O pálido ponto azul1 é o título de uma fotografia do planeta terra captada no dia 14 de fevereiro de 1990 pela sonda Voyager 1, que anos mais tarde dará nome a um livro de Carl Sagan2. A distância a que a foto foi captada, era de seis bilhões de quilómetros (40,5 AU, unidade astronómica 150 mi de km).

A Voyager 1 foi lançada em setembro de 1977 e ao deixar o Sistema Solar recebeu ordens para virar a sua câmara e tirar uma última foto da Terra no meio da vastidão espacial, a pedido do astrónomo e escritor Carl Sagan. Cerca de 34 minutos depois de captar a imagem, as câmaras da Voyager 1 desligaram-se para sempre. Foi a fotografia mais distante da Terra que se conseguiu tirar.

O principal objetivo da sonda Voyager 1 era explorar Júpiter e Saturno. Inicialmente esperava-se que a sonda funcionasse somente até encontrar Saturno em 1980.

A foto captada tinha pouco valor científico devido à baixa resolução da foto, contudo o legado da fotografia contribuiu para um reconhecimento profundo da importância da Terra, da sua fragilidade e singularidade.

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A meio da noite e ao procurar driblar uma insónia, olhei as estrelas, e lá no meio alguns astros, e senti-me invadida por um misto de maravilha e gratidão pela imensidão do universo por aqueles pontos pequenos de luz. Soube que Sagan ao olhar para essa mesma imensidão, perguntava-se como seria ver o nosso planeta terra a partir desses pontos de luz.

Só para termos uma pequena ideia, a dimensão da Via Láctea, é de cerca de cem mil anos-luz de diâmetro, com cerca de 100 bilhões a 400 bilhões de estrelas, contudo, diante da imensidão de todo o universo, entendemos que isso não é nada, já para não falar do nosso planeta ou de nós mesmos! Ainda assim, somos capazes de enviar uma sonda que atravessa todo o nossos sistema solar e capta uma foto do nosso planeta.

Neste momento, a Terra gira ao redor do seu próprio eixo a 1656 km/h e orbita ao redor do Sol a 108 mil km/h.

Já o Sistema Solar orbita ao redor do centro da Via Láctea, a 220 quilómetros por segundo (792 mil km/h) e a Terra só completa essa distância ao redor do centro da Via Láctea a cada 225 milhões de anos.

No seu livro Pálido ponto azul, Sagan escreve: «É ali, aquela é a nossa casa. Somos nós e todas as pessoas que amamos, todas as pessoas que conhecemos ou de quem já ouvimos falar. A totalidade das nossas alegrias e sofrimentos, milhares de religiões, ideologias e doutrinas económicas, cada caçador e saqueador, cada herói e covarde, cada criador e destruidor da civilização, cada rei e plebeu, cada casal apaixonado, cada mãe e pai, cada criança esperançosa, inventores e exploradores, cada educador, cada político corrupto, cada superstar, cada líder supremo”, cada santo e pecador na história da nossa espécie viveu ali, naquele monte de poeira suspenso num raio de sol […] Pense nas infindáveis crueldades infringidas pelos habitantes de um canto desse pixel, quase imperceptíveis aos habitantes de um outro canto, o quão frequentemente são os seus desentendimentos, a sua ânsia por se matarem, e o quão fervorosamente se odeiam. […] Na nossa obscuridade, em toda esta vastidão, não existem indícios de que vamos receber ajuda para nos salvarmos de nós próprios.»

Mas porque é que nos teremos que nos salvar de nós mesmos? Estaremos por ventura em risco de desaparecermos enquanto espécie humana?

E referindo-se à fotografia captada, Sagan continua: «Talvez, não exista melhor demonstração das nossas tolices e vaidades humanas que essa imagem distante do nosso pequeno mundo. Ela realça a nossa responsabilidade para nos tratarmos melhor uns aos outros, e de preservarmos e estimarmos o único lar que nós conhecemos até hoje… o pálido ponto azul.»

