1 Anda por aí uma conversa mole – e que deveria ser dura – sobre a pretensa agonia do PSD: os conversantes duvidam da utilidade do maior partido da oposição e com notável segurança quase lhe recusam uma vida digna de menção. Uma não existência, em resumo. Pelo contrário, as novas formações surgidas na cena política, mais conformes ao espírito do tempo, teriam, embora por razões de natureza diferente, um aconchegante lugar cativo no futuro. Daqui a assinar-se a certidão de óbito do PSD pode ir um passo (que os conversantes não devem ter medido bem).
Exit PSD?
E no entanto… No entanto eu não seria tão afoita nem no raciocínio, nem no vaticínio. Uma coisa é uma maré baixa, outra uma seca assassina: o que alguém com um mínimo de seriedade (não é preciso toda) vê hoje na radiografia é uma maré baixa invulgarmente prolongada mas não a aridez de um deserto (mesmo que pareça ou apeteça que pareça). O PSD assinou um caderno reformista como nenhum outro partido, tem vasta implantação nacional, sólida base de apoio, uma militância não negligenciável e foi isso mesmo que mostrou ao ganhar Lisboa junto a algumas outras cidades.
2 Quando no final da primavera passada iniciei os meus comentários na então na TVI24 – hoje CNN – percebi que faria sentido explicar porque é que Rui Rio não podia continuar ao leme do PSD. Visto de fora, era isso mesmo que era necessário fazer, explicar, indo à raiz do erro. Ou pelo menos no que julgo ter sido um muito lesivo equivoco político: Rui Rio fixava o PSD no centro, não arredando pé desse (imaginário) estacionamento político, não agregando o espaço a sua direita e pouco ou nada a ele atendendo. E no resto, o líder do partido suspirava pela atenção do PS oferecendo parceria colaborante, sempre recusada. De novo visto de fora, a insistência podia ser confrangedora: porque haveria o primeiro ministro nada amigo de reformas dignas desse nome e sentado no sofá da geringonça, de aceitar a mão do PSD? Não tinha já o próprio António Costa sinalizado que tudo o que queria do PSD era vê-lo pelas costas?
Extraordinariamente esta opção estratégica – uma extravagância politica sem perdão – não era mal vista na maioria do partido: não ganhara Rui Rio duas eleições internas no PSD? Que melhor prova da felicidade dos militantes do que um líder honrado com duas vitórias? E houve até uma terceira, contra Paulo Rangel.
Resultado: estava ali um chefe de pedra e cal, barões convencidos da bondade do rumo escolhido, bases antecipando com optimismo uma vitória nas inesperadíssimas eleições de Fevereiro. Enquanto se ia e vinha neste caminho de rosas, as direitas, eleitoralmente entregues a elas próprias, iam-se tresmalhando.
3 As eleições ampliaram ainda mais um gelado multifracasso: a estratégia de Rio não convencera ninguém, Rio também não, o poder agregador do PSD fora inteiramente desbaratado, o CDS abandonado à sua sorte em vez de aliado ao PSD, e todo o espaço à direita do PS ficou encostado ao muro da maioria absoluta. Semanas depois desta débacle o PSD, porém (é obra!), piorou de saúde: o demissionário Rui Rio sem pressa de demissionar, arrastou a sua saída até ao Verão (!) enquanto vai colocando pedras nos trilho do seu partido. À luz do dia, escolhe, decide, faz eleger, nomeia. Na sombra dos bastidores podemos temer pior sob a forma de comprometer o PSD em aventuras futuras e penso na regionalização, por exemplo. Uma fulcral questão – a mais decisiva para o futuro de Portugal – que Rui Rio subscreve com apetite, não ignorando que o PS a defende com igual ou maior apetite ainda (pequeno entre parêntesis: a sofreguidão socialista de tão compulsiva devia ser dissecada para futuros compêndios de ciência política).
Numa palavra: seria deplorável que um destes dias, à revelia dos portugueses, o país se visse confrontado com uma negociação já apalavrada e uma agenda já pronta em matéria tão estruturante e fracturante como a regionalização.
Pequeno aviso às navegações a propósito do que aí pode vir: em política há sempre pior.
4 Tendo os fieis de Rui Rio sido recentemente eleitos para cargos no grupo parlamentar do PSD com percentagens do calibre das habitualmente obtidas pelo chefe da Coreia do Norte, sobra uma duvida: uma parte do partido se não mesmo a maior parte, mantém-se rioista? Nas vésperas da batalha pela liderança social democrata, o rioismo está de saúde e recomenda-se por interposto novo líder ? Ou as últimas escolhas e nomeações do ainda chefe não passaram afinal de uma pequena vingança política? Ou seja, Luís Montenegro e Jorge Moreira da Silva querem arrancar de vez uma colheita política de ruins frutos ou a volúpia de ganhar votos passará por voluntariamente herdar a má sementeira?
Não ficou claro (ou eu não percebi). O que me parece é que tem de se merecer ganhar um partido. Vencer não é de borla: há que saber para que se ganha, com quem se ganha, que Portugal está aí, ao fim de quase sete anos de socialismo. E que diálogo se estabelecerá entre quem se candidata agora e o país. Convém lembrar que a responsabilidade pelo estado das coisas não é só do ainda líder Rui Rio.
5 À primeira vista Luís Montenegro parece mais bem colocado na corrida e Moreira da Silva mais hábil em lidar com uma agenda que pode simultaneamente seduzir os meios urbanos mais sofisticados e o universo da media&comentadores
Lembro-me bem de um e de outro: Montenegro mais empático, Moreira da Silva mais cerebral. O primeiro tem um espírito prático que o afasta de estados de alma políticos; o segundo é um intelectual norteado e ocupado em full-time com a agenda que melhor se funde com o ar deste tempo e na qual ele nada como peixe na água. Montenegro ganhou fama e currículo político pela condução assertiva e combativa do grupo parlamentar do PSD e do CDS durante a governação de Passos Coelho. Moreira da Silva foi cooptado por Durão Barroso, Cavaco Silva, Passos Coelho – não é dizer pouco – com os quais colaborou em diversas instâncias e etapas da vida do PSD. Luís Montenegro tem a paixão da política, Moreira da Silva a das ideias.
Sem nada que os aproxime sequer, há um traço de união comum: ambos têm a coragem da sua própria solidão. Liderar um partido “em baixa”, sem parlamento e durante anos que parecerão décadas, será obra. Mas é também isso que muito enobrece a política.
6 Do que se trata porém agora é de saber se o empático Montenegro e o cerebral Moreira da Silva estão adaptados às actuais circunstâncias políticas: saberão falar ao país, construindo uma indispensável “diferença” dos socialistas e afirmando-a? Saberão convencer o eleitorado de que há dois Portugal distintos, o do PS e o autêntico?
É certo que o que se lhes pergunta ou o que deles se relata desagua quer na contabilidade interna quer no Chega mais do que nas grandes e decisivas questões. Por exemplo, a regionalização, o Estado, as políticas públicas, as contas. Que rupturas indispensáveis e que reformas inadiáveis assinariam um e outro?
Só porém após se saber o que querem para o Portugal através do PSD se poderá tratar do resto. No primeiro acto trata-se de construir e depois de afirmar a “diferença” em relação ao PS, contrapondo-lhe um modelo de sociedade e sendo uma alternativa indiscutivelmente convincente. Saber se os novos partidos são – ou serão – epifenómenos e não o sendo, ser capaz de gerar entendimentos com as direitas, só pode ocorrer num segundo acto. Ou melhor, só deveria ocorrer num segundo acto.
Se a peça tiver dois actos, claro. Há peças só com um.