Com cerca de metade da população portuguesa, a Irlanda parecia condenada a soçobrar na década de 2010, forçada a pedir assistência financeira internacional por estar na iminência de uma bancarrota, tal como aconteceria, na mesma altura, com a Grécia e Portugal.

A partir desse “buraco“ comum, embora com raízes muito diferentes, a Grécia e Portugal continuaram na “liga dos últimos” dos países membros da União Europeia, ultrapassados até por alguns recém-chegados , com economias à partida bem mais frágeis.

Em contrapartida, a Irlanda é hoje o segundo país da UE em PIB per capita (muito acima da média da UE) e enfrenta um “pequeno” problema: tem dinheiro a mais, com excedentes que – para se ter uma ideia – são superiores mais de 10 vezes à famosa “almofada“ portuguesa para este ano, segundo foi noticiado.

Os excedentes – imagine-se – estão a dividir a opinião no país sobre a melhor forma de aplicar o dinheiro, havendo quem preconize que devem ser orientados para o investimento público, a fim de satisfazer legitimas expectativas da população, e quem sustente uma política prudencial de aforro e de reforço do “mealheiro”, na lembrança da austeridade e do resgate financeiro, para evitar amanhã novos sobressaltos.

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A Irlanda tem o conforto da domiciliação de grandes multinacionais, atraídas pela solidez do país e pela sua previsibilidade fiscal. E regista, pelo terceiro ano consecutivo, excedentes orçamentais (acima de 10 mil milhões de euros em 2023…), sem precisar de cativações à sorrelfa, ao estilo do “Ronaldo das Finanças”, a alcunha que o então ministro Mário Centeno não enjeitava.

Este fenómeno de recuperação e de sucesso, que deveria ser uma “bíblia” estudada à lupa, pelos governos socialistas, que detiveram o poder durante quase uma década, foi ignorado, se não mesmo desprezado, e tornou-se um fantasma incómodo.

O exemplo e os ensinamentos irlandeses, que deveriam ter servido de lição, foram apagados do mapa.

Em vez disso, a política do PS e dos seus parceiros de esquerda afundou-se em “guerras de campanário” entre mediocridades e em conspirações variadas, cujos danos começam agora a emergir, à medida que o governo de Luís Montenegro, sacode os “tapetes” da crise herdada, seja na Saúde – onde as realidades superaram as previsões iniciais -, na Educação, com a crónica falta de professores para preencher vagas em aberto; ou na Justiça, com processos acumulados e prescrições em vistoso desfile, sem que ninguém se indigne com isso.

Enquanto a Irlanda prepara tranquilamente o próximo Orçamento, gerindo o excesso de liquidez, através de dois fundos soberanos para garantir a solvência futura do sistema de pensões e prover as necessidades infraestruturais, em Portugal vive-se uma espécie de psicodrama burlesco à volta de um documento, que, antes mesmo de ser conhecido, houve logo quem se colocasse, ”irrevogavelmente”, de fora as negociações. Uma originalidade.

Foi o caso de André Ventura e do Chega, que desde as eleições europeias entraram numa espiral de contradições, ora querendo “trocar” o referendo à imigração pelo voto favorável ao Orçamento, ora nem uma coisa nem outra. Agora estão contra. Ponto.

Esta indisponibilidade negocial deve ser aquilo a que vulgarmente se chama uma “crise de crescimento”, que pode dar mau resultado.

Com medo de perder os actuais 50 deputados, em eventuais eleições antecipadas, Ventura dispara em todas as direcções, procurando manter o “tempo de antena” nos telejornais. E está a “perder o pé”. Alguém que lho diga enquanto for tempo para recuar …

Um outro psicodrama, montado na sequência de um relatório da Inspecção Geral de Finanças (IGF), envolve a TAP, uma das últimas “estrelas” com algum fulgor internacional, que ainda resiste na parca constelação empresarial portuguesa, seriamente depauperada pelos revezes, entretanto, sofridos.

Recordem-se outras “estrelas” que se eclipsaram, quando gozavam de sólida reputação no nosso diminuto firmamento – desde o BES à PT -, e que desapareceram num ápice, abrindo fundas “clareiras” de perplexidades, prejuízos e suspeitas de comportamentos dolosos, que permanecem em aberto, sem julgamento nem punição dos responsáveis.