Será que esta pandemia, veio abalar a nossa ilusão de omnipotência? Qual é o nosso papel e contribuição para as mudança que queremos ver no mundo? Em que medida nos sentimos desafiados a percorrer caminhos que vão muito além de nós mesmos, como foi capaz de o fazer toda a equipa humana de comando da sonda Voyager 1?

Às vezes sinto que andamos demasiado distraídos e focados nas nossas pequenas coisas que compõem a nossa vidinha, esquecendo-nos que somos parte constitutiva daquele monte de poeira suspenso num raio de sol, desvalorizando as oportunidades que nos são dadas a cada momento para contribuirmos para o mundo que idealizamos onde, no meu caso, e além de muitos outros, destaco três valores: liberdade, responsabilidade e unidade.

Creio que um dos riscos a que Sagan se refere no seu livro esteja relacionado com o facto de andarmos muito distraídos com o que se passa no nosso planeta, desvalorizando a relação entre os povos que o habitam, ou no modo como nos tratamos uns aos outros. É que «Para que o mal triunfe basta que os bons fiquem de braços cruzados», já afirmava Edmund Burke e a meu ver, não podia estar mais certo.

De um lado, os bons e distraídos e do outro alguém que está sempre à espreita da mais pequena brecha de oportunidade para usar princípios e valores civilizacionais basilares na nossa sociedade ocidental (para proveito próprio e dos seus) e devolvê-los como adornos reconfigurados e auto-referenciais, nos seus belos discursos políticos.

Enquanto cidadãos, perante a imensidão do universo e perante a demagogia fast-food servida pelos governantes deste lido ponto azul, replicado neste pixel à beira mar plantado e se não bastasse, assolados por uma pandemia que teima em fixar residência, podemo-nos questionar que sentido tem tudo isto!

A vontade de mandar tudo para as ortigas leva-nos a adotar uma atitude desesperante e niilista perante a moldura social que nos envolve, tornando-nos presas fáceis a propostas políticas que, ou nos aprisionam a ideais antigos e ultrapassados (para não dizer radicais) que prometem mundos e fundos, (mas que chegando ao poder se esvaziam das suas verdades) ou então propostas vazias e viciadas que nos levam a achar que o nosso voto não irá fazer grande diferença3.

Viktor Emil Frankl (19051997)4, renomeado médico psiquiatra Austríaco, sobrevivente do Holocausto, escritor do livro Man’s Search for Meaning5, Pai da Logoterapia e Análise Existencial e nomeado em 1979 para o Prémio Nobel da Paz6, chama-nos a atenção para a realidade do vazio existencial – enquanto forma privada e pessoal de niilismo como o grande desafio contemporâneo à psicologia, à psiquiatria e à educação7.

A sua luta intransigente na proteção do valor do indivíduo frente à força do Estado massificador, bem como a sua oposição incansável à tríade reducionista (isto é, o biologismo, o psicologismo e o sociologismo) e a denúncia do niilismo ideológico neles arraigado, levou Frankl – apesar de não ser partidário de uma posição política, mas sim de um compromisso político – a pronunciar-se sobejamente para o risco social do totalitarismo e do conformismo.

Segundo Frankl, o Homem de hoje parece, muitas vezes, já nem saber o que quer. Logo, a consequência desse fenómeno parece dividir-se, por um lado, num processo de massificação da sociedade, cuja regra reside no mimetismo, na imitação social e conformista de contentar-se em «fazer o que os outros fazem»e, por outro, na abertura, numa vulnerabilidade a um poder totalitário: o «fazer o que os outros querem que eu faça». Em suma: temos aí a adoção do conformismo como estilo de vida e a abertura ao totalitarismo como regime político possível 8.

