tem rugas, mas só fica mais bela com a idade.