Quando o primeiro-ministro nomeia um responsável para uma pasta ministerial fá-lo porque o indicado está alinhado com o programa do governo ou foi mesmo seu redator. Noutros casos a nomeação decorre da sinalização de alguém notável na área, ou das relações de confiança do primeiro-ministro. Mais raramente, mas possível, haverá um candidato óbvio, alguém que por um qualquer motivo não é nomeado, mas e apesar disso, reafirma o seu alinhamento com o projeto político, podendo mesmo sugerir potenciais nomes e disponibiliza-se para colaborar. Com um pé dentro e outro fora, incorpora a figura de “eminência parda”, alguém que permanece na sombra e nessa obscuridade manipule, insinue táticas, disponibilize a sua vasta lista de “contactos” e assim se torne “imprescindível”. Se a(o) ministra(o) não reconhecer esta presença como uma armadilha à sua legitimidade, mais tarde, vai seguramente colher os frutos da inocência com que exerceu o cargo.

Para a nomeação da Ministra da Saúde não sabemos ao certo quais os passos dados, não sabemos quem foi convidado, não sabemos quem teve o nome vetado, não sabemos quem recusou o convite, sabemos sim que Ana Paula Martins foi convidada e aceitou.

Tendo nas eleições legislativas sido um votante na mudança e sendo um conhecedor dos problemas da área, esperava que o setor fosse liderado por alguém com conhecimento, com habilidade política e com ideias de como emendar o rumo de um SNS moribundo. Esperava eu por um nome assim quando me apercebi que Ana Paula Martins surgia como forte candidata enquanto outros nomes, com pena minha, ou não tinham aceitado a nomeação ou viram o seu nome vetado e o convite nunca ocorreu. Para sossego meu, havia outros nomes que pareciam definitivamente descartados, ainda que na sombra se mostrassem sempre muito solícitos e com demasiado apetite pelo exercício do poder.

Fosse como fosse, Ana Paula Martins foi convidada, aceitou, tomou posse e não demorou muito para que os “talentosos”, surgissem recorrentemente nos bastidores e nas segundas filas. Esta visibilidade poderia ser tomada como apoio, mas também pode ser lida como um lembrete para que se algo correr mal haverá sempre candidatos “fresquinhos” e a babar pelas rédeas do poder.

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Ana Paula Martins tinha a experiência suficiente no setor para que o início de funções se fizesse com o beneplácito da dúvida. Mas se dúvidas houvesse, os primeiros meses de governação foram uma sucessão de trapalhadas, demissões sem sentido, nomeações de incompetentes, episódios inexplicáveis, “Programas de Emergência” ridículos e vergonhosos, enfim, a impressão com se fica é a de se ter transitado de um “ministério de gente do norte” para um outro sem “norte”. Sem norte, mas também  sem ideias, sem estratégia, sem coragem. Uma “casa a arder”, um ministério sem adultos, sem alguém que pense, decida e mande. Dito de outra forma, um ministério sem ministra(o).

À exceção da implementação das Unidades Familiares tipo C, uma medida alinhada com a correção de um dos maiores problemas do nosso SNS, i.e., o afastamento da Medicina Geral e Familiar do seu principal objetivo – tratar os doentes, porém, tirando este relampejo de provável fugacidade e logo contestado pelos resistentes do costume, os primeiros meses foram de um frustrante desapontamento e desilusão.

A título de exemplo sinaliza-se a demissão de Fernando Araújo, um afastamento intempestivo que resolveu ao PS dois problemas. Ao demitir/incentivar/aceitar a demissão de Fernando Araújo, Ana Paula Martins “lavou” as mãos a um PS que desde então se desresponsabilizou do estado caótico em que deixou o SNS, um legado do tripleto – Marta Temido; Manuel Pizarro e Fernando Araújo. Marta Temido já subiu aos céus e dos outros dois um deles arrisca-se a ser o próximo presidente da câmara do Porto. Ana Paula Martins e os “Talentosos” com que se rodeia, permitiram que o PS fizesse um “reset” às suas responsabilidades do atual estado do SNS e não me devo enganar se disser que se podem gabar de terem contribuído para a eleição de um socialista para a câmara do Porto, algo que estes não conseguiam há 24 anos.

