Quando vi as imagens da conferência de imprensa de Boris Johnson há pouco mais de uma semana, achei que seria alguma forma terrível de humor negro. O líder de umas das maiores potências mundiais, de uma das maiores economias europeias e de uma das sociedades mais multicultural e com maior presença no mundo e nos seus continentes, anunciava um plano para exportar” emigrantes ilegais para África. O plano é simples: todos aqueles que chegarem ao Reino Unido de forma ilegal  procurando asilo serão enviados para o Ruanda, numa política de recolocação” de seres humanos, atropelando conceitos como inclusão, humanidade ou solidariedade. Esta medida pretende combater o aumento do número de pequenos barcos que todos os meses atravessam o canal levando emigrantes para as costas da Inglaterra. Este número atingiu as quase 30.000 pessoas em 2021, sendo a sua maioria (mais de 80%) originários da Etiópia, Síria, Iraque e Irão.

Segundo as projeções do governo inglês os custos, no primeiro ano, com esta medida rondarão os 200 milhões de libras, um valor que representa cerca de 30.000 libras por cada emigrante ilegal deportado. Este foi o valor que o Ruanda atribuiu a cada vida humana. Este é o valor que o governo do senhor Boris Johnson está disposto a pagar para exportar seres humanos. Não posso dizer que estou surpreendido. A base do Brexit foi esta. A origem da Austrália foi esta. É toda uma história e uma longa tradição que se perpetua agora num redundar de um negócio de seres humanos. O Reino Unido prepara-se para combater o trafego de pessoas com um projecto na qual as exporta. Quem estuda economia sabe que a concorrência é algo positiva para o negócio e o Reino Unido acabou de entrar no negócio do transporte internacional. Se o mundo investisse 30.000 libras por ser humano nos países sub desenvolvidos, acredito que nenhuma dessas pessoas iria querer abandonar a sua terra natal.

Um mar que mata

Os passageiros apresentam-se em condições de saúde difíceis, tanto física como mentalmente, resultado de abusos sofridos e de provações. As condições a bordo são insuportáveis, degradantes ou desumanas. Escolhamos nós o adjectivo que quisermos, garantidamente iremos acertar numa descrição que peca por defeito e por vergonha pública. O espaço é reduzido e os homens são de tal maneira amontoados que não existe distância entre si, sendo impossível não estar fisicamente em contacto com duas ou três pessoas. As mulheres e crianças, viajam em condições semelhantes, sem qualquer respeito pelas suas fragilidades, num choro surdo e numa horrível realidade onde as lágrimas há muito deixaram de se mostrar. A falta de salubridade e de espaço são sufocantes e tornam as viagens férteis em doenças. A falta de comida e de água a bordo, as doenças, o desespero e as condições físicas, levam a inúmeras mortes resolvidas com o corpo a ser deitado à água. O mar, esse também faz vitimas, levando vidas e histórias para o seu fundo com ondas destruidoras e sem emoção. Não existem números oficiais mas aceita-se que um em cada cinco africanos morreu nestas viagens.

O parágrafo anterior relata a desumanidade de um barco de escravos do séculos XVI mas acredito que todos leram nestas linhas o drama de aqueles que, fugindo de guerras, perseguições étnicas, da fome e pobreza, morrem anualmente nos mares da Europa. Seres humanos a quem a humanidade lhes foi retirada e que sonham com o espírito humanista europeu para uma nova vida, aquela que nós deixamos todos os dias que lhes tirem em África. Atualmente, o Mundo reconhece 7 conflitos armados no continente africano (Líbia, Sudão do Sul, Republica Centro Africana, norte de Moçambique, Etiópia, Camarões e a guerra entre Marrocos e a Argélia), alguns com uma duração de anos e em países onde a pobreza e a fome devastam populações inteiras. Só nos últimos 18 meses, e apenas no norte da Etiópia, 500.000 pessoas morreram devido à guerra e à fome causada pelo conflito. Que não restem dúvidas: uma guerra é uma guerra, e um ser humano é um ser humano. Alterar o impacto das palavras e dos seus significados devido ao continente ou cor de pele é errado e não deveria ter espaço na nossa sociedade.

O paraíso” inglês em África

O Ruanda é um dos países mais seguros e que melhor acolhe refugiados”. A frase é de Boris Johnson, justificando, em tom promocional, a escolha do país parceiro para o seu projeto. Com um melhor enquadramento, quase que poderíamos realizar um filme promocional para o turismo do Ruanda, daqueles que passam em feiras de viagens e viagens longas de avião. Para quem não conhece o continente africano, ou a história recente de África, fica quase uma vontade de conhecer este paraíso descoberto pelo primeiro ministro inglês. Talvez importe olhar para os bastidores deste anúncio publicitário e ver o protagonista por detrás da história.

