É sempre arriscado escrever em cima da catástrofe. Escrever, literalmente, em cima do fogo. Ainda que só assim valha a pena. O tempo é sempre mais dado ao labirinto dos bodes expiatórios e menos à “contemplação carinhosa da angústia”, para citar o título de um ensaio de Agustina. O calor, a “mão humana”, o eucaliptal, os meios e a falta deles, enchem as palavras. Mas falta espaço para as cinzas e o fogo. Não vivemos, é verdade, sem diagnósticos, panfletos e promessas, mas viveremos irremediavelmente pior sem alguma coisa que nos ajude a limpar os olhos das imagens excessivas.
Em A Estrada, Cormac McCarthy, um pai e um filho, num mundo destruído, onde a neve, ao cair, é cinza, caminham até à costa, sem saberem se algo sequer os espera. Pai e filho “transportam o fogo”, uma espécie de Humanidade sobrevivente, onde cada um é “o mundo inteiro do outro”. Mas quando o fogo não é transportável, mas cego e ignorante; quando o fogo é exaustão e não uma lâmpada acesa, é difícil que a vida seja mais que um combate. No romance de McCarthy, é precisamente a isso que este par tenta resistir, arriscando-se a preservar a Humanidade apesar da fome, do cansaço e da queda para a desistência.
Os incêndios são sempre alegorias tenebrosas que mostram de forma avassaladora a incapacidade das purgas, o desajuste da raiva e a insuficiência dos desejos de “terra queimada” para “começar tudo de novo”. Mas os incêndios são também parábolas que alertam para o perigo de um cuidado e de uma prevenção que sejam uma mera arqueologia. As imagens a que assistimos nos últimos dias dizem-nos acima de tudo isso. Apresentam menos grafismos, irritações ou acordos, e muito mais uma expectativa, um juramento, uma promessa, como aquela a que Agustina deu voz em O Sermão do Fogo: “não me deixes, volta para cá e não te vás embora nunca mais. Tudo morre, sem ti”.
É ousado dizê-lo agora, mas o caminho de que estamos mais carentes não é aquele que leva das cinzas à vida, mas antes o que das cinzas nos devolve ao fogo – e só uma leitura mal-intencionada pode descortinar daqui o desejo de reacendimentos. O fogo necessário, o fogo sem o qual a liberdade se torna crua e indirigível, é o fogo que queima o que seca, sem consumir a vida; o fogo, trêmulo, ansioso, indeciso, que é como um corrimão no meio da noite e do silêncio; o fogo contra tudo o que domestica a Humanidade; o fogo do qual não podemos, ainda que faça frio, aproximar “um coração de neve”.
Estas podem ser só palavras bonitas. Não dão receitas. Não reconstroem casas. Não devolvem vidas. É só uma pausa para inspirar.