1. Ainda a questão antropológica
Continuemos no domínio antropológico. Afinal, como diz Carl Schmitt em O conceito do político, “Poder-se-ia pôr à prova todas as teorias do Estado e todas as ideias políticas com base na sua antropologia, repartindo-as, de acordo com isso, segundo elas pressuporem, consciente ou inconscientemente, um homem ‘mau por natureza’ ou ‘bom por natureza’.”
A questão convoca, na verdade, dois níveis de reflexão. O primeiro é o de saber se existe algo como uma natureza humana a partir da qual podemos pensar politicamente; o segundo é o de saber se essa natureza é boa ou má. Na segunda metade do século XX, o pensamento pós-moderno pôs em causa a primeira daquelas perguntas, considerando que a ideia de natureza humana era meramente resultado de uma construção filosófica e política. O ser humano seria eminentemente cultural pelo que poderia ser moldado e reformulado socialmente sem limites (é por essa razão que muitos, sobretudo na sociologia, optam pelo uso da expressão “condição humana”). Na semana passada, argumentei que os conhecimentos científicos mais recentes afastam esta posição pós-moderna e demonstram como as tradições antigas foram capazes de compreender a nossa natureza (a sua sabedoria é-nos, assim, ainda necessária).
Mas, havendo uma natureza humana, ela será “boa” ou “má”? Em termos de teoria política, este antagonismo pode ser pensado a partir de dois autores modernos: por um lado, Thomas Hobbes, que, no seu Leviatã, defende que o homem é o lobo do homem (em bom rigor, a afirmação de que o homem é mau implica uma valoração moral que Hobbes não faz); por outro, Jean-Jacques Rousseau, que, nos seus Discursos e em Emílio, defende uma bondade natural do ser humano, que seria corrompida pela vivência em sociedade. A ciência recusa esta divisão: o homem não é naturalmente bom, nem naturalmente mau – somos, antes, condicionados por diferentes estímulos que nos levam a comportarmo-nos de uma ou de outra maneira. Basta ver, aliás, como o nosso cérebro responde a neurotransmissores químicos mais altruístas e mais egoístas, como explica, de modo divertido, Simon Sinek. E, mais uma vez, dá-se respaldo às velhas tradições.
Ainda assim, a observação de Schmitt faz sentido: é que aquele critério é muitas vezes útil para apreciar propostas e posicionamentos políticos. Consideremos, a esse propósito, um livro publicado muito recentemente pela ex-jornalista do The New York Times, Nellie Bowles: Morning After the Revolution: Dispatches from the Wrong Side of History (será que já está prevista tradução entre nós?). Não se trata de um trabalho teórico: Bowles é jornalista e o livro consiste num conjunto de relatos sobre o que aconteceu nos Estados Unidos naquilo a que podemos chamar os anos woke: as suas notícias são sobre essa “revolução” e, em especial, sobre como essa revolução falhou. (Este período é também aquele em que Bowles percebe que já não faz sentido continuar no NYT, mas regressarei ao livro dela mais vezes.)
2. To kill cops
Os relatos de Nellie Bowles começam com a ocupação do bairro Capitol Hill, em Seattle, naquilo que ficou conhecido como CHAZ (Capitol Hill Autonomous Zone) e, posteriormente, CHOP (Capitol Hill Organized Protest). Na sequência dos protestos motivados pela morte de George Floyd, em junho de 2020, e depois de vários momentos de conflito entre manifestantes e polícia, movimentos com ligação ao Black Lives Matter (BLM) e aos Antifa (movimento anárquico e descentralizado, antifascista e antirracista) ocuparam uma parte da cidade de Seattle, onde a polícia não podia entrar.
No pensamento do BLM, a ideia de “defund the police” (retirar financiamento à polícia para usar esse dinheiro em políticas de promoção de equidade racial) era já um princípio basilar – mas as circunstâncias daqueles protestos, enquadrados no confinamento Covid-19, uniram Antifa e BLM numa reivindicação mais radical: era preciso abolir a polícia.
Como grupo anárquico radical, os Antifas sempre consideraram o desaparecimento da polícia como necessário para se erguer um novo mundo sem autoridades, e aquele contexto específico permitiu avançar a sua agenda a partir dos protestos BLM. Por seu turno, o BLM aproveitou-se das táticas de violência com que aqueles estavam familiarizados para ampliar a sua mensagem. De facto, Bowles é categórica na afirmação de que foram os Antifas a dinamizar a dimensão mais violenta daqueles protestos, algo que nem sequer é recusado pelos seus membros: “Encantados com a receção calorosa da imprensa, membros casuais Antifas começaram a divulgar as suas próprias declarações e a aparecer em programas noticiosos, com os rostos escondidos para manter o anonimato: ‘O uso da violência é uma tática para mantermos as nossas comunidades seguras’.”
Entre a bibliografia mais popular deste movimento, e muito divulgado nas ocupações desse período, encontra-se o texto “I want to kill cops until I’m dead”, que recusa a dimensão meramente metafórica: “Os agentes da polícia têm de ser mortos, as famílias dos agentes da polícia têm de ser mortas, os amigos e apoiantes dos agentes da polícia têm de ser mortos. E queremos dizer isto em sentido tão material como imaterial.”
Se temos dificuldade em imaginar um mundo sem polícia e consideramos aquele apelo violento inaceitável, o problema é nosso: “não queremos saber disso, queremo-los mortos e queremo-lo já.” Mais do que isso: temos de considerar que essa limitação imaginativa é resultado de supremacia branca. Na verdade, a polícia é uma instituição inerentemente racista, criada para manter uma estrutura de opressão e exploração. Uma sociedade racialmente justa implica uma sociedade sem polícia, sem pobreza, sem desigualdades e onde os membros da comunidade cuidam uns dos outros. O crime só existe porque há pobreza, porque há desigualdade, porque há capitalismo. Eis a visão rousseauniana do homem bom, como nota Bowles: “Chegaram com uma política baseada na ideia de que as pessoas são profundamente boas, adulteradas apenas pelo capitalismo, pelo colonialismo, pela branquitude e pela heteronormatividade. Era uma filosofia inebriante e bela.”
Bela, mas sem correspondência com a realidade. Algumas cidades, como Minneapolis, decidiram investir milhões de dólares em programas de “violence interrupter” (interruptores de violência?): homens que andariam pelas ruas, sem estarem armados nem protegidos, com a missão de intervir em situações de violência e, através de meios não-violentos como palavras e café, terminar com a disrupção. As consequências têm sido catastróficas: como Bowles chama a atenção, estes interruptores de violência não têm sindicatos, não têm pensões, não têm proteção, não têm armas. E o registo de violência e morte afeta-os muito mais do que acontece com as forças policiais. Por outro lado, nas cidades que avançaram programas de defunding, o crime violento aumentou para níveis que não se registavam há décadas, ao mesmo tempo que o Pew Research revelava que, em outubro de 2021, apenas 23% dos afroamericanos apoiavam cortes no financiamento da polícia.
Como sempre acontece, estas agendas progressistas, defendidas por ativistas maioritariamente brancos e de classe média e alta, acabaram por ser desastrosas para as classes mais pobres, que são mais suscetíveis ao crime e à violência e são incapazes de contratar segurança privada (o caso de Cori Bush é sintomático desta hipocrisia). A maioria acabou por ficar cansada de cidades destruídas em nome de uma ideologia, que “fazia sentido em todo o lado, menos na realidade”.
Aprendeu-se alguma coisa com tudo isto? Em julho do ano passado e em celebração do seu décimo aniversário, o BLM lançou uma campanha para que a mensagem não seja esquecida: It’s still defund the police. Afinal, “Abolition is liberation”, “Abolition is safety”, “Abolition is joy”.
3. Abolition is hot
No maravilhoso livro A realidade é real?, Paul Watzlawick diz-nos: “quando encontramos uma solução – e quando, enquanto a tentamos encontrar, pagamos um preço relativamente alto em ansiedade e expectativa – o nosso investimento nessa solução torna-se tão grande que podemos preferir distorcer a realidade de forma a acomodarmos a realidade à nossa solução do que sacrificar esta última.”
É um traço da nossa natureza, do modo como o nosso cérebro funciona e permite-nos compreender porque tantas pessoas insistem em agendas insensatas e incompreensíveis: investiram tanto da sua energia na formulação de uma proposta, que é extremamente difícil abdicar dela mesmo quando a realidade lhes diz que a sua solução não funciona – ou, o que é talvez pior, mesmo quando a maioria das pessoas discorda dela. E, muitas vezes, isto acontece por se partir de certos pressupostos teóricos: como achamos que aqueles princípios são toda a verdade, estamos dispostos a arriscar tudo para mostrar aos outros que temos razão. Ora, este aspeto é particularmente visível quando o mundo académico se mistura com o impulso ativista – como Bowles capta ao citar um académico-ativista que defende a abolição da polícia: “Acreditar na polícia significa acreditar que as pessoas vão sempre magoar-se umas às outras, que as pessoas vão sempre roubar. O abolicionista pergunta: E se isso não for verdade? E se a natureza humana for boa? E se os crimes acontecerem porque acreditamos que os crimes vão acontecer?”
Se esta perspetiva explica porque alguns se mantêm agarrados a teorias desgarradas da realidade, não explica, contudo, a adesão mediática que o movimento contra a polícia obteve na altura. No seu caminho tentado de compreensão, Bowles deixa-nos duas pistas relevantes: por um lado, os ativistas obtêm prestígio e … dinheiro, muito dinheiro naquela altura; por outro, afirmou-se entre os “New Progressives” uma lógica tribal: ou estás connosco ou estás contra nós; ou colocas a tua voz nos nossos protestos ou és um inimigo a abater.
Mas há uma outra justificação, mais real nos nossos dias e provavelmente mais desconcertante. Num mundo de redes sociais e sinalização de virtude, “Abolition was hot”: era muito mais excitante do que falar em reformas aborrecidas; era muito mais atraente parecer revolucionário; parecia muito mais virtuoso estar ao lado dos justos.
E, por essa razão, muitas figuras com cargos políticos relevantes apoiaram os protestos e a ocupação de bairros, promoveram ações de defunding e expressaram o seu apoio a movimentos como o Minnesota Freedom Fund, para pagar as cauções dos manifestantes detidos durante os protestos de 2020. Foram simplesmente na onda e, quando deixou de ser hot, esqueceram-se rapidamente do que tinham dito e feito. Este tipo de atitude diz muito sobre a fraqueza dessas figuras, mas também é revelador da natureza humana.