Morreu, colhido por um dos seus touros no quintal de casa, aldeia de Quatro Esquinas, município de Guano, Equador, Baltazar Ushca, o último caçador de gelo dos Andes.
Os jornais de língua castelhana dizem “hielero”, sem tradução interessante para nós; os anglo-saxónicos chamam-lhe “ice merchant” – mercador, vendedor de gelo. Parece-me pouco para descrever o que Baltazar fazia. Do alto do seu metro e meio de estatura, dos 15 ao último dos 80 anos da sua longa vida, subiu duas vezes por semana a 4900 dos 6263 metros do Chimborazo, a fim de picar com uma picareta e cortar com um machado blocos de 20 quilos de gelo que, depois, enrolava em palha e carregava nas suas mulas, para vir vender ao mercado de Riobamba e outros da região.
Foi já a 11 de Outubro – a notícia durou um mês a chegar ao resto do planeta, mas chegou, e há algo de reconfortante num mundo que, apesar de tudo, ainda é capaz de se preocupar em registar e contar histórias destas. Não que Baltazar fosse um anónimo total – com o tempo, fizeram-se filmes e documentários sobre ele, tornou-se um símbolo dos Andes e, de algum modo, da causa ambiental – mas não se tornou, propriamente, uma estrela, a viver dos rendimentos da popularidade. Continuou a subir a montanha mais alta do mundo quando medida a partir do centro da Terra, mais alta 1,8 quilómetros do que o Evereste, que só lhe ganha se medido a partir da superfície do mar, e a vender “Água Baltazar” à porta do museu de Guano, nada mais nada menos do que o gelo natural do Chimborazo, segundo ele o mais saboroso e rico do mundo, derretido e engarrafado.
Baltazar começou a subir a montanha em 1959, ainda poucos ou nenhuns frigoríficos havia no Equador. Subia com o pai, a mãe e, depois, os irmãos mais novos, Gregório e Juan. Naquele tempo, eram cerca de 40 os mercadores a fazer a viagem, a fim de fornecer à população um bem fundamental para a conservação dos alimentos e a produção dos típicos gelados de frutas da zona. Depois, primeiro lentamente, a seguir mais depressa, o mundo mudou. Toda a gente tinha um frigorífico em casa, um congelador, a sua própria fábrica de gelo, mesmo que artificial, menos duradouro, menos refrescante, menos saboroso, menos bom para os ossos. O gelo tornou-se uma coisa absurdamente fácil e barata de obter. E, aos poucos, todos abandonaram o negócio, até os irmãos: Juan foi trabalhar na construção civil, onde se sofria menos e ganhava melhor; Gregório, ultraje dos ultrajes, para uma fábrica de gelo artificial. Só Baltazar ficou, como um Sísifo dos Andes, a subir e a descer duas vezes por semana e cada vez mais alto, porque o aquecimento global foi derretendo os glaciares, fazendo desaparecer o gelo macio e, aos poucos, era preciso ir aos 5000 metros, 5100, para o encontrar. Picando, cortando e carregando, sob risco de avalanche, ao frio e ao vento, para trazer um bem que lhe compravam cada vez menos e por preço mais baixo.
A vida na Terra mudou drasticamente nestes últimos 65 anos que Baltazar passou a subir e descer o Chimborazo, e tudo aponta para que só o continue a fazer cada vez mais e mais depressa. Por um lado, tudo é mais fácil e confortável, como lhe diziam os netos que não compreendiam porque ainda se sujeitava a um trabalho tão duro para ganhar tão pouco; por outro, bem podemos perguntar-nos qual de nós será o próximo Baltazar, último praticante de qualquer coisa que, um dia, o mundo considerará obsoleta ou que, simplesmente, deixou de ser possível na Terra. O último tipo que ainda escrevia os próprios textos. O último jornalista. O último e bizarro casal que ainda tinha filhos de forma biológica, artesanal.
A uns, a perspectiva do futuro entusiasma como só o prazer das descobertas pode fazer; a outros arrepia mais do que o gelo andino. Mas o que cada um de nós ande a fazer nesta Terra não pode nunca ser respondido pelo que está do lado de fora. Baltazar Ushca foi demasiadas vezes entrevistado, filmado, reconhecido ou, simplesmente, tratado como um bicho exótico para não saber que o que continuava a fazer possuía uma clamorosa relação custo-benefício. Ainda assim, fê-lo até ao fim, por ele, porque tinha de o fazer, por amor ou vocação. Porque, não importa o que façamos, um dia qualquer, virá sempre alguém ou algo que o fará mais depressa e mais barato. Mas melhor? E melhor para quem? No fim, não estará lá mais ninguém para responder a nós mesmos o que andámos a fazer com a nossa vida. E não me ocorre nada mais representativo dessa vida, do maravilhoso absurdo da existência humana, do que passá-la a subir e a descer até ao ponto mais próximo do Sol para apanhar qualquer coisa tão efémera como gelo.
Podemos dar as voltas que quisermos à cabeça. Fala melhor do sentido da vida o instante em que saboreamos o gelado.