Não tenhais medo.
São João Paulo II

O debate em torno do uso do açaime, vulgo máscara, é mais interessante do que à partida possa parecer: remete-nos para a discussão em torno do sonho moderno e racionalista com a ordem e a ciência, bem como para a escalada da suspeita em torno a tudo o que é do plano do humano.

O sonho com a ordem, com a possibilidade de ordenar a sociedade e o humano, não é exclusivo de uma visão utópica da sociedade, tipicamente de esquerda. Mesmo os defensores da liberdade parecem querer usar a liberdade para demonstrar a ordem. Não podemos, contudo, garantir que da liberdade nasça a ordem que desejamos. Podemos, por exemplo, associar a liberdade, a “rule of law”, a defesa da propriedade e outras bandeiras liