Em saúde, muitos são os que opinam sem o necessário conhecimento humano, mas também técnico ou científico que envolve a decisão em medicina. “Fá-lo desconhecedor de um ofício, julga vislumbrar os méritos em que fundamenta múltiplas opiniões, mas no final, é apenas sensibilidade a determinar o seu juízo”, Thomas Mann. Compreendemos o que significa estar doente ou ter saúde, mas só conseguimos definir doença ou saúde pela negação de um em oposição ao outro. Quando estou doente é certo que não tenho saúde. São estados que decorrem das emoções e sentimentos que como expressão da linguagem de um mundo interior, temos dificuldade em encontrar as palavras adequadas. É como o amor ou a amizade, sabemos o que é, não como descrever. A doença tem definição, etiologia, classificação, tratamento, etc., mas saber tudo sobre a doença não é o mesmo que conhecer o doente. Na perspetiva do doente, não existe a doença, existe sim a sua doença, facto que é demasiadas vezes esquecido por médicos e gestores. Para os políticos não há nem doentes nem doenças, há eleitores.

Em Portugal, falar de saúde, pelo menos até há alguns anos, era falar de um SNS, era expor em mapas e números as doenças, esquecendo os protagonistas cujas vivências transmitem no conjunto uma imagem muito mais próxima da realidade que as tabelas de políticos e “peritos”.

O presente texto aborda a saúde em Portugal e está dividido em duas partes distintas. Numa primeira ficcionei duas histórias, duas narrativas em alguns aspetos antagónicas, mas complementares da mesma realidade. São histórias de um SNS do passado, um SNS anunciando num futuro dos “Amanhãs Que Cantam” que hoje sabemos ter sido utópico. Na segunda parte elaboro alguns comentários às mesmas histórias e da sua análise tento compreender o momento em que a utopia entrou em choque com a realidade.

O SNS e os “Amanhãs que Cantam”

Maria Armanda, de 58 anos, é administradora numa empresa comercial. É hipertensa e tem história familiar de cancro da mama. Está inscrita num centro de saúde modelo B que tem como missão zelar pela saúde dos inscritos. É uma medicina preventiva, pelo que não estranha quando recebe um aviso do SNS no seu telemóvel – tem uma consulta marcada dentro de duas semanas com a sua médica de família. Já aguarda a consulta, a sua médica, a Drª Mariana, tinha-a avaliado seis meses antes e a presente consulta fora-lhe marcada nessa altura.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O seu centro de saúde era uma unidade de saúde familiar (USF) modelo B, um modelo de gestão exigente com os profissionais avaliados por indicadores clínicos, mas também pela forma como se organizavam. Quando a consulta ocorreu já conhecia o procedimento. Tinha uma equipa que a aguardava para cumprir o protocolado e no final teria uma consulta com a Drª Mariana. Esta avaliar-lhe-ia o rastreio mamário realizado dias antes e colocaria algumas questões adicionais. No final pedir-lhe-ia exames se necessário. Se o fizesse, quando tivesse os seus resultados deveria enviá-los meios habituais. Havia ainda o compromisso de uma consulta não presencial com a Drª Mariana, ou uma das duas internas de Medicina Geral e Familiar (MGF) para comentar resultados e agendar nova consulta. Maria Armanda tinha sempre a próxima consulta agendada. Só teria de se preocupar se algo de anormal ocorresse.