A órbita da TAP foi diferente. Teve brilho próprio e chegou depois a ser dada como perdida ou em vias de extinção, segurada in extremis, através de soluções até hoje controversas e que não deixam ninguém incólume, tanto do lado daqueles que a defendem pública, como do lado daqueles que a querem privada.

Fundada em 1945, ainda como Secção de Transportes Aéreos no Secretariado da Aeronáutica Civil, tendo como inspirador Humberto Delgado — que hoje dá o nome ao Aeroporto da Portela —, a TAP tem um histórico atribulado.

Já foi pública e maioritariamente de capitais públicos; já foi privatizada e, de seguida, renacionalizada; e os mesmos que a trouxeram novamente ao regaço do Estado anunciaram, em alegre coerência, que tencionavam entregá-la, tão cedo quanto possível, a mãos privadas.

Nesta dança de destinos, a TAP tem servido de consolo e alimentado generosamente os bolsos e os egos de muita gente, enquanto sucessivas equipas de gestores, regiamente pagos, conseguiram acumular défices de exploração, que se fossem analisados em perspectiva, arrasariam o mais “irritante” optimista e resultariam certamente num grande susto com muitos zeros.

O episódio mais recente dessa novela, repartida por vários “argumentistas”, baseia-se na dita auditoria da IGF, pedida ainda pelo anterior governo, agora revelada, com contornos que lançam dúvidas sobre a forma como foi feita a privatização da TAP em 2015, nas despedidas do governo da AD.

Sejamos claros: a TAP reapareceu contra Maria Luís Albuquerque e, acessoriamente, contra Miguel Pinto Luz, titular do ministério das Infraestruturas, que conserva ainda os vestígios da pegada, nada abonatória, de Pedro Nuno Santos e João Galamba.

A TAP, que esteve tecnicamente falida, foi injectada pelo anterior governo socialista com milhares de milhões de dinheiro público, a pretexto da pandemia, até agora a fundo perdido, quando outras companhias aéreas europeias, também apoiadas nessa crise global, já começaram a ressarcir os respectivos estados dos empréstimos recebidos.

A TAP serve mais uma vez de “peão de prega“, numa ofensiva política das esquerdas, com a cumplicidade habitual da maioria dos media, para por em causa a candidatura de Maria Luís a comissária europeia, quando deveria merecer o apoio, na generalidade, como representante do País, tal como aconteceu, recentemente, com António Costa para presidir ao Conselho Europeu.

A campanha em curso é mais uma vez rasteira, com insanáveis ressentimentos ideológicos (basta ver os títulos de alguma imprensa e ouvir alguns “comentadores” avençados nas televisões …).

É perante este filme de ”suspense”, em “reprise”, que faz sentido lembrar que há pouco mais de um ano, funcionou uma comissão parlamentar de inquérito à TAP, cujos trabalhos se prolongaram por cinco meses intensos. Com a publicação das conclusões, aprovadas unicamente pelo PS, confortado na sua maioria absoluta, percebeu-se logo que a história estaria incompleta.

Para a oposição, o desfecho da CPI fora um acto de “branqueamento” e de “ingerência“ dos socialistas , enquanto estes advogavam, bem pelo contrário, que a comissão contribuíra para “recuperar a confiança na gestão da TAP “ e silenciar quem a queria transformar num “instrumento de luta político-partidária”.

Por aqui se vê o tom de “concórdia” que germinou na CPI. A TAP respirava, nessa fase, as primícias de ser novamente uma empresa do sector público, graças à reversão empreendida pelo governo de António Costa, que entre outras “bagatelas”, ofereceu 55 milhões de euros a David Neeleman, o “mau da fita”, para resgatar a sua posição accionista na companhia.

Escrevia o Expresso, a propósito, em maio de 2023, que “permanece um mistério a fórmula definida para chegar aos 55 milhões de euros que David Neeleman levou para sair da TAP, e Miguel Cruz, o ex-secretário de Estado do Tesouro, que foi antes disso presidente da Parpública, também não foi capaz de esclarecer”. Mais de um ano decorrido persiste o mistério.

Foi a época das trapalhadas com a gestão da TAP, protagonizadas pela então CEO, Christine Ourmière-Widener, e pela gestora, Alexandra Reis, esta objecto de uma indemnização choruda, seguida de “transferência” para a NAV, outra empresa pública, que acabou por não se efectivar devido ao escândalo.

