1 Muito se tem escrito sobre o pérfido ataque do Hamas a Israel, e da resposta desproporcionada e o genocídio do povo palestiniano que está a ser perpetrado pelo exército israelita sob a direção política do governo de Netanyahu na faixa de Gaza. Os militares fazem a guerra, mas quem decide sobre a guerra, as negociações e a paz são os políticos.

Algo que tem passado despercebido como fator adicional que dificulta que Israel ponha fim à guerra são as características do sistema político israelita. O sistema eleitoral para o Knesset (parlamento israelita) propicia o antagonismo e o radicalismo político e promove a guerra em vez de compromissos e da solução de dois Estados que é uma condição necessária, mas não suficiente, para uma paz duradoura no médio oriente. Israel é dos poucos países do mundo em que todo o país é um único círculo eleitoral, o que combinado com a existência de um limiar mínimo legal de representação de 1,5% (no início era 1%) faz de Israel uma das democracias com o maior grau de proporcionalidade no mundo (relação entre % de votos nos partidos e % de mandatos).

Para quem considera que a proporcionalidade é o critério mais importante de um sistema eleitoral, o melhor contra-exemplo é precisamente Israel. Uma elevada proporcionalidade significa um parlamento extremamente fragmentado, com uma grande pluralidade de partidos, em que a maior parte das vezes não só não há maiorias absolutas, como é necessária uma coligação entre vários partidos para dar a base parlamentar de sustentação do governo.

Para chegar a uns meros 53,3% de deputados no Knesset, o governo de direita de Netanyahu necessita de seis partidos ou fações parlamentares, algumas das quais coligações. Nele estão incluídos os ultra-ortodoxos, ultra-nacionalistas, e extremistas, diferentes partidos religiosos (de judeus sefarditas, asquenazes, etc.) e vários partidos explicitamente anti-árabes, racistas e defensores dos novos colonatos ilegais e até selvagens (mesmo à luz da lei israelita). É o caso da coligação que é a terceira maior força parlamentar entre o partido sionista religioso de Bezalel Smoticht, ministro das Finanças e o Otzma Yehudit liderado pelo sinistro ministro da Segurança Nacional Itamar Bem-Gvir. Ambos estes dois homens, têm sido um obstáculo a qualquer negociação de paz, como a recente tentativa de negociar um cessar-fogo em troca de reféns promovido por Joe Biden. Vários desses partidos radicais são contra a criação de um Estado palestiniano e não reconhecem sequer os direitos dos palestinianos em habitar esses territórios.

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O facto destes partidos estarem representados no Knesset e serem, muitos deles, essenciais para a sobrevivência de Netanyahu como primeiro-ministro, dada a escassa maioria parlamentar de que dispõe, resulta do anacronismo do sistema eleitoral israelita da combinação de um círculo eleitoral único e de uma claúsula-barreira mínima. Tivesse Israel um sistema eleitoral maioritário, como os britânicos, ou um sistema proporcional mas com vários círculos eleitorais, ou no mínimo uma cláusula-barreira significativa (por ex. 5%), tudo seria diferente e não estaríamos provavelmente a assistir ao genocídio de um povo.

A manter-se o atual sistema eleitoral para o Knesset vai continuar a excessiva fragmentação política parlamentar assim como a dificuldade de encontrar soluções não apenas para o fim da guerra, mas para uma paz duradoura.

2 Israel é talvez hoje o melhor exemplo, pelas más razões, da importância das instituições políticas no funcionamento de uma democracia. No extremo oposto ao modelo Israelita de proporcionalidade máxima, temos o caso britânico que tem um sistema eleitoral maioritário a uma volta, exclusivamente com círculos uninominais, que gera uma proporcionalidade “mínima” e voto útil “máximo” explicitamente favorável a ter um pequeno número de partidos (no limite um partido pode ter uma percentagem relativamente baixa de votos, digamos 25% e ter a totalidade dos mandatos desde que os seus candidatos estejam à frente em todos os círculos uninominais).

Os britânicos sempre deram mais importância à estabilidade política em detrimento da proporcionalidade e por isso um sistema eleitoral que “produz” poucos partidos é benéfico face a esse objetivo. É óbvio que a proporcionalidade não é o único valor em democracia, do mesmo modo que a estabilidade política também não o é. Dou estes exemplos para chegar ao caso português. Portugal não está em guerra e a Ucrânia não é nossa vizinha. Há, por isso, quem ache que está tudo bem com o nosso regime democrático. Até temos um presidente do Conselho Europeu.

Porém, sou dos que defendem que estamos numa rampa descendente, num processo de lento declínio. Dos três pilares do nosso regime democrático – executivo, legislativo e judicial – o primeiro vai funcionando com dificuldades e os dois últimos estão em clara deterioração e necessitam urgentemente de ser repensados e renovados.

É neste contexto que o manifesto para a reforma do sistema eleitoral para a Assembleia da República, que esta semana foi lançado, pode vir a ser um ponto de partida para uma renovação da democracia que passa obviamente por muitas outras dimensões e exige um debate aprofundado e uma clarificação dos objetivos que se pretende alcançar desde logo porque há uma salutar diversidade de pontos de vista entre os seus subscritores. Por exemplo se fosse criado um círculo de compensação nacional, mantendo o desenho atual dos círculos eleitorais (como consta de projetos lei apresentados na AR), isso aumentará provavelmente a proporcionalidade, a fragmentação parlamentar e a instabilidade política.

Porém, o manifesto refere o objetivo de reformar o sistema (aproximar eleitores de eleitos e melhorar a justiça eleitoral), mas manter a proporcionalidade. Tal pode ser alcançado basicamente de duas formas. Com a criação de um círculo de compensação nacional, acompanhado por uma apropriada diminuição média e maior equilíbrio dos círculos eleitorais. Em alternativa, sem círculo de compensação, mas redesenhando os círculos compensando uma agregação de muito pequenos círculos eleitorais com a partição de grandes círculos, como os de Lisboa e Porto. Precisamente porque têm consequências, deveríamos dar muito mais atenção à reforma do sistema eleitoral. Não foquemos a atenção nos assuntos urgentes. Demos relevância também aos importantes mesmo que pouco salientes.