“Se tu não és mongolóide, deves ter autismo
Não quero saber de bandeiras, preconceito, o teu racismo”
Assim começa a letra do recente single “Lendas” do rapper Tekilla, que pretende alertar e combater o preconceito e o racismo.
A ironia é evidente e, aparentemente, a desculpabilização também tendo em conta a falta de reações ao tema. Na verdade, pode dizer-se que foi só uma escolha infeliz de palavras para provar um ponto válido; que se percebe que ninguém queria fazer mal a ninguém, bem pelo contrário.
Mas será assim tão simples e superficial? Creio que este episódio, vivo e continuado – porque não encontro informação de que a letra tenha sido alterada –, nos merece uma reflexão um bocadinho mais séria.
Porque ainda que a intenção não fosse a de causar dano a ninguém, a verdade é que mensagem é violenta, profundamente discriminatória e, repetida numa música, perpetua uma injustiça.
Em palavras abreviadas, o que se diz é que é preciso ser “atrasado mental” para ser racista. A ênfase não está colocada no “racista”, mas antes na pessoa com deficiência. Ou seja, o autor da letra, que quer salvaguardar as vítimas de um estigma iníquo, nem percebe que está a usar sobre outros a mesma linguagem ignorante que gera o preconceito que afeta os seus.
Não pactuando, reformulo: os portadores de trissomia XXI ou de Transtorno do Espetro Autista, têm também longos anos de combate ao preconceito e desumanização. Têm-se batido pelo seu caminho próprio de conquista de equidade e de participação cidadã, plena de direitos e deveres.
As vítimas de discriminação em razão da cor da pele ou em razão da deficiência que transportam, partilham a dor das barreiras artificialmente erguidas e dos olhares menorizadores dos que, na verdade, não vêm limpidamente. Partilham lutas-irmãs.
Mas, estranhamente, para além da dor e da denúncia dos afetados, não me apercebi de indignações -irmãs, nem de ondas de solidariedade, nem assisti a debates sobre esta forma de preconceito em antena aberta ou na praça pública. Porquê?
Uma – e ao que sei, apenas uma – das lendas que aparece no vídeo-clip, o Carlão, apresentou o seu pedido de desculpas. Sincero e bondoso, sem sombra de dúvida. Dirigiu-o aos familiares das pessoas com deficiência e é impossível não perguntar porque não o dirigiu às próprias, reconhecendo a sua autodeterminação, o seu valor humano em total paridade com o nosso…
Será que este implícito é partilhado de forma mais coletiva do que gostaríamos de reconhecer e é por isso que não se gera indignação – da que não se esfuma no Twitter, mas cria impulso para a mudança?
Como dizia uma pessoa profundamente conhecedora: “lutar contra a discriminação com discriminação, anula toda a luta maior pela dignidade de todos os seres humanos. (…) A vossa luta é a nossa. As lágrimas são as mesmas. Ouçam as nossas. Não abram trincheiras onde não existem. Preferimos abraços”.
(para ti, por ti, juju).