É pouco provável que o Relatório seja o assunto do dia, ou da semana, porque não é coisa que vá ser esquecida.
Os católicos que conheço, mesmo aqueles cuja ligação à Igreja e aos seus ensinamentos não vai muito além da missa dominical, estão aturdidos: uma coisa são pastores transviados (a Igreja é feita de homens, não de santos, donde nunca se pode ter a certeza absoluta de por baixo das vestes talares não estar um pulha, ou um tarado), outra muito diferente é a quantidade de casos indiciar que os houve (e haverá ainda, talvez) em quantidade suficiente para se detectar um padrão.
É que, parece, mesmo noutros ambientes em que as crianças estão, em situação de fragilidade, expostas a adultos, como no seio das famílias e em instituições, os casos não são percentualmente tantos.
Depois o encobrimento, que durou décadas senão séculos, e que faz aparecer a Igreja Católica à luz de uma burocracia que defende os seus, a qual se manifestou com afloramentos recentes no nosso episcopado – e se manifesta ainda agora num ou noutro bispo, quando a procissão demoníaca há muito saiu do adro.
Aturdidos estão. E muitos que, como eu, não são católicos nem fiéis de outras confissões, evidenciam uma mal disfarçada satisfação: sempre acharam a Igreja um elemento aglutinador de tudo quanto é retrógrado na sociedade, inquisitorial em seu tempo, colaboracionista no do Estado Novo, reaccionária no PREC e obsoleta agora.
Fosse eu católico, e estivesse embrulhado numa qualquer estrutura que se ocupasse dos destinos da Fé, e trataria de perceber o que fazer não para limitar estragos – estão feitos, ainda que venhamos a assistir a sequelas – mas para garantir mecanismos eficazes de alerta e repressão para situações como as que o Relatório ilustra. E como estamos a falar de crianças mas não de um jogo de dominó em que uma derruba o tabuleiro para dizer: este não valeu, vamos jogar outro, é essencial que a própria Igreja persiga implacavelmente, e expurgue do seu seio todos os prelados com culpas no cartório da pedofilia, quer possam quer não possam ser perseguidos criminalmente, e não apenas no futuro, também no passado, e não apenas quem fez mas também quem encobriu.
Pessoa amiga, mulher, disse-me: se as mulheres fossem ordenadas nada disto teria acontecido. Fiquei a pensar: não faltam exemplos de mulheres na Igreja que se distinguiram por casos terríveis de crueldade e fanatismo (contra mães solteiras, por exemplo), mas pedofilia não. Não é que seja impossível, é que simplesmente é raríssimo, o que leva a pensar que estariam menos disponíveis para fingir que não viam.
Para compor um quadro de soluções, haveria de ponderar se há o mesmo número de crimes desta natureza, percentualmente, em confissões onde não exista o celibato, caso em que este também faria parte da equação. E ainda que os remédios para a cura desta chaga digam sobretudo respeito aos católicos, os que o não são, mas não sofrem de anticlericalismo primário, têm muito em jogo.
Explico:
Desde a noite dos tempos que as religiões acompanham o Homem. Mesmo que a ciência, que desfez muita crença ilusória, a liberdade, que autoriza o incréu, a separação da Igreja do Estado (onde teve lugar), que diminuiu a importância da primeira, e a evolução dos costumes, tenham reduzido a importância da Igreja a ponto de no Ocidente escassearem as vocações e os fiéis desertarem os templos, a raiz do nosso modo de vida é cristã, como são as convicções de inúmeras pessoas que julgam que as não têm.
Isto é assim porque a maior parte de nós não se exime às pulsões que definem a condição humana, uma delas sendo a interrogação sobre a vida além da morte – a que só as religiões dão resposta.
Ser ateu ou crente não é uma característica da inteligência ou da estupidez – não faltam indivíduos intelectualmente brilhantes que são profundamente crentes, idiotas que são ateus, e ao contrário.
Isto significa que do descrédito da Igreja Católica o herdeiro não será nem o agnosticismo nem o ateísmo – serão outras religiões, incluindo as laicas, como tal se entendendo todas as que pretendem fazer um Homem Novo e a sociedade perfeita, igualitária e impoluta, que é o céu na terra. E das outras religiões propriamente ditas é melhor nem falar, que a Católica tem atrás de si dois mil anos de evolução, donde uma organização sábia por acumulação de diuturnidades.
Não sou católico, disse. Mas também não sou anticatólico, nem acho que tenha nada a ganhar, nem os meus concidadãos, com a proliferação de seitas que nada têm a ver nem com a nossa história, nem com a nossa identidade, nem com o laicismo que os mata-frades de ontem e de hoje acham que é um progresso.
Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.