Para Frankl, é impossível compreender os fenómenos totalitários do século XX sem recorrer ao fenómeno do fanatismo:

O totalitarismo converteu o homem em fanático. Para entendermos o que é o totalitarismo, há que recordar a frase de Hitler: «A política é um jogo onde são permitidos todos os truques». Bem, desde o tempo em que Hitler pronunciou estas palavras até aos dias de hoje, pouco importa saber quais os objetivos inerentes a uma política, pois aquilo que parecer ser o mais importante é dominar os meios que ela usa para alcançar tais objetivos. Por outras palavras: o que importa não é a finalidade, é o estilo da política 9.

Para Frankl, existem dois estilos em política e dois tipos de políticos. Para uns, o fim santifica os meios, enquanto outros têm plena consciência de que certos meios são capazes de profanar os fins mais puros. De qualquer maneira, não é verdade que o fim justifique o meio; não pode ser verdade, nem que seja pelo facto de que para o homem ao qual todos os meios pareçam bons, tampouco o fim será sagrado 10.

Deste modo, fenómenos como a existência provisória, o fatalismo, o coletivismo e o fanatismo seriam aquilo que Frankl já denunciara em 195011 de «patologia de nosso tempo», ou seja, os quatro traços psíquicos disfuncionais que iriam tipificar a nossa era. Em todos eles, vemos uma raiz comum: o medo da liberdade e a fuga à responsabilidade. E creio que esta pandemia veio evidenciar isso mesmo.

O psiquiatra vienense defendeu sempre que o Homem tem que deixar de ser considerado um autómato, um instrumento de manipulação política, vítima de uma cultura de despersonalização e por conseguinte de massificação, um número ou objeto no meio de tantos.

O ser humano no âmbito político – continua Frankl – jamais pode ser rebaixado ideologicamente a um mero meio ou instrumentalizado para a consecução de um fim. É típico do fanatismo político, com o pretexto de politizar o homem, atrelar o indivíduo a metas políticas, que não recuam diante da dignidade humana, atacando-a. Ora para Frankl, mais importante do que politizar o homem é humanizar a política 12.

Há que salientar que a existência humana de Frankl, ocorre em todo o século XX, permitindo-lhe presenciar o desenvolvimento tecnológico que o define mas também o retrocesso civilizacional das duas grandes guerras, resultantes da ascensão dos mais diversos tipos de mecanismos institucionais, políticos, sociais e culturais para desonerar a ação humana do seu caráter de liberdade e de responsabilidade, que procurou transformar o homem numa caricatura manipulável, dócil e apática.

Frankl chegou a afirmar que preferia viver num mundo em que o Homem tenha o direito de fazer escolhas, mesmo que sejam erradas, a ter que viver num espaço político que negue e regule qualquer escolha:

«Prefiro um mundo em que, por um lado, um fenómeno tal como um Adolf Hitler possa vir a ocorrer e que, por outro, fenómenos tais como os muitos santos que já viveram, possam também acontecer. Eu prefiro um mundo assim, a um mundo de conformismo e coletivismo totais, ou totalitários, onde o homem seja rebaixado e degradado a um mero funcionário de um partido ou do Estado13

Para Frankl, a promoção da liberdade de escolha pessoal – no mundo líquido de Bauman14 – passaria pela promoção de um direito universal: o da educação.

Mas para o médico psiquiatra austríaco não se tratava de uma educação assente somente na aquisição de informação ou conhecimento, que mais não é do que educação para a obediência, mas sim de uma educação para a consciência15. Aliás, já nos anos 70, em plena Guerra Fria, Frankl incentivava mesmo à necessidade de eliminação total do educação para a obediência e a implementação da educação da consciência.