O lema do SNS e dessa USF era a prevenção, era antecipar a doença, era “tratar” ainda enquanto saudável. Tudo corria bem, o sistema era perfeito e a Maria Armanda sentia-se confortável. Se algum problema de saúde ocorresse, poderia ligar para a linha de saúde 24, dirigir-se à sua USF-B, ou ainda, utilizar o seguro de saúde oferecido pela empresa ou o que subscrevia para a família e para o qual pagava uma mensalidade de poucas dezenas de euros. Esse seguro não lhe pesava no orçamento, mas dava-lhe a possibilidade de, por necessidade sua ou da família, recorrer a um dos quatro hospitais privados que entretanto tinham surgido a menos 15 minutos da residência. Em qualquer um deles poderia ser atendida por um profissional, faria os exames necessários e poderia ainda “realizar” mais alguns que estivessem em promoção. No final teria uma prescrição comparticipada pelo SNS. Maria Armanda tirando a hipertensão, que não considerava doença, nunca tinha estado doente, mas achava que o SNS nacional era perfeito, era digno dos mais elevados laudos, era o espelho de “Abril” e com orgulho o via como uma realização dos “Amanhãs-Que-Cantam”. Contudo, tirando a hipertensão nunca tinha estado doente. Era vista pelo sistema como uma “utente”. E se não tinha doenças, assim achava, era  porque o SNS lhe marcava os rastreios com regularidade e agendava as consultas de rotina adequadas. Era saudável, assim achava, porque tinha cuidado com a saúde e na sua lista de prioridades estava o cumprimento dos exames e rotinas que lhe prescreviam. Contudo, tirando a hipertensão nunca tinha estado doente. Do seu salário descontava os impostos que tinha por justos para pagar um serviço que consome perto de 15% do OGE e mais de 6% do PIB. É muito dinheiro, mas para “ser saudável”, porém, pela confiança que o sistema lhe incutia achava que era um investimento que valia o esforço. O plano familiar e respetivo plano de saúde tinha-o feito muito recentemente, não porque não confiasse na capacidade do SNS, mas mais por alguma parcimónia. Não queria incomodar com minudências se estas entretanto ocorressem.

Maria Armanda sempre tinha votado no partido socialista e não antevia nenhum motivo para alterar o sentido de voto. O SNS era um orgulho nacional e o partido socialista era o seu principal defensor. Tinha confiança no SNS, tinha confiança que o partido socialista seria o seu defensor mais intransigente. Contudo, nunca tinha estado doente.

A Dr.ª Mariana também era socialista. Aos 39 anos de idade sentia-se realizada profissional e socialmente. Tinha tirado o curso de Medicina na Beira Interior. Sendo de Famalicão, de famílias com posses modestas, viu numa licenciatura em medicina a possibilidade de ultrapassar o impasse social em que a sua família tinha estagnado e a que os seus dois irmãos mais velhos pareciam ter aderido sem resistência. Talvez se tivesse entrado numa das escolas de medicina do Porto, talvez o peso no orçamento familiar tivesse sido menor. Porém, para quem sai da casa paterna para prosseguir os estudos, uma universidade do interior é uma opção mais adequada ao esforço familiar.

O curso decorrera sem sobressaltos e a entrada na Medicina Geral e Familiar parecera-lhe a opção mais lógica para quem como ela queria exercer a profissão dos seus sonhos, a via de acesso para um mundo que visto debaixo parecia de despreocupação num maná de facilidade e felicidade. Rapidamente poderia ter um apartamento seu, ter carro próprio, constituir família e mais tarde, quem sabe, construir a moradia de sonhos. Não seriam necessários grandes sacrifícios e no entretanto, com parcimónia e frugalidade poderia começar a usufruir dos prazeres da vida. Viajar, era o seu maior sonho.

A possibilidade de entrada para uma USF tipo B, em Coimbra, ainda que longe da família, trouxe-lhe o suporte económico que precisava. O seu vencimento base era quase o dobro do de colegas que tinham entrado para especialidades hospitalares. Para além do maior vencimento, via ainda o seu rendimento mensal gulosamente composto por suplementos indexados a indicadores de desempenho. Organizada como era, estes não lhe eram difíceis de atingir. Acompanhar as duas internas de formação para além de lhe aumentar o conforto económico, era ainda a garantia de um ou dois pares de mãos de ajuda. Mariana era feliz. A sua vida familiar tinha altos e baixos, mas, quem os não tem. Profissionalmente, tinha optado por um regime de exclusividade que lhe garantia um rendimento fixo acima dos 5.000€ sem o sobressalto de vários locais de trabalho. O seu dia-a-dia raramente saía do programado. A equipa do seu centro de saúde era briosa e tudo fazia para justificar um investimento nas unidades piloto tipo B que desde Correia de Campos surgiram pelo território.

