Somos todos feitos de pessoas. De inúmeras pessoas! Que, com graus de importância muito diferentes, se juntaram dentro de nós, em momentos que não coincidiram uns com os outros. E que, também por isso, parecem ter (algumas delas) pouco a ver umas com as outras. Uma trazem-nos zumbidos aos ouvidos. Outras, elevam-nos, vida acima, até que se chegue ao silêncio. Estas, são a coluna vertebral, o coração e os pulmões de tudo o que se passa em nós. As células que protegem de tudo o que magoa. As outras, vagueiam como intrusos que nos são familiares. E que, ao contrário daquelas que nos dão vida, se entrincheiraram, se for preciso, num episódio pequenino — colado à memória, de forma irritante — e moem, incomodam, corroem e estragam.
Mas elas, todas juntas, somos nós. O que faz de cada singularidade humana uma multidão de horizontes a perder de vista. Que concorrem, todos eles, para um mesmo olhar.
Todas essas pessoas se articulam, umas com as contradições das outras, a ponto de contribuírem para sermos como somos. A nossa identidade (ou a personalidade, como preferirem) é o resulto do produto — sempre em aberto, sempre costurado com algumas turbulências e num bulício desmedido — das identificações que, no essencial ou em parte, fazemos em relação a todas estas pessoas.
Seja como for, de tantas e tantas pessoas que existem em nós, há poucas circunstâncias em que conversamos com elas. Mesmo dentro de nós. E são menos, ainda, aquelas que constroem connosco um silêncio que nos torne num só. E isso é esquisito. Segui-mo-las, vezes demais. Calados sobre tudo aquilo que nos constrói. Cada qual a pensar nos seus problemas. Como se cada um deles não fosse, também, construído por essas pessoas que vivem paredes-meias com o nosso coração. Mas, apesar do melhor do que somos capazes, quando se trata de falarmos com elas daquilo que somos, são demais os trocadilhos de “silêncio”. Habitados por murmúrios. Ou sobra entre nós uma estranha arte de se desconversar. Talvez seja por isso que fugimos do silêncio. Para não escutarmos as palavras que os pensamentos que ele traz têm para nos dizer.
Desta multidão de pessoas muito diferentes que trazem um corrupio de pontos de vista aos nossos dias, tudo se guarda. Nada se perde. Mesmo que isso se faça de algumas experiências, trazidas por elas, que gostaríamos que um mata-borrão qualquer esquartejasse ou transformasse num pó fino que voasse para longe de nós à mínima brisa que fosse ao seu encontro. As experiências do silêncio fazem da memória um arquivo majestoso de tantas coisas que, todas juntas, fizeram de nós aquilo que somos. Mas também criaram uma entidade estranha a que chamamos destino. De que fugimos. Como se não fôssemos nós a construí-lo. A várias mãos. Um dia atrás do outro.
Mas de entre as pessoas mais preciosas para nós, há algumas de quem, de surpresa em surpresa, nos vamos afastando aos bocadinhos. Porque crescem em sentidos diferentes do nosso. Porque nos vamos encolhendo de as questionar, de as repreender ou, sequer, de as socorrer. Porque, hoje, nos magoa a forma como nos desiludiram. Amanhã, o jeito como resistimos, até, de lhes falar. E, depois, a maneira como coleccionamos pequenos ressentimentos, o que faz com que, tudo junto, gere um zumbido que nos impede que se chegue ao silêncio. Algumas, já foram a nossa pele. Ou enormes e íntimas e preponderantes para nós. Sejam elas os nossos pais ou algum dos nossos filhos. Ou um ou outro dos amigos com quem, entretanto, nos fomos agastando. Como se não fosse também com eles que fizemos os nossos horizontes. Por mais que, hoje, persista o seu zumbido.
Quando as pessoas nos desiludem muito deixam de ser nossas. Não porque deixem de fazer parte de nós. Mas porque a culpa pelos ressentimentos que nos trazem se suporta melhor quando fazemos de conta que o seu lugar em nós passou a ser várias páginas em branco. E é aí, com esse peso delas, que se constrói o destino. Que faz com que uma espécie de vazio se baixe. Que, duma forma precipitada, descrevemos como um silêncio que as afasta.
Mas silêncio e vazio são o contrário um do outro. O silêncio traz-nos às palavras. O vazio esvazia-as do seu som. O silêncio convida à comunhão. Com o vazio só se desconfia. Por isso mesmo, o vazio faz-se dos zumbidos que nos impedem de chegar ao silêncio. Que, por sua vez, amassam desilusões, e decepções e ressentimentos de que nunca se fala. Levando-nos, primeiro, a questionar aquilo de que deixámos de gostar nelas. Para que, depois, como se fosse uma atalaia em que caímos, acabarmos a perguntar se gostamos delas. Eu acho que estas pessoas são – por culpa nossa, sobretudo – o nosso purgatório. Menos que viajantes, quando é assim, são vagueantes. E, não sendo o mal, parecem transformar-se nos operários do nosso destino. Que nos afunila e assombra. E faz de nós uma página em branco a quem a bruma roubou o seu entusiasmo.
Diante de todas as pessoas que moldam a nossa vida, o destino não é um presságio de que se fuja. Mas uma alegoria para falarmos dum rasto de zumbidos que gera tempestades. Vindas de dentro! Que fazem de nós um guerreiro que se evita até a si. E que, em vez de se enfrentar e conhecer, e batalhar para deixar que o silêncio o tome e para que as palavras que ele traga venham até si, antes de desembainhar um som que seja, se condena. E antes de ter a honestidade e a honradez de reconhecer os seus medos, os renega.
O silêncio não fala por palavras. São as palavras que nos encontram no silêncio. Mas, nos tempos que correm, o silêncio é um bem parco, que escasseia. Nele se passeia sempre que se dorme. Mas pouco mais. No resto do tempo, empanturramo-nos de ruído e mais ruído. E de zumbidos sobre zumbidos que, tudo junto, não deixam que se chegue ao silêncio.
Num mundo amigo das pessoas, o silêncio seria património imaterial da Humanidade. Num mundo fustigado por destinos, uma tempestade de zumbidos de que se foge. Como se no hoje e no agora não coubessem nem a memória ou o futuro. E, em vez de se pensar, só se ruminasse sobre zumbidos. E pouco mais.
O mais engraçado da natureza humana é que se multiplicam as pessoas que falam de predestinados. (De pré-destinados, supõe-se.). Daqueles que chegam ao destino antes dele chegar. E mandam mais no destino do que ele manda nas profecias que traça. Dando a entender que há quem dê à sua vida aquilo que deseja. Como se esse não devesse ser o caminho que nos toque a cada um. Como se os predestinados só se distinguissem dos atarefados porque, entretanto, descobririam que o silêncio é o trilho com que se escuta a sabedoria.
Há pessoas que nos ensinam que o silêncio é a nudez das palavras. O eco em que todas elas se encontram com Deus. Essas, nunca as seguimos. Aliás, ninguém que aprenda com os outros os segue! Guarda-os, simplesmente. A não ser que deles fiquem os zumbidos que nos vergam à sua força no nosso destino.
Somos, todos, feitos de pessoas. De inúmeras pessoas! Mas só com algumas se chega ao silêncio. Que rompe com os zumbidos. Com que se vence o destino. Que nos ensinam que o amor não medra sem silêncio. E que somos tanto mais quem somos quando, entre todas as pessoas que se juntam em nós, o silêncio se tornar a voz da nossa liberdade.