Uma educação que deve ir muito além da instrução formal, no sentido da preparação do Homem para a sua responsabilidade individual, de modo a aguçar o apelo da consciência no sentido de ouvir os «dez mil mandamentos relacionados às dez mil situações singulares de que constituem a vida»16. Uma consciência vivaz que contribui para que o ser humano tenha a capacidade de resistir tanto ao totalitarismo quanto ao conformismo, pois para Frankl, a nossa consciência é a única que que nos permite dizer não”. E isso encaixa-se bem no papel de uma psico-higiene coletiva que o pai da Logoterapia tanto julgou pertinente, enquanto objeto de uma psicoterapia social17.

Não foi por acaso que Viktor Emil Frankl durante toda a sua existência, repetia incansavelmente, que, em princípio, qualquer nação poderia ainda ser capaz de contribuir para um novo holocausto 18.

Olhando para aquele pálido ponto azul tão pequeno e frágil, estamos a olhar para nós mesmos, contudo não podemos esquecer que apesar da nossa pequenez e fragilidade, temos a capacidade de fazer a diferença, indo mais além e arriscando. Até agora o Homem foi desafiado a usar a sua inteligência ao serviço do bem comum. Cabe agora cada um de nós, na sua individualidade e unicidade, usar a consciência, para sermos capazes de pensar por nós mesmos em vista desse bem comum!

1 https://www.planetary.org/worlds/pale-blue-dot
2 https://www.newworldencyclopedia.org/entry/Carl_Sagan
3 https://www.publico.pt/2022/01/13/politica/noticia/ps-forte-maiores-65-anos-menos-escolaridade-1991747 ou https://www.jn.pt/nacional/infografias/a-intencao-de-voto-e-avaliacao-dos-portugueses-aos-lideres-politicos-14290032.html

4 https://www.newworldencyclopedia.org/entry/Viktor_Frankl
5 [Em Busca de Sentido: Um Psicólogo no Campo de Concentração”] num best-seller de alta influência no mundo todo, com quase doze milhões de cópias vendidas, nove milhões das quais, apenas nos Estados Unidos cf. http://www.beacon.org/Mans-Search-for-Meaning-Large-Print-Edition-P1038.aspx e um dos livros mais lidos durante a pandemia cf. https://www.beaconbroadside.com/broadside/2020/05/beacon-books-to-turn-to-during-the-coronavirus-quarantine.html
6 https://www.univie.ac.at/logotherapy/lifeandwork.html
7 Pereira, Ivo (2019). O pensamento político de Viktor E. Frankl. Revista Logos e Existência, 6 (2), 125-136 .Revista da Associação Brasileira de Logoterapia e Análise Existencial. [https://periodicos.ufpb.br/index.php/le/article/view/32363]
8 Frankl, V. E (2014). Logoterapia e análise existencial: textos de seis décadas. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
9 Frankl, V. E. (1978). Fundamentos antropológicos da psicoterapia. Rio de Janeiro: Zahar.
10 idem
11 Frankl, V. E (2016). Teoria e Terapia das Neuroses.São Paulo. É Realizações [ A primeira edição de Theorie und Therapie der Neurosenem alemão, data de 1956 ]
12 Frankl, V. E. (1978). Fundamentos antropológicos da psicoterapia. Rio de Janeiro: Zahar.
13 Frankl, V. E. (2000). Psicoterapia e Existencialismo – Textos Selecionados em Logoterapia. São Paulo. É Realizações.
14 Nota da autora – https://www.britannica.com/biography/Zygmunt-Bauman

15 Frankl, V. E (2014). Logoterapia e análise existencial: textos de seis décadas. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
16 Frankl, V. E (2011). A Vontade de Sentido: fundamentos e aplicações da logoterapia. São Paulo: Paulus.
17 Pereira, Ivo (2019). O pensamento político de Viktor E. Frankl. Revista Logos e Existência, 6 (2), 125-136 .Revista da Associação Brasileira de Logoterapia e Análise Existencial. [https://periodicos.ufpb.br/index.php/le/article/view/32363]
18 Frankl, V. E. (1978). Fundamentos antropológicos da psicoterapia. Rio de Janeiro: Zahar.