No Verão a Terra parece-se com um bairro clandestino. Estão sempre coisas a acontecer, mas os habitantes não conseguem bem estabelecer a relação entre elas. Os estímulos sensoriais e o calor abafam e cegam quem vive à superfície. É por isso difícil distinguir o que estamos a ver daquilo que se está realmente a passar. Quando as temperaturas são mais amenas lá se vão imaginando algumas correlações, aqui e ali; mas o Verão é o inimigo mais declarado da verdade; e por isso o público que vive à superfície da terra não percebe nada do que está a acontecer durante o Verão. À superfície tudo parece superficial.

Nunca como no Verão precisamos tanto de um sistema de túneis, e nunca como nessa altura há razões para estarmos gratos pela sua existência. Por baixo da faixa estreita do nosso aldeamento existe com efeito uma rede de túneis muito elaborada, construída por antepassados vindos de outros sistemas solares.   Nesses túneis move-se uma pequena população de milícias dedicadas à verdade: a sua função principal é explicar-nos o que se está a passar, e transformar em notícias e por isso em factos certos estremeções que se sentem sem aviso nas várias partes da superfície. São os jornalistas, principais operadores da profundidade.

Geralmente trabalham de sol a sol na escuridão dos túneis. Mas quando sentem um estremeção sobem por um dos poços que lá há, e empoleiram-se nos beirados dos hotéis por um instante; e depois esvoaçam pelos túneis para outro ponto do aldeamento, voltam a subir e voltam a empoleirar-se: e lá estremece outra coisa; e assim sucessivamente até à hora do jantar. Não há necessidade de grandes demoras: a essa milícia basta a certeza de que aquilo em que acreditam é a medida de todas as notícias. As notícias são raciocinadas pelos milicianos no sossego dos túneis, onde se ouve apenas o barulho das suas convicções de passarito. Como nenhum reflexo da superfície chega aos túneis, os operadores de profundidade podem concentrar-se livremente na escrita criativa, a ocupação mais comum de quem vive em subterrâneos.

Quando estão prontas, as notícias que emergem são anunciadas pela interjeição tradicional ‘Cucu!’. Este grito de guerra aviário previne os habitantes da superfície de que uma ocorrência num certo ponto do seu aldeamento tem no fundo a ver com coisas que se passam noutros lados da Terra. É o milagre da verdade: a verdade, acham os operadores, está sempre no todo; mas o todo está todo naquilo que sempre acharam. São-nos assim comunicados os principais factos do Verão: que quando há um rasto de destruição nunca se comeu tão bem na província; que se desatou aos gritos no estrangeiro e os bombeiros desconfiam do bebé cantor. Tem sido um Verão quente, este Outono escaldante: obrigado Gonçalo, obrigado Isabel, boa noite Kiev, boa noite Albufeira.

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