Vivia-se, então, a era atrabiliária de Pedro Nuno Santos, ministro das Infraestruturas, que se demitiria mais tarde – na ressaca do episódio do novo aeroporto de Lisboa, anunciado à revelia do então primeiro ministro e da indemnização a Alexandra Reis. Seguiu-se na pasta o não menos controverso João Galamba – uma escolha de recurso de António Costa -, o tal da rocambolesca história do computador saído do ministério na mochila do assessor, com alegada informação confidencial, que até meteu o SIS, sem nunca ter sido esclarecido o motivo.

Os sarilhos e as confusões indisfarçáveis à volta da TAP e do novo aeroporto, ditariam, afinal, o declínio acelerado do governo socialista, que se afundaria no meio da maior barafunda, à mistura com algumas situações no mínimo caricatas, entre o dinheiro escondido em notas nas estantes do chefe de gabinete em S. Bento, até ao “parágrafo fatal“ do comunicado da PGR, que alegadamente “demitiu” António Costa.

Pedro Nuno ascendeu a líder do PS e da oposição, já esquecido das fanfarronices e da triste figura feita, enquanto governante em relação à TAP e ao projecto do novo aeroporto, sobretudo depois do “perdoa-me” público, ao retratar-se, humilhado pelo ralhete do ex-primeiro ministro.

Entretanto, Alexandra Leitão, seu braço direito e líder parlamentar, critica o governo já longínquo de Pedro Passos Coelho — e por arrasto, Maria Luís Albuquerque e Pinto Luz —, por causa da privatização da TAP, o eixo da auditoria da IGF, divulgada quase em sobreposição com a designação da ex-ministra para comissária europeia. Um fortuito acaso…

Esgotados os ecos de uma CPI, que procurou desvalorizar as atribulações governativas do PS no dossiê TAP, assiste-se agora, com Pinto Luz ministro e Maria Luís Albuquerque, indigitada para Bruxelas, à especulação à volta das conclusões da auditoria da IGF, que repete suspeitas em investigação na PGR desde fevereiro de 2023, quando foi instaurado um inquérito na sequência da participação assinada por Pedro Nuno e Fernando Medina.

Por questionável que possa ter sido o “timing” da privatização da TAP, em 2015, conviria apurar qual foi o custo global para o contribuinte da renacionalização da companhia pelo governo socialista, quando se procura deslocar o foco para a “operação complexa” do financiamento da encomenda de aviões Airbus por David Neeleman, ao cuidado de articulistas que já roçam o insulto.

De facto, é obrigatório reflectir sobre o que significa hoje a TAP, e sobre se existe ou não interesse estratégico em mantê-la como está.

Uma empresa cronicamente deficitária, que custou “rios de dinheiro” ao erário público, que já se distinguiu pela qualidade de serviço e de conforto a bordo, enquanto hoje é uma sombra desses tempos áureos e se limita a ser mais uma companhia “low cost”, disfarçada de bandeira… à guarda do PS, que tanto a quer pública como privada, com a coerência ao “pé coxinho”. É outra fábula de encantar…

Nota em rodapé: Vai por aí uma certa excitação com uma entrevista do almirante Gouveia e Melo por este ter alimentado, nem sequer com muita subtileza, a hipótese de candidatar-se a Presidente da República depois de passar à reserva.

Com tocante candura, o almirante pediu mesmo aos jornalistas para não insistirem, porquanto, alegou, “não considero justo que me tentem condicionar com perguntas antes de ter a liberdade de responder”.

Gouveia e Melo, cuja especialidade na Marinha eram os submarinos, caiu nas graças de muita gente por ter revelado, durante a pandemia, um apurado sentido de organização e logística no programa de vacinação. Marcou pontos.

Ao suceder a Mendes Calado, em 2021, cuja exoneração nunca foi bem explicada — a dois anos de distância de terminar o mandato, coisa rara na Marinha —, Gouveia e Melo “ficou mal” na fotografia e perdeu pontos.

Claro que nada impede que o almirante, no pleno uso dos seus direitos cívicos e políticos, queira candidatar-se a Belém. O que se estranha é que se sinta “condicionado” e não tenha ficado “vacinado” para a política por tudo aquilo que decerto observou e experimentou na sua carreira militar.

A começar pela exoneração política do seu antecessor, por acaso no mesmo dia em que Gouveia e Melo cessou as funções de coordenador da task-force da vacinação. Coincidências…