E o sistema funcionava, tinha muitos utentes e poucos doentes. Os utentes tinham uma programação adequada e o desempenho era medido por indicadores acessíveis. Os doentes também não eram motivo de grande preocupação. Os compulsivos no consumo dos cuidados de saúde encontravam nas novas tecnologias a barreira adequada ou para os desmotivar. Para os mais persistentes haveria sempre uma parafernália de etapas a ultrapassar até conseguirem o almejado atendimento presencial. Um atendimento quase sempre programado. Os poucos que conseguiam passar a fina malha imposta por critérios de qualidade decididos na Alameda Afonso Henriques ou na administração central dos sistemas de saúde (ACSS), esses poucos que presencialmente se declaravam doentes, tinham dentro do seu raciocínio de “guidelines” e fluxogramas um encaminhamento bem definido. Havia uns poucos que necessitavam de esclarecimento adicional, e havia os “crónicos” que frequentemente mais não precisavam que disponibilidade para empatia e solidariedade. Mariana era boa nisso. Sempre sorridente, sabia ouvir e com calma procurava sempre uma palavra de compreensão para quem dela necessitava. Para os poucos que restavam, para os mesmo doentes, o sistema, o SNS apresentava-lhe toda uma gama de opções que poderia usar conforme lhes encontrasse adequação. Coimbra gabava-se de ser o polo nacional de excelência do SNS e a gama de profissionais e serviços que disponibilizava a quem deles necessitava era a garantia que todos tinham acesso a um serviço de saúde eficaz. O SNS funcionava e era um orgulho nacional. Mariana era socialista em reconhecimento do que tinham feito por si e pela família que constituíra, mas também pelos utentes e um SNS que todos tratava por igual.

Para Mariana os problemas que o SNS apresentava eram resultado da falta de pessoal, de profissionais mal pagos e falta de investimentos em formação, equipamentos e infraestruturas. Mariana sabia que o orçamento do sector da saúde já ascendia a 15% do OGE, mas não tinha dúvidas que era necessário mais investimento para melhorar os constrangimentos pontuais que resultavam em urgências com dezenas de horas de espera, tempos máximo de resposta para actos médicos ultrapassados pelo dobro ou mais. Para Mariana 6% do PIB não era suficiente, era necessário mais investimento.

Mariana registava com muita desconfiança o aparecimento de unidades de saúde privados que como cogumelos iam surgindo pela cidade. Há poucos meses, quando teve de se deslocar à freguesia de Celas para uma reunião de formadores, observou que desde a saída da autoestrada em Coimbra até ao destino passou por doze estabelecimentos de saúde. Contou-os e contatou que ao longo daquele trajeto estabelecimentos públicos e privados surgiam agora em quase igual número, como se houvesse uma competição entre eles. Sem contar com edifícios menores como clínicas, laboratórios, etc., aqueles doze estabelecimentos pareciam-lhe excessivos. Para uma cidade como Coimbra eram uma exorbitância, para o distrito ou mesmo para a região Centro pareciam-lhe ser demasiados. Será que todos estavam abertos? Funcionariam todos? Onde tinham ido recrutar os profissionais? Não poderiam ter o funcionamento usual em clínicas ou consultórios. Ninguém faria investimentos daquela monta para iniciar a actividade depois das 18 horas! Não fazia sentido! Era como se o sector privado fizesse um cerco ao SNS para lhe sugar os recursos, e o SNS respondesse aumentando a parada. Talvez não se importassem de no início perder dinheiro, deveriam ter como garantido, assim achava, que mais cedo ou mais tarde chegaria o momento em que poderiam recuperar com lucros o investimento. Mariana via assim o segmento privado da saúde em Portugal. Um segmento parasita, incapaz de se justificar a si mesmo pela excelência e competência. Ela própria tinha recebido convites para abandonar o sector público e ser integrada num desses “cogumelos” que surgiam à sombra dos hospitais da Universidade de Coimbra. Quem a convidara tinha-o feito por a reconhecerem como uma profissional que todos respeitam e os utentes adoram. Era bem possível que com a Mariana  os doentes com seguros de saúde passassem a usar esse hospital privado. Bonita que era, dava sempre uma boa foto de publicidade, Mariana era um modelo da simpatia. De início quando o convite surgiu viu-o com vaidade, mas declinara-o porque pressentia que se o vencimento fosse duplicado também teria acréscimo de trabalho. Eventualmente com menos burocracia, mas seguramente com menor disponibilidade para a vida familiar. Talvez, num futuro não muito distante, talvez quando se reformasse, mesmo que o fizesse antecipadamente, talvez numa altura com menos compromissos familiares, talvez aí aceitasse o convite.

Agora, e em particular nos últimos meses a maior dificuldade em atingir os indicadores era algo que a preocupava. O risco de redução de suplementos, a maior pressão burocrática, a maior exigência, a maior dificuldade na referenciação e gestão dos doentes, um sistema informático cada vez mais pesado, agora, já não se sentia tão segura da qualidade da sua vida. Intuía que as dificuldades que tinha funcionavam como um convite para antecipar a transição para o sector privado. O sistema estava minado e isso leva-a a encarar a mudança. Mariana já não se sentia tão socialista!

