Foi tudo muito rápido, como costuma acontecer nestas situações. Bastaram algumas notícias soltas sobre a vaga intenção da ministra da Justiça de dar mais poderes ao Ministério Público em casos de corrupção para o PS profundo vir mais uma vez mostrar, com a costumeira clareza, que não aprendeu nada.

O principal alvo da ira socialista é a delação premiada, que, nas sempre delicadas palavras do saudoso António Campos, é a versão moderna do “método fascista do bufo”. Não vale muito a pena perder tempo a explicar a António Campos a diferença entre colaborar com a polícia de uma ditadura ou com a polícia de uma democracia — mas sempre seria interessante ver como este insigne socialista aplicaria a sua visão do denunciante como bufo não apenas à corrupção mas também, por exemplo, à violência doméstica.

No seu combate feroz à delação premiada, o PS profundo não recorre apenas à História, invocando a ditadura — invoca também o Direito comparado. Com ar conhecedor, António Campos sussurrou há dias ao Público: “Aprendam com o que se passa no Brasil”.

É um conselho interessante. Pelo que se percebe, na cabeça de António Campos — que em tempos disse que a investigação a Sócrates existia “só para prejudicar o PS” — “o que se passa no Brasil” é um misto de irresponsabilidade e coação e um qualquer criminoso só precisa de bater à porta dos procuradores da Operação Lava Jato para, com um simples depoimento, enviar para a cadeia os admiradores de Lula da Silva.

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É um duplo engano. Em primeiro lugar, pela insinuação de perseguição política: a delação premiada foi usada por vários fiéis do Partido dos Trabalhadores, como por exemplo António Pallocci, que foi cofundador do PT, ministro das Finanças de Lula e número 2 no governo de Dilma Rousseff. Em segundo lugar, pela insinuação de leviandade judicial. Como se perceberá pelo longuíssimo parágrafo seguinte, um mero depoimento, a disparar acusações, suspeitas e nomes não é suficiente para alguém conseguir um acordo com a justiça.

O caso de António Palocci é especialmente esclarecedor. Da primeira vez que tentou chegar a acordo para fazer uma delação premiada, o homem que pertenceu ao núcleo duro dos Presidentes Lula e Dilma Rousseff não conseguiu convencer o Ministério Público a aceitar a sua colaboração — precisamente porque falou muito mas não apresentou “provas mais robustas”. À segunda tentativa, conseguiu. Mas para isso, como explicou o seu advogado, citado pelo Estado de S. Paulo, teve que entregar 18 tipos diferentes de documentos para corroborar um depoimento que se prolongou por 141 horas: apresentou dois contratos fictícios que foram usados para pagamentos ilícitos; apresentou “as notas fiscais inerentes a cada um dos contratos mencionados, as quais demonstram a entrada dos valores ilícitos na esfera patrimonial do colaborador”; apresentou trocas de emails; apresentou notas manuscritas da sua agenda; apresentou uma “tabela impressa, com anotações manuais ao longo da folha, a qual confirma como era realizada a arrecadação de vantagens indevidas”; apresentou o “extrato bancário no qual é apontada a entrada de algumas das vantagens ilícitas”; apresentou comprovativos de doações eleitorais; apresentou “dados de rastreadores veiculares” para provar a existência de “reuniões e encontros com diversas pessoas referidas na sua colaboração”; apresentou os nomes de três testemunhas que confirmaram essas reuniões; apresentou um “documento manuscrito, escrito em momento contemporâneo aos factos delatados, no qual há a indicação de transações ilícitas envolvendo Antonio Palocci e terceiras pessoas”; apresentou “dados integrais de um computador que era utilizado” em atividades ilícitas e que não tinha sido apreendido pelas autoridades; apresentou “diversas anotações do seu próprio punho, as quais comprovam a maneira cifrada como ele se referia a algumas pessoas que foram objeto da sua colaboração premiada, além de corroborar alguns dos factos ilícitos que foram por ele mencionados à autoridade policial”; apresentou uma lista com vários números de telefone que eram usados para atividades ilícitas; apresentou três telemóveis “utilizados por funcionários, com diversos dados que confirmam os factos narrados à autoridade policial”; apresentou uma “pen drive com cópias de diversos arquivos”; apresentou uma “fotocópia de parte da sua agenda pessoal, na qual constam alguns dos encontros ilícitos narrados pelo colaborador à Polícia Federal”; entregou a sua “agenda virtual” dos anos 2006, 2007, 2008, 2009, 2010, 2015 e 2016, onde, ao longo de mais de sete mil páginas, estão registadas as reuniões contadas à polícia; e entregou “extratos telefónicos do seu telemóvel”. Depois disto — e só depois disto — a justiça aceitou a colaboração daquele que foi em tempos um dos dirigentes mais poderosos do Partido dos Trabalhadores.

Há mais coisas a “aprender com o que se passa no Brasil”, como recomenda António Campos. Por exemplo, isto: nem todas as denúncias feitas em delações premiadas chegam a julgamento. Como escreveram os jornais brasileiros, das várias investigações iniciadas a partir da colaboração de executivos da empresa de construção civil Odebrecht, 22 foram simplesmente arquivadas.

Com o Brasil da Lava Jato, também podemos todos, nós e António Campos, aprender isto: os denunciados em delações premiadas não são enviados de forma sumária para um calabouço frio — têm direito a um julgamento justo. Gleisi Hoffman, atual presidente do PT, e que tem aparecido publicamente ao lado de Lula, foi acusada de corrupção e lavagem de dinheiro. Mas, segundo a sua advogada, um dos homens que apontou o seu nome numa delação premiada, Antônio Pieruccini “inventou” uma versão para ser encaixada na tese do Ministério Público. Os juízes concordaram e Gleisi Hoffman foi absolvida em 2018.

Finalmente, com “o que se passa no Brasil” podemos aprender isto: quem é apanhado a usar a delação premiada para tentar enganar a justiça, paga caro. O ex-lobista Júlio Faerman jurou ter entregue dinheiro ilegal à campanha de Dilma Rousseff, mas um juiz concluiu que ele “veiculou alegações falsas” e tentou manipular o tribunal, “abusando” da figura da delação premiada. O “delator premiado” acabou condenado a 28 anos de prisão.

Da próxima vez que o tentarem convencer que o Brasil é um país irresponsável, onde as pessoas são presas pelas meras denúncias de “bufos” protegidos pela tenebrosa delação premiada, lembre-se das imortais palavras do socialista português António Campos: “Aprendam com o que se passa no Brasil”. Convém aprender, realmente.