Esperava-se que alguém vindo da área da saúde tivesse uma visão holística do mesmo e que paulatinamente fosse agregando vontades e energias em seu redor para que, pela e com a sua liderança, os problemas do setor fossem abordados. Ora o que se assistiu em nada se assemelha a uma liderança com objetivos. Ana Paula Martins surge, por eventual vazio de ideias, demasiado dependente dos em que se apoia. O caso da demissão de Fernando Araújo foi um bom exemplo. Um ministro competente indicaria e faria saber ao ex-CEO da DE do SNS quais as linhas orientadoras do ministério, quais as políticas, quais os objetivos e com que métrica estes deviam ser avaliados. E se o CEO se demitisse, a ministra dir-lhe-ia que não aceitava, dir-lhe-ia que este tinha poucos meses em funções, que não tinha tido tempo para se verem os resultados. Diria a Fernando Araújo que a Direção executiva do SNS era nascituro socialista e do próprio Fernando Araújo e que ela, Ana Paula Martins, estava decidida a colaborar e “partilhar do sucesso” da reforma. Era uma reforma que precisava de tempo, e tempo seria algo que não lhe seria negado. Dir-lhe-ia a Srª Ministra que não aceitava a demissão, que não permitiria que o “capitão” abandonasse a tripulação com um barco em águas revoltas e a afundar. Mas o que vimos foi exatamente o oposto.  Assistimos a uma Ministra que colocou Fernando Araújo numa posição insustentável, dando-lhe “ordens” em público, numa atitude de “bullying político” como se de um vulgar subordinado se tratasse. Não foi bonito de ver e Fernando Araújo não era um vulgar subordinado. Como é óbvio, foi um mau arranque e não há uma segunda oportunidade para uma boa primeira impressão. E se o início foi mau, continua a ser replicado nos inúmeros exemplos onde a politica da saúde e a estratégia do ministério é “externalizada” para as figuras de bastidores cuja competência assenta essencialmente no talento de se fazerem sentir necessários.

No mundo da ficção “O Talentoso Mr Ripley”, a personagem criada por Patrícia Highsmith é uma figura complexa, um anti-herói carismático, profundamente perturbado, alguém cujas ações são ao mesmo tempo fascinantes e repulsivas. Tom Ripley cresceu em circunstâncias difíceis o que contribuiu para um sentimento de inferioridade e um desejo incontrolável de poder a qualquer custo. Para atingir os objetivos a que aspirava, Ripley possui um encanto superficial e uma habilidade impressionante para se adaptar aos que o rodeiam e dessa forma recolher a confiança necessária às suas maquinações. É uma figura inteligente, calculista, amoral, alguém para quem os fins justificam todos os meios.

Nos bastidores do ministério da saúde há muitos candidatos a “talentosos”, porém há um que consegue ter o talento suficiente para justificar o epíteto e o presente texto. O personagem que nos bastidores do ministério da saúde, o nosso Talentoso in vivo, é alguém que tem no talento a sua característica principal. Não interessa como o adquiriu ou no que consiste. É talentoso e reconhecer-lhe esta capacidade deveria ser suficiente para que os interessados se acautelassem da sua perigosidade.

É alguém cujo curriculum está recheado de múltiplas nomeações, sendo cada uma delas justificada apenas pela nomeação anterior. É um talentoso! Não foi um notável aluno, não teve uma carreira académica brilhante, não é um profissional exímio, nada tinha de particular que se lhe assinalasse. Era uma figura cinzenta, pelo menos foi assim que o vi, alguém sem uma particularidade pela qual sobressaísse.

Tal como Tom Ripley, o nosso Talentoso nada tinha de particular que o tornasse visível ou assinalável até então. No caso da personagem de ficção, o repto lançado por Herbert Greenleaf para que Tom Ripley se deslocasse a Itália foi o momento em que a sua vida ganhou um novo sentido. Tom Ripley viu nessa demanda a oportunidade de reescrever a sua história, a oportunidade que espreitava e que magistralmente aproveitou sob a pena de  Patricia Highsmit.

Ao nosso Talentoso, não se lhe conhece o “triger” que lhe alterou o destino. Poderá ter sido a proteção de um familiar, poderá ter sido a “irmandade” a que consta ter aderido ainda no início da carreira. Fosse qual fosse o gatilho para essa carreira meteórica, o certo é que desde que ocorreu inúmeros foram os cargos que ocupou. Foi integrado em governos anteriores, chefiou autoridades reguladoras, dirigiu estabelecimentos públicos, é líder da sua classe profissional e, ao que consta, empenhou-se na sua nomeação para Ministro da Saúde. Tendo falhado esse objetivo, colou-se de forma tão “desprendida” à atual ministra que não há decisão, nomeação, ou opção em saúde que não passe pelo seu crivo ou surja sem o seu aval.