Uma segunda história

Adão Ferreira, “entrepreneur” como gostava de se intitular, aos 47 anos vivia na margem sul onde tinha actividade profissional na área do turismo. A maior parte dos seus investimentos resultava de uma boa ideia e de alguma arte na sedução de colaboradores. Alguns aguentavam-se, ainda que com dificuldades, mas muitos já tinham encerrado ou foram trespassados para “proprietários mais presentes”. Adão Ferreira, escalabitano, ainda adolescente tinha ido para Lisboa onde terminara os estudos e completara uma licenciatura na área da gestão. Filho de famílias de posses suficientes, não tinha tido limitação económica nos estudos, mas quando estes terminaram teve de fazer pela vida. Não tendo sido um aluno aplicado, atravessou o ensino sem grande dificuldade e ao longo dos estudos, com professores ou com colegas tirou algumas ideias que pôs em prática quando pode. Muitas delas até poderiam ter melhor sucesso não fosse o apelo a um estilo de vida a que achava seu por direito.

Adão nunca se tinha envolvido politicamente, mas não era socialista. Não acreditava na justiça social como responsabilidade do Estado e quando pagava impostos achava que estes eram um desfalque para subsidiar “hordas de subsídio-dependentes”. O seu apelo político andara sempre junto ao PSD, mas quando a IL surgiu em 2017 desde cedo foi um dos seus mais fervorosos apoiantes. Os gastos do Estado em sectores sociais, na saúde e no ensino eram algo que não aceitava e cuja repulsa sempre se acentuava quando se aproximavam as datas dos compromissos fiscais. Só o próprio termo o irritava, compromisso com que? Ele nunca iria ter nenhum retorno. Não tinha filhos, tinha frequentado uma universidade privada, e na saúde, ele que nunca tinha estado doente, achava que quando chegasse a sua hora partiria sem incomodar ninguém. Era um fervoroso apoiante da eutanásia, achava que isso se coadunava com sua ideologia. Ele, Adão Ferreira, era um liberal, achava que os mercados se regulam sem intervenção do Estado e curiosamente, se alguma vez tivesse ocorrido um referendo sobre a eutanásia, ele tê-lo-ia votado favoravelmente, não lhe causando nenhum engulho que esse fosse um serviço organizado e prestado pelo Estado.

Como nunca tinha estado doente, a saúde era algo que o não preocupava. Nunca tinha ido a um centro de saúde, não fazia a mínima ideia de quem seria o seu médico de família, mas tinha um seguro de saúde que usava esporadicamente em pequenas maleitas, como quando tivera uma ruptura do tendão de Aquiles. Tinham-no levado a um hospital privado, pouco tempo depois foi observado por um ortopedista que após confirmar o diagnóstico o informou que teria de ser operado. A cirurgia foi efectuada no dia seguinte pelo ortopedista que o observara no dia anterior. Tudo decorreu sem complicações e poucas horas depois de operado teve alta. A recuperação foi mais complicada. Como vivia sozinho, teve de recorrer aos funcionários para o ajudarem nas necessidades básicas e na gestão dos negócios. O seu plano de saúde cobria-lhe um mínimo, e da segurança social obteve o retorno indexado aos poucos descontos que relutantemente efetuava. Ao segundo mês a sua actividade foi gradualmente retomada e poucos meses depois tudo retornara ao normal. Para o nosso Adão, este episódio era a demonstração que os cuidados privados de saúde eram competentes e eficazes. Não conhecia os outros, mas pelo que era noticiado, não tinha dúvidas. Tudo se tinha passado como planeado, sem sobressaltos, sem listas de espera, sem a confusão anunciada em “loop” nos noticiários. Não tinha dúvidas, um sistema se saúde privado onde cada um paga o que consome e em que a segurança social funciona como um seguro público que protege um mínimo aos mais desprotegidos e necessitados, era o mais justo dos sistemas. Adão Ferreira era um liberal.

