Qualquer leitor, sobretudo se guloso de escândalos mediáticos, não resiste facilmente à leitura do artigo de opinião de Isabel Patrício, no Público do passado dia 21. Insurge-se a jurista contra a presença do Cardeal-Patriarca de Lisboa na cerimónia de abertura do novo ano judicial. Ignora, contudo, que o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, a pedido de vários juízes, procuradores, advogados e funcionários da justiça, antes presidira, como também é da praxe e decorre da liberdade religiosa e de associação que a Constituição da República consagra, a uma celebração eucarística comemorativa da efeméride.
Quando vi o sensacionalista título do artigo, “O STJ viola a Constituição”, até pensei tratar-se da versão nacional do ‘Me too’! Felizmente, não era o caso porque, neste texto, o ‘violador’, salvo seja, é o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), e a vítima a Constituição da República!
O escândalo da autora revela-se contudo injustificado, porque carente de fundamento jurídico. Com efeito, parece desconhecer a Lei n.° 40/2006, de 25 de Agosto, sobre as precedências do protocolo do Estado português, cujo artigo 38º reza – e nunca melhor dito – assim: “As autoridades religiosas, quando convidadas para cerimónias oficiais, recebem o tratamento adequado à dignidade e representatividade das funções que exercem, ordenando-se conforme a respetiva implantação na sociedade portuguesa.”
Quanto à dignidade, o Patriarca de Lisboa, por ser membro do sacro colégio cardinalício é, segundo a antiga terminologia, ‘príncipe’ da Igreja, ou seja, um dos seus principais dignitários. Se, como arcebispo de Lisboa, representa os vários milhões de católicos que estão sob a sua jurisdição, como presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, representa todos os católicos portugueses, que são, segundo o último censo nacional, aproximadamente 80% dos cidadãos nacionais, muito embora nem todos sejam praticantes. Portanto, a pergunta que deveria ter sido feito era: que lugar deve ocupar, quando convidado para actos oficiais, quem representa 80% dos portugueses?
É verdade que o n.° 2, do artigo 4º da Lei n.° 16/2001, de 22 de Junho, sobre liberdade religiosa, estatui que, “nos actos oficiais e no protocolo de Estado, será respeitado o princípio da não confessionalidade”. Porém, esta lei é anterior à já citada, que estabelece as precedências nos actos oficiais e corrige, na medida em que reflecte a mais recente intenção do legislador, o que sobre este aspecto se dispunha na lei sobre liberdade religiosa. Portanto, a lei em vigor não só prevê a hipótese de as autoridades religiosas serem convidadas para actos oficiais, como determina que lhes seja dado o tratamento devido à sua dignidade e representatividade.
Não se sabe bem por que razão a jurista em causa invoca a “Revolução de Abril de 1974”, pois o regime autoritário então derrubado não só não era confessional como até chegou a ter maçons nos dois mais altos cargos da sua hierarquia: Carmona, como chefe do Estado, e José Albino dos Reis, como presidente do parlamento. Os casos do bispo do Porto e da capela do Rato são exemplos, entre outros, das difíceis relações entre o Estado Novo e a Igreja católica.
Que o Estado português seja laico não quer dizer que não respeite as autoridades religiosas, como também o Estado, não obstante republicano, deve honrar os monarcas estrangeiros, sobretudo em visita oficial ao nosso país, bem como o Chefe da Casa Real e o seu herdeiro, na sua condição de representantes, actual e futuro, dos Reis de Portugal.
A deferência pelas autoridades eclesiais em actos oficiais decorre também do princípio da reciprocidade, dada a honra prestada, nas cerimónias religiosas, às autoridades públicas, não obstante a igualdade de todos os seres humanos diante de Deus e a proibição bíblica da acepção de pessoas (Tg 2, 1).