O Ruanda é reconhecido internacionalmente como o último país a cometer um genocídio. Quando a 6 de Abril de 1994 o presidente foi assassinado, um plano macabro foi colocado em marcha. Em apenas 100 dias, entre 7 de Abril e 15 de Julho de 1994, 800.000 pessoas foram mortas, mais de 250.000 mulheres foram violadas e mais de 2 milhões de pessoas tornaram-se refugiadas nas fronteiras vizinhas do Ruanda. Gosto de acreditar que para tudo na vida existe uma justificação, e depois deparo-me com situações onde qualquer tentativa de explicação é absurda. Porém, talvez importe procurar as razões para termos uma noção do país. Com a independência da Bélgica em 1962, o país ficou entregue a duas etnias: os Hutu e os Tutsi. Historiadores concordam que não existem muitas diferenças entre estas duas etnias mas a Bélgica esforçou-se para que tal fosse vincado para melhor controlar o país. Esta é uma nação que vivia da produção de café, o seu principal activo económico, principal exportação e principal atividade. Para um país sem infraestruturas, sem bases sociais, com graves problemas de pobreza e desigualdades, a queda de 50% do preço mundial de café em 1989, as consequências foram devastadoras. Em apenas um ano o Ruanda perdeu 40% do valor das suas exportações e o país afundou-se numa crise económica sem precedentes desde a independência. Como sempre, a falta de dinheiro levou ao pretexto para uma guerra e a uma invasão da minoria Tutsi exilada. A guerra terminou com um acordo de paz em 1993 e pela composição de um governo de unidade entre as duas etnias.

Com uma situação extremamente frágil, uma economia com enormes dificuldades, a paz era um manto artificial que cobria uma sociedade dividida. Com a morte do presidente, o rastilho foi finalmente aceso. Historiadores defendem que o genocídio foi preparado com meses de antecedência. Os 134 milhões de dólares gastos em armamento nesse ano, que serviram para armar as inúmeras milícias que realizaram os massacres são uma evidência clara disso. Durante estes 100 dias de terror, os principais países internacionais esforçaram-se por ignorar o conflito, incluindo a Bélgica e a França que tinham tropas no terreno. O conflito terminou com a tomada do poder da minoria Tutsi levando ao êxodo de milhares de Hutus para o Burundi e Congo. Foi para este país que o conflito escalou, levando a uma guerra que envolveu seis países e que terminou em 2003 ceifando 5 milhões de pessoas.

Atualmente, o Ruanda é governado por um presidente que está no poder desde o final do conflito em 1994, alterando a Constituição algumas vezes, garantindo que estará no poder, pelo menos até 2034, numa clara demonstração da real democracia do país. Em simultâneo, vários opositores deste regime democrático morreram em situações duvidosas ou fugiram para o exílio. Dentro das suas fronteiras o presidente Kagame é muito ativo no twitter, acreditando no desenvolvimento tecnológico como motor para o crescimento económico. E se por um lado o país regista índices de crescimento na sua economia, também é verdade que a sua sociedade continua marcada por enormes desigualdades e pobreza. Ainda hoje, o programa alimentar das Nações Unidas ajuda mais 500.000 famílias anualmente, num país onde a fome ainda é responsável por milhares de mortes. Este é o destino de sonho” e exemplo de integração” que o governo inglês anuncia como justificação para o injustificável.

Quando exportar” pessoas é mais fácil que resolver o problema

A premissa é evidente: se os ameaçarmos com uma viagem sem regresso para o Ruanda, eles não terão a vontade de arriscar vir para o nosso país. Esta é uma política que visa resolver o problema dos ingleses, numa visão egoísta e que, não resolvendo o problema de origem, apenas eleva os riscos provocados por um mundo cada vez mais desigual. Foi anunciado que esta política irá implicar um investimento de cerca de 200 milhões de libras, apenas no primeiro ano. Se esta verba fosse aplicada nos países de origem destes emigrantes, se fosse criado um plano efetivo de melhoria das condições de vida nos países de origem, de combate à fome, à desigualdade social, à corrupção nos seus governos. Se existissem verdadeiros embargos à venda de armamento para zonas de conflito em vez de combater quem, sem recursos e sem esperança foge da morte, talvez tivéssemos menos rotas de refugiados e um mundo mais inclusivo. Se a Europa tratasse África como trata a Ucrânia (e ressalvo que tudo deve ser feito para apoiar os ucranianos), provavelmente não teríamos um drama humano com estas dimensões. Se o mundo apostasse de forma séria no combate à fome, na criação de infraestruturas de água e salubridade e na escolaridade nestes países, a própria economia mundial ganharia. Este é o momento em que os governos devem assumir o papel que até agora as ONGs e voluntários desenvolveram. A onda de apoio à crise ucraniana deveria unir todos em torno de uma luta que é global.

Acredito, que este plano inglês possa ser um formato que empurre” estes seres humanos para outros portos mas será esta a medida que queremos ver nos nossos líderes em 2022? Não! A Europa e o mundo está a pactuar com um plano onde um país retira todos os direitos a um ser humano, compra a outro país um visto de refugiado e exporta esse ser humano, contra a sua vontade, para um país onde um presidente perpetuo governa uma economia frágil e repleta de desigualdades, pobreza e fome. Estamos todos incomodados (e muito bem) com os milhares de mortos na Ucrânia, mas ignoramos olimpicamente os milhões que morrem anualmente em África. Vou escusar-me a questionar o porquê.

Termino com um regresso ao início. Sempre fui um profundo admirador do humor britânico. A conferência de imprensa do Boris Johnson poderia bem ter sido uma tentativa falhada desse mesmo humor. Infelizmente não foi. No entanto, deixo uma sugestão para quem leu: quem quiser emigrar para o Ruanda sem custo de transporte e apoio nos primeiros tempos no país, por favor dirija-se ao porto inglês mais próximo, o governo de sua majestade tratará do resto.

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