A saúde é um estado transitório que não augura nada de bom! E quando menos se espera algo acontece que nos arranca do conforto que tínhamos como garantido. Uma bela manhã de julho enquanto fazia a sua higiene antes do pequeno almoço, Adão notou no tronco umas manchas vermelhas que apenas incomodavam visualmente mas, e era capaz de jurar, não estavam lá no dia anterior. Dois dias antes teve um jantar onde abusara de algumas comidas e bastantes bebidas. Deve ser alguma “alergia” pensou, e durante o dia não voltou a incomodar-se com o assunto. À noite quando se deitou, já escuro, nem se lembrou das ditas “manchas”. Mas de manhã, com a claridade do dia, elas lá estavam. Pareciam-lhe agora maiores e mais exuberantes. Como se sentia bem e não era pessoa de minudências não se incomodou, nem se lembrou de as fotografar ou medir para ver se havia variação. No fim-de-semana, como se as lesões persistissem recorreu a uma farmácia perto de casa. O farmacêutico perguntou-lhe pelos hábitos alimentares ou de higiene pessoal e depressa lhe identificou duas ou três potenciais causas para além do stress que é sempre um bom suspeito nestas coisas.

Tinha provavelmente uma alergia, cuja causa teria agora de perscrutar por entre os seus hábitos diários. Como alergia que seria, deveria tomar um anti-histamínico regularmente enquanto fazia experiências alimentares para encontrar o culpado das tão inestéticas manchas. Os comprimidos que tomava conforme se ia lembrando, não pareciam ter grande efeito, mas como os não tomava regularmente tinha dificuldade em avaliar a eficácia. Na sua actividade diária havia vários suspeitos que tentou aferir da culpabilidade. O stress era o factor mais difícil de controlar. Tentou contudo fazê-lo moderando as suas reacções e readquirindo os hábitos desportivos que desde a ruptura do tendão tinha abandonado. Inscreveu-se no ginásio onde participava em algumas aulas de grupo e tinha um “personal trainer” para recuperar a massa  muscular que parecia ter saído pela porta por onde a idade entrava. Porém os treinos eram penosos. Cansava-se demasiado, o que atribuía à relativa inatividade em que se tinha deixado cair, mas também aquelas manchas do tronco e membros agora pareciam maiores. A sua tonalidade era mais escura e tinham um aspecto descamativo. Não estava melhor!

Em casa, com o portátil procurou pelo “Doutor Google” sobre possíveis causas para manchas vermelhas. Conseguiu identificar uma longa lista de causas, algumas com nomes muito mais aterradores que o aspecto, noutras, o nome sugeria a mesma gravidade. Sentiu-se perdido. Procurou então por alergias e encontrou imagens parecidas com o que apresentava. Falavam de urticária e dizia a legenda que leite, frutos secos, marisco, frutas e muitos outros alimentos causavam alergia. Praticamente tudo o que comesse podia dar alergia! Será que teria de ficar de jejum dois ou três meses para ver se as lesões passavam? Se não comesse nada durante uns meses provavelmente ficava sem lesões, mas não haveria Adão para o comprovar. Viu na longa lista que a maçã poderia ser uma causa. Sendo ele Adão ganhou-lhe aversão e nunca mais lhe tocou. Mas a “urticária” persistia! Tinha dito o farmacêutico que se as lesões não passassem dentro de dias que deveria procurar o médico de família. Médico de família? Ele nem família tinha! E não fosse alguém dizer no Centro de Saúde que não havia médicos para singulares, recorreu ao hospital onde tinha sido operado anos antes.

O edifício era o mesmo mas agora o local era muito mais cosmopolita. A azafama era grande. A sua primeira impressão foi que era um negócio infalível. Quem não estaria disposto a pagar para ter “mais saúde”. Aquilo não era um hospital, era uma venda de saúde e sonhos! Um negócio infalível! Entorpecido que estava com os seus pensamentos dirigiu-se ao balcão para explicar o que pretendia. Do outro lado estava uma funcionária impecavelmente fardada que lhe disse num sotaque de uma “América latina” que não soube localizar – se não tem consulta marcada, o melhor é ser atendido por um clínico geral no serviço de urgência. Acedeu! A sua “urticária” incomodava-o há mais de um mês! Estava na altura encarar a doença como algo não passageiro.

Não demorou muito pela consulta e foi atendido por um médico cuja idade e anos de experiência davam para distribuir por três ou quatro. O médico fez-lhe as mesmas perguntas que lhe tinham feito na farmácia, ou as que os seus amigos faziam quando confidenciava o problema, ou quando no “Doutor Google” entrava em “urticaria” / perguntas frequentes. Tinham todos “estudado” pela mesma cartilha. Porém, se tudo aquilo lhe parecia mais do mesmo, aquele médico mais velho, disse-lhe algo que pareceu fazer sentido. Se as lesões não davam “comichão” e se tinha tomado os anti-histamínicos, ainda que irregularmente, e se estes não tinham tido qualquer efeito, não devia ser uma “alergia” vulgar. Para além de insistir numa mudança no estilo de vida, como se mudar os hábitos de décadas fosse tão fácil como mudar de roupa interior, disse-lhe o médico que necessitava de fazer um “estudo de intolerâncias alimentares” para ver quais os alimentos que o estavam a prejudicar. Era a única maneira. Pareceu-lhe lógico e aceitou o repto. Fazer a análise e a marcação de nova consulta seria o caminho.

Logo à saída marcou a consulta. Como tinha um bom plano de saúde julgou que para realizar os exames era só aparecer em jejum. E não, não era! Algumas análises podiam ser realizadas sem validação prévia pela companhia de seguros, mas outras necessitavam de autorização e havia uma outra que a seguradora tinha recusado a comparticipação. Esta não comparticipava o “estudo das intolerâncias alimentares”, se o mesmo não fosse solicitado por especialista em doenças alérgicas. Este exame custava perto de 500€. Já andava com aquelas lesões há quase dois meses e não se sentia bem, andava mais cansado que o habitual. Achava que a ansiedade da doença o estava a prejudicar. Não havia que hesitar, a análise era para fazer! A sua “fé” no liberalismo e na regulação dos mercados era inabalável, mas agora! Quem sabe, talvez tivesse tido azar!

Com as análises e os exames complementares em mão foi à consulta marcada na esperança da porta do consultório ser também a da solução do problema. Porém, a consulta foi dececionante. A médica que o viu era uma jovem recém-licenciada. Fez-lhe as perguntas que já nem a curiosidade de quem lhas fazia lhe atenuava a irritação, e assim lá foi respondendo pela negativa a quase tudo o que lhe era perguntado. Não, Não, Não … ninguém lhe perguntava se queria livrar-se daquilo, estava ansioso por dizer um sim, sim quero ficar como antes, quero regressar ao estado transitório de saudável. Mas, não, dali não vinha qualquer solução. Muita conversa, muitos bons conselhos sobre como ter uma vida saudável. Se não fosse sentir-se doente teria achado tudo aquilo era paternalista e intolerável. Porém, aquelas malditas lesões pareciam estar a aumentar e agora decididamente com aspecto mais descamativo. Para além disso sentia-se mais cansado, quase sempre sonolento de dia e à noite com dificuldade em dormir. Estava-se em setembro e achava que as noites estavam mais frias, mas durante a noite suava desconfortavelmente. Estava mais fraco, mais cansado, tinha menos apetite, tinha perdido peso. Tentou explicar à médica de clínica geral que estava preocupado, que sentia que algo não estava bem, mas ela tranquilizou-o, assim ela pensou, e disse-lhe que não se preocupasse pois as análises estavam bem! Contudo, lá lhe sugeriu a clínica geral, as lesões deveriam ser observadas por um dermatologista.

Conseguiu uma vaga de dermatologia ainda nessa semana por ter havido uma desistência. Tinha tido sorte, a espera pela especialidade costuma ser de meses dependendo do especialista! Mas seria uma consulta efectuada por um médico que não tinha acordo com nenhuma seguradora.

O dermatologista que o observou pareceu-lhe competente. Fez-lhe as perguntas que recorrentemente o irritavam, mas depois pediu-lhe para se despir, algo que ainda ninguém tinha feito e, com uma série de luzes e equipamentos que lhe pareceram lupas passou a observar cada cm2 pausadamente como se esticasse a pele para preencher os 30 minutos de consulta e os 180€ que teria de pagar. Mas a saúde, não tem preço! No final disse-lhe que havia 3 ou 4 sinais suspeitos que deveriam ser removidos. Quanto às lesões que ali o tinham levado, zombou das opiniões anteriores e disse-lhe que poderiam ser de psoríase! Psoríase, doutor? Que raio é isso, perguntou Adão sempre com receio de ter algo “canceroso”! Afinal, nestas coisas é sempre preparar o espírito para o pior e esperar pelo melhor. Psoríase, meu caro Adão Ferreira, é uma doença de pele que se associa por vezes a outras do sistema imune. Não é infeciosa nem oncológica, há uma predisposição familiar e a expressão pode remeter-se exclusivamente à pele, mas também pode atingir outros aparelhos, nomeadamente as articulações. De qualquer forma, lá lhe foi dizendo o competente, e caro, dermatologista, a apresentação da sua doença é algo atípica pelo que será necessário efetuar uma biópsia enquanto aproveitamos para tirar os sinais que lhe mapeei. Adão deu o seu consentimento e a pequena cirurgia ficou marcada para finais de outubro. Entretanto, tinha de repetir algumas das análise que fizera no mês anterior.