Controlou a comissão de “sábios” responsáveis pela elaboração do plano de emergência para o SNS, controla a atual Direção Executiva do SNS, controla a Ordem Profissional, controla a Ministra da Saúde, controla o Ministério da Saúde, controla a politica de saúde do atual governo, mas, e apesar de tanto poder, não responde por nenhum deles junto da Assembleia da República. Convenhamos, tal não é possível sem talento!

Faz parte do corpo docente de uma Universidade privada, a mesma que em França foi encerrada por “más práticas”. A mesma que em Portugal viu o seu antigo reitor e atual presidente do conselho de administração ser “obsequiado” com um julgamento à porta fechada. Agora e por inegável coincidência, esse estabelecimento de ensino prepara-se para um alargamento do âmbito educativo na área profissional do nosso Talentoso. Para atingir os seus intentos, essa instituição necessita do beneplácito do ministério e, ainda, que a Ordem Profissional se lhe não oponha. Falta-lhe o controlo do A3ES, mas provavelmente será algo que conseguirá ultrapassar numa qualquer “reunião da irmandade”. Se o procurarmos não o vamos encontrar a liderar nenhum processo nem nenhuma instituição, mas se espreitarmos por cima da primeira linha, lá o encontramos, logo atrás, sempre pensativo, sempre conhecedor que para se controlar nos bastidores não são necessárias grandes qualidades e virtudes, basta estar presente e ter talento.

Não vou aqui discutir se há ou não falta de profissionais de saúde em Portugal, interessa-me mais olhar para a qualidade dessa formação e quais os seus méritos. E quanto a este aspeto o que me parece evidente é que para alguns dos proponentes das novas escolas esta actividade é um negócio, eventualmente, mais rentável quanto menos se atender às condições de ensino. Para outros é antes do mais uma oportunidade de gestão de influências, tráfego de poder, distribuição de cargos e, não menos importante, uma oportunidade para se incluir no círculo de dependentes amigos e adversários. É mais um tentáculo da agência de influências gerida pelo nosso “Talentoso”.

À partida, ser-se empoderado não teria inconveniente se ao “Talentoso” lhe fosse reconhecida uma estratégia, um propósito, um projeto para cuja realização fosse indispensável o protagonismo e poder. Porém, o problema reside aqui, é que não se lhe conhece qualquer ideia ou projeto que não seja a do poder pelo poder. É um tacticista despido de estratégia. E quando a um “Talentoso” exímio na tática se lhe dá uma oportunidade ele aproveita-a reunindo-se de um exercito de subalternos e dependentes, e os projetos, as propostas desgarradas e sem fio condutor surgem (ver a miscelânea de medidas do Plano de Emergência), sem que ao Talentoso se lhe conheça uma estratégia, uma ideia, uma única que seja sua. Não tem!

O seu único objetivo é o poder e quem tem o poder como objetivo, não vai parar enquanto o não atingir. Quando Ana Paula Martins foi nomeada Ministra da Saúde o que se lhe pedia é que usasse o cargo para implementar a sua visão para o sector. A Ministra por timidez, talvez, denota um vazio de ideias e dada a sua insegurança e/ou vacuidade de estratégia, fica dependente dos subalternos em que se apoia. Para quem, como eu, a observa de longe parece não orientar nem elaborar qualquer estratégia, limita-se a ficar dependente.