Se o Estado português é laico, laicas deveriam ser também as suas instalações oficiais, a começar pelo parlamento, abusivamente instalado no expropriado convento de São Bento. Se se quer uma total separação, devolva então o Estado à Igreja o património que lhe extorquiu em 1834, com o liberalismo, e em 1910, com a república.
Vale a pena recordar que o princípio da separação entre a Igreja e o Estado, não é laico, mas cristão: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é Deus” (Mt 22, 21; Mc 12, 17). É até especificamente católico, porque a igreja ortodoxa sempre teve, excepto no período soviético, uma relação de conivência com o poder político; e as igrejas reformadas, inglesa e escandinavas, têm, no respectivo monarca, o seu chefe máximo.
Se é verdade que nem sempre vigorou esta salutar separação entre o trono e o altar, qualquer historiador sabe, contudo, que a confusão entre o poder temporal e espiritual foi causa de mais prejuízos do que de vantagens para a própria Igreja católica, que viu, por esse motivo, muito condicionada a sua liberdade. A questão das investiduras é um bom exemplo de quão perniciosa foi, para a Igreja católica medieval, a interferência do poder político. Na China, a ingerência do Estado comunista na Igreja católica é, ainda hoje, motivo de inúmeras perseguições aos verdadeiros católicos chineses, obrigados a uma vivência religiosa praticamente clandestina e à aceitação de uma hierarquia ‘patriótica’, submissa ao Partido Comunista chinês. Por isso, ainda que possa parecer paradoxal, foi benéfica para a Igreja católica portuguesa a lei da separação de 1911, como muito bem provou o Cónego Doutor João Seabra, na sua brilhante tese de doutoramento.
Para além das razões de princípio, nomeadamente o evangélico, que exigem essa separação, acrescente-se que, tendo em conta a corrupção que grassa nas mais altas instituições políticas nacionais – por altura da abertura do ano judicial, foi detido um ex-governante, no estabelecimento prisional onde antes estivera preso um antigo primeiro-ministro, que ainda aguarda julgamento – a Igreja portuguesa pouco tem a lucrar com a sua presença em actos oficiais. Portanto, bem vistas as coisas, não foi o Estado que fez um frete à Igreja, mas foi o Senhor Cardeal Patriarca que, com a sua presença, dignificou a cerimónia em causa.
A laicidade defende, e bem, a justa separação entre o Estado e as diversas confissões religiosas. O laicismo, pelo contrário, promove a intolerância contra as religiões e tende à sua exclusão do espaço político e social. A laicidade promove a liberdade de ensino, no reconhecimento do louvável serviço público prestado pelos estabelecimentos confessionais, mas o laicismo pretende a supressão da liberdade de educação, pela eliminação das escolas de inspiração cristã. A laicidade reconhece o papel social desempenhado pelas instituições religiosas, nomeadamente católicas, enquanto o laicismo se opõe ao exercício da caridade cristã, que entende concorrencial com a sua deficiente segurança social. A laicidade respeita as individualidades religiosas e promove acções conjuntas em iniciativas assistenciais, educacionais e cívicas. O laicismo ignora e despreza as autoridades religiosas, não lhes permitindo a utilização dos meios de comunicação social estatais, nem qualquer visibilidade pública. Enquanto a laicidade, que tem fundamento cristão, é um princípio da Constituição da República Portuguesa, o laicismo é apenas uma ideologia fundamentalista, promovida por uma minoria sectária que, sem legitimidade democrática, quer eliminar da vida pública a religião com que 80% dos cidadãos portugueses se dizem identificar.
Num arremesso de humildade, a jurista que se permite acusar os conselheiros do STJ de ignorância e desrespeito pelo princípio da laicidade e pela lei fundamental, admite que talvez esteja enganada: é, sem dúvida, uma lúcida conclusão. Os juízes conselheiros não carecem de lições sobre laicidade, como acintosamente se sugere em “O STJ viola a Constituição”. E a viola?! Talvez o melhor seja mesmo metê-la, de vez, no saco.