Marcou a colheita sanguínea, mas quando aguardava pelo dia dos exames recebeu uma chamada do hospital indicando-lhe que a companhia de seguros tinha recusado a comparticipação das análises pois eram basicamente as mesmas que tinha efectuado no mês anterior. Para resolver a situação teria de solicitar ao dermatologista um relatório que fundamentasse a repetição dos exames. Perguntou então qual seria o custo das análises e dado ser equivalente ao da consulta, fez as contas e decidiu-se.

Quanto à biópsia e remoção dos sinais foi informado que o seu plano de saúde não cobria esses actos sem que os mesmos fossem justificados pelos canais apropriados. Os canais apropriados? Que raio significava isso? Confuso que estava com as dificuldades que a seguradora lhe parecia levantar, optou por entrar em contacto com o seu mediador para que este lhe explicasse como proceder. Aí percebeu a magia do sistema liberal, um sistema cujas facilidades variam consoante a posição é de aderente ou de utilizador. Afinal, se calhar nestas coisas da saúde o liberalismo ….

Previdente que era teve a intuição que os “seguros de saúde” funcionam bem enquanto se é saudável. Precisava de uma alternativa. Recorreu ao centro de saúde da área de residência e perguntou como poderia ter um médico atribuído. Um médico de família, perguntaram-lhe? Sim, um médico de família ainda que a família não esteja prevista! Disseram-lhe então que não estando “grávida”, não sendo criança ou adolescente, não tendo doença crónica teria de ficar em espera até que alguém o incluísse na sua lista. Enquanto deu os dados e preencheu os formulários pode observar o movimento. Era quase todo ele de pessoas saudáveis, ou outras que pelo à vontade que apresentavam, deveriam estar habituadas aquelas andanças. Pareceu-lhe que eram todos utentes de um sistema e que por ali, doentes seriam poucos. Intrigado perguntou como funcionavam aquelas marcações e foi-lhe dito que em cada consulta os médicos marcavam as próximas de acordo com o que eram as linhas orientadoras de uma boa pratica de acompanhamento de saudáveis! Orgulhosa, a enfermeira que lhe atribuíram como eventual “enfermeira de família”, de pronto o esclareceu que em medicina é mais rentável a prevenção e modificação de hábitos e estilos de vida do que agir depois da doença se instalar. A coerência do sistema pareceu-lhe imbatível, até porque quando uma dada consequência não ocorre é impossível demonstrar que isso não resultou da intervenção. Além desta lógica imbatível, pareceu-lhe que o sistema era tão mais eficaz quanto mais intrusivo fosse. Aquela organização estava mais orientada para prevenção e cumprimento de objectivos de desempenho. Os doentes ficavam um pouco desprotegidos. Assim, lá deixou a inscrição para que lhe fosse atribuído um médico de família e saiu na expectativa de brevemente ser contactado.

Mas a doença não se compadece com quem é apanhado entre o sector privado e o público. O primeiro, se não recolhe garantias de pagamento rapidamente deixa o doente a descoberto, o segundo é sempre resistente em receber quem vem do sector privado. Há por ali algum ressentimento, assim pensou! Só que a doença não se suspende enquanto o jogo do empurra ocorre. Enquanto o impasse persiste a doença avança. E foi isso que aconteceu com o nosso amigo Adão Ferreira. A perda de peso ia-se agravando, à noite havia uma febrícula que por vezes o obrigava a mudar de roupa. Já não conseguia gerir adequadamente os seus negócios e deixou a gestão entregue a sócios e funcionários de confiança. Estava doente e ainda lhe faltava uma semana para a aguardada biopsia. Depois seriam necessárias mais duas ou três semanas para ter o resultado e começar o tratamento. Não se sentia capaz de aguardar tanto tempo, nem tão pouco, pelo menos do que tinha lido, o diagnóstico de psoríase lhe parecia explicar tudo. Estava doente e precisava de um “médico a sério”.