Ora nesta relação de dependência, o nosso personagem parece ter com a Srª Ministra uma relação curiosa. Imagino que nunca lhe sugerirá nada diretamente. Dir-lhe-á que tem “indicações” para que se proceda desta ou daquela maneira. O nosso Talentoso nunca assume a tática como sua, dirá sempre que é apenas um “humildade” transmissor de diretrizes de um “poder superior”. Foi assim que compôs as secretarias de estado do Ministério da Saúde. Foi eventualmente por sugestão sua que destrataram Fernando Araújo quando este se deslocou ao ministério para entregar um plano de 600 páginas que lhe tinha sido “ordenado” em tempo record. A ministra não esteve disponível para o receber e encontrou mais útil uma visita a um hospital no Algarve na companhia do séquito de talentos. Foi assim que quando reuniu com os sindicatos médicos para resolver um dos mais graves problemas do SNS, a falta de atratividade para os seus profissionais, a Srª Ministra esteve presente 10 minutos para dar as boas-vindas e depois deixar a reunião entregue às recém empossadas e “imberbes” Secretárias de Estado. Foi eventualmente por tática sua que o novo CEO para a DE do SNS foi nomeado, foi assim que foi nomeado o grupo de “sábios” para a elaboração do plano de emergência do SNS. Sempre sugerindo que tudo o que propõe está de acordo com os desígnios dos “poderes superiores” de que ele é um humilde transmissor, imagino eu.

O plano de emergência para o SNS é um “nado-morto” muito fraco, o que é reconhecido pela quase totalidade dos profissionais de saúde. Não cabe nesta coluna analisar a utilidade ou a bondade do referido plano, mas não deixo de reparar que à medida que se aproxima a prestação de contas, o nosso “Talentoso” e a “comissão de sábios” surgem cada vez mais afastados do mesmo.

Quando tiveram de apresentar os resultados do plano, das 15 medidas apresentadas inicialmente como urgentes, os responsáveis do Ministério da Saúde contabilizaram sete medidas como efectuadas. Porém a comunicação de resultados foi de tal forma tão trapalhona que ainda hoje se não percebe exatamente quantas e quais as medidas que foram cumpridas. Sobra apenas a evidência que a referida “comunicação” devia ter como intenção ludibriar e esconder a incompetência. Mas quais as medidas que afirmam já ter sido concretizadas? Bom, e a título de exemplo, algumas eram puramente de natureza administrativa – a criação de um canal de atendimento direto para grávidas através da Linha SNS24 (SNS Grávida); e outras, como a implementação de um programa para redução da lista de espera para cirurgia oncológica, resume-se à apresentação de um programa, i.e., poeira para os olhos. Podia ser um objectivo simples e que todos entendessem, por exemplo: há seis meses estavam em lista para cirurgia oncológica X casos, e agora, seis meses depois, estão Y. Melhorou ou não? Uma avaliação honesta seria assim! Para um plano que em si era fraco, passados os 100 dias que estabeleceu como prazo, não conseguir claramente dizer o que se concretizou, é tentar esconder a incompetência, é ter um mau cumprimento de um mau plano, tudo mau demais!

Em setembro de foi igualmente noticiado um aumento de 40% em 2024 dos serviços de obstetrícia e pediatria encerrados quando comparado com igual período de 2023. Quem está no terreno, quem todos os dias lida com doentes complicados a principal impressão que retém do actual estado do SNS é a de que tudo se complicou nos últimos 10 anos e em particular após a pandemia. Porém, ninguém vai conseguir demonstrar que a ineficácia do sistema (SNS) resulta de um baixo investimento ou de parcos recursos humanos. Os sistemas complexos quando ultrapassam o ponto de sustentabilidade não mais se conseguem equilibrar e um aumento de recursos só vai reforçar a vertigem para a desgraça. O SNS atingiu este ponto e não adianta reforçar os investimentos, necessita sim é de uma cura de emagrecimento e de novos objectivos.

Na obra de  Patricia Highsmith, o talentoso Tom Ripley acaba por assassinar Dickie Greenleaf, cujo estilo de vida ambicionava e acaba por assumir a identidade do personagem que tanto invejava. Não tenho qualquer dúvida que o nosso “Talentoso” ambiciona o poder do cargo. Porém, ao contrário de Tom Ripley, não necessita assassinar ninguém, basta-lhe apenas deixar “que a coisa corra”, porque a titular encaminha-se para um suicídio “aparentemente” assistido. Precisa sim é de, perto do fim, surgir como alguém que tudo deu para o sucesso das políticas governamentais, para então,  “de consciência limpa” poder assumir-se como putativo “salvador”. O nosso “Talentoso” reinventou a parábola de S Lucas 15:11-32, agora para uma nova versão, “O Regresso do Pai Pródigo – o nosso Talentoso”.

Se estou desiludido? Bastante! Tanto que fica-me para já o receio inimaginável do mau desempenho me despertar alguma saudade dos tempos idos de Marta Temido. Impensável, mas, com talentos destes … !