O Relatório Draghi, deste mês de Setembro, é uma lufada de ar fresco numa Europa que parece mais ocupada a gerir problemas que a encontrar soluções.

Já muito falado, desde a sua apresentação pública, noto que os comentários se focam, essencialmente, na reprodução da mensagem do mesmo, a relevar os pontos principais – da análise comparativa com os principais competidores (EUA e China), ao elencar do que é preciso fazer em termos de Investigação e Desenvolvimento, prioridades de industrialização, e, meios para o concretizar.

O Relatório, que tem como título “O Futuro da Competitividade Europeia”, é mais que uma análise e proposta para o futuro da competitividade. O texto diz que “Chegámos ao ponto onde, sem ação, iremos comprometer ou o nosso Bem-Estar, o nosso Ambiente ou a nossa Liberdade”.  Ou seja, sem mudança de rumo, não será possível guardar os três parâmetros, ao mesmo tempo. E foca-se na necessidade da melhoria da competitividade como forma decisiva de assegurar o que considera serem os valores europeus: prosperidade, equidade, liberdade, paz, democracia, num ambiente sustentável.  É uma evidência, Mário Draghi liga a competitividade não só ao futuro da mesma, também, ao futuro da Europa.

Todavia, este documento, que é uma mais valia – porque para lá das intenções, propõe caminhos concretos a seguir – nunca toca ou expressa uma palavra, um conceito, que é determinante, enquanto condição prévia e de contexto, para atingir os objetivos enunciados – a Cultura.

A Cultura, para este efeito, é tomada no sentido amplo do conjunto de memórias, representações, valores, instituições e criações que correspondem a dada comunidade.

Talvez os mais céticos considerem excessivo, considerar a Cultura como elemento determinante da competitividade e do desenvolvimento. Todavia, se relembrarmos um livro, do início do século XX, de Max Weber – A Ética Protestante e a origem do Capitalismo – ou os recentes documentos da Brookings Institution reunidos sob o título “Como os fatores culturais moldam os resultados económicos” (https://www.brookings.edu/collection/how-cultural-factors-shape-economic-outcomes/), pode haver razões para mudar de opinião.

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Amartya Sen, Prémio Nobel da Economia, abordou este tema numa reunião do Banco Mundial, em Tóquio, em 2000 e, mais tarde, desenvolveu um texto publicado em “Cultura e Ação Pública”, tendo por editores Vijayendra Rao e Michael Walton (Stanford University Press, 2004). Apesar do texto ter por referência o Sul Global, creio que o seu conteúdo pode, tendo em conta as diferentes realidades, ser considerado neste contexto: “A Cultura interage com o desenvolvimento de muitas formas diferentes. Está envolvida tanto nos fins como nos meios do desenvolvimento. Mas o reconhecimento da importância da Cultura não deve ser traduzido, instantaneamente, em teorias prontas sobre o que funciona, o que precisa de ser cultivado e o que deve ser preservado. Há questões epistémicas complexas envolvidas na identificação das formas em que a Cultura pode ou não influenciar o desenvolvimento, e também uma questão profundamente ética e política da escolha social envolvida na acomodação de diversas preocupações.”

Quanto aos fins do desenvolvimento, nos quais a Cultura está envolvida, no caso europeu, Draghi enuncia o conjunto de valores,  já referidos,  que associa ao que se poderia chamar, modelo europeu: prosperidade, equidade, liberdade, paz, democracia, num ambiente sustentável. Todos estes conceitos têm uma carga eminentemente cultural e implicam, a cada momento, formação cidadã e compromisso público, vivências pessoais e interação comunitária. Este conjunto de valores, não está, necessariamente, enunciado da mesma maneira nos competidores mais diretos: os EUA e a China. E o que está em causa é a “diferença cultural”. A(s) história(s) de cada território, o conjunto de vivências contemporâneas, as expetativas de futuro, são poderosos indutores comportamentais, face ao quadro de valores em presença.

Olhar para a História dos EUA, da China, da Europa, olhar o contexto atual de cada um dos blocos, contribui, decisivamente, para perceber que não basta dizer que temos de nos virar mais para as indústrias tecnológicas, promover a I&D, ter a IA como elemento fundamental a integrar nos modos de produzir.

Amartya Sen pergunta, no texto referido, “como” a Cultura influencia o Desenvolvimento.

A primeira lição a tirar é que não há determinismo histórico e cultural – “sucessos” passados não garantem “sucessos” futuros. E limitações passadas não implicam limitações futuras.

Impérios foram reduzidos a cinzas e do deserto nasceram novos protagonistas. Exemplos são as maneiras como diferentes grandes civilizações fizeram o seu caminho até à contemporaneidade – China, India, Egipto, Roma, Grécia, Império Otomano, por exemplo. Ou, olhando para as variadas escolhas e realidade presente daqueles que, no seculo XX, face ao papel do petróleo como matéria prima, se tornaram protagonistas: Noruega, Venezuela, Rússia, Arábia Saudita, Irão, Brasil, entre outros.

Olhando para os três maiores blocos económicos mundiais, verificamos que, no século XXI:

– os EUA mantêm a liderança na competitividade e criação de riqueza;

– A China deu passos extraordinários para se tornar uma potência de I&D e não ser uma mera imitadora industrial;

– a Europa diverge e diminui o seu grau de competitividade.

As razões são múltiplas. Todavia, é bom não ignorar a “a mão invisível da Cultura”.

Que países de tradição cultural milenar podem inovar, demonstra a China. Que potências com História e formação cultural recentes podem liderar, demonstra os EUA. Porque a Europa, com uma rica História e Cultura, não está a conseguir melhorar os seus índices de competitividade? Basta reduzirmos a burocracia, melhorar a nossa I&D, reorientar a produção industrial, aumentar a escala produtiva, uniformizar produtos? O que é preciso é ter, nas instituições europeias, um poder mais concentrado, com maior simplificação procedimental, como forma de promover um mercado único e aumentar a escala e uniformização da produção – harmonização normativa, coordenação de políticas, remoção de obstáculos, como defende Draghi?

O que fazer, para gerar o ambiente propício à inovação “segurando” os valores europeus?

Os EUA, apesar da grande divisão cultural, social e política neste século, conseguiram (pelo menos, até agora) manter o seu foco económico. A China promove a uniformização social e cultural e, embora os resultados de crescimento da riqueza estejam  abaixo do desejado, mantém o ritmo de crescimento da inovação. A Europa, dividida cultural, social, e politicamente, não tem conseguido, como os EUA, obter melhores resultados económicos para lá das divisões sociais, culturais e políticas.

Como diz Amartya Sen, os “fatores culturais influenciam o comportamento económico”. Fatores, que, por vezes, não são, imediatamente, visíveis.

Tendo, como ponto de partida, o Relatório Draghi, seria interessante articulá-lo com esta pergunta que merece atenção – o que precisa de mudar, culturalmente, na Europa, para defender o seu modelo e melhorar o seu desenvolvimento?

Há mãos invisíveis que são fundamentais, para produzir resultados visíveis.