Recorreu então a um amigo dos tempos de infância que sabia trabalhar no hospital de Santa Maria. Não sabia a especialidade, mas talvez o amigo ou alguém que ele conhecesse o pudesse ajudar. Tal como receava, o seu amigo, urologista, de imediato lhe disse que aquele assunto não era para ele, mas que havia um no hospital, alguém de medicina interna que talvez o pudesse ajudar. Os necessários contactos não demoraram a ser estabelecidos e logo na semana seguinte, nos primeiros dias de novembro lá estava ele na tão aguardada consulta. Tendo nos últimos meses passado por mais médicos que em toda a sua vida, tinha adquirido um fino sentido critico sobre a forma como era atendido, o tipo de questões e a qualidade da consulta em geral. O questionário a que respondeu não diferiu muito do de outros médicos, ainda que nesta se tivesse ido mais ao pormenor do que eram os seus hábitos e vida íntima. Sentiu que havia alguma intrusão na sua intimidade, mas nunca achou que isso fosse despropositado ou não pudesse contribuir para a procura da solução. E se a forma como as perguntas iam sendo elaboradas, a achou com lógica e sequência, foi no exame físico que detetou as maiores diferenças. Nunca lhe tinham palpado axilas, pescoço, virilhas e abdómem, nunca lhe tinha realizado um exame completo. No final percebeu a importância e o que isso implicava.

Sentados num pequeno gabinete, com má luz, sem acesso à luz do dia, um gabinete desconfortável, despersonalizado e com um equipamento informático com soluços de funcionamento, esse médico, o Dr Manuel Quintas, mais velho que ele uns 15 anos, algo flácido e macilento, disse-lhe o que precisava de ouvir. Tinha uns gânglios aumentados no pescoço e nas axilas. O abdómen tinha o baço aumentado. A temperatura era de 37,8ºC e para o Dr Quintas, Adão tinha um aspecto pálido e macilento. Para o internista, pouco importava se as lesões cutâneas eram de eczema, seborreia ou psoríase. Isso era irrelevante, porque na sua opinião eram manifestação de algo mais sistémico e que era preciso investigar. E assim, para sua satisfação propôs-lhe uma série de exames que iria pedir com prioridade, e marcaria uma nova consulta para dentro de uma semana. Como para o especialista era necessário fazer exames serológicos para despiste de uma série de vírus onde se incluía os da SIDA, necessitava que a isso desse consentimento. Tudo simples, eficaz e profissional. Adão ficou surpreendido com a facilidade com que os exames eram pedidos e efectuados, tudo sem os rotineiros pedidos de autorização, dificuldades e logística a que estava acostumado no sector privado. Para Adão sair daquele consultório com tudo pedido e marcado foi um ponto de viragem na sua conceção liberal. Adão Ferreira afastava-se definitivamente da magia do liberalismo.

Para resumir um pouco uma história que  já vai longa, Adão foi fazendo exames e análises ao longo dos dias seguintes e dez dias após a primeira consulta teve o veredicto. Tinha SIDA e havia a suspeita de um linfoma que era necessário confirmar.

SIDA, eu? Perguntou Adão perplexo! Não sou “santo”, mas também não classificaria a minha vida como de devasso. SIDA, eu doutor, tem a certeza? Como é que a contraí? O internista procurou palavras que não fossem agressivas ou preconceituosas e lá lhe explicou: a SIDA, caro Adão, se quando surgiu era uma doença conotada com grupos de risco, atualmente sabemos que pode ser contraída fora desses grupos. É uma doença grave, mas atualmente tem tratamento eficaz. Adão não ficou muito convencido com a explicação! Eventualmente o preconceito era dele!

Depois de confirmados os diagnósticos, SIDA e linfoma, Adão Ferreira foi orientado para as especialidades competentes para iniciar o tratamento e hoje, volvidos 18 meses, as lesões da pele desapareceram, a carga viral é indoseável e o seu linfoma aparentemente está em remissão. Não se viu livre do acompanhamento médico, mas verdadeiramente queria continuar ligado a uma instituição a que se sentia grato. Meses depois de todos os tormentos, das dificuldades que teve, informou a seguradora do sucedido para a renovação da apólice. Quando lhe pediram o primeiro relatório, ele de imediato os mandou …

Adão Ferreira tinha abandonado as convicções liberais, agora percebia que há serviços que se não coadunam com negócio. Para o social tinha deixado de ser liberal, na economia, especialmente quando pagava impostos, essa “algia” surgia-lhe de novo, mas agora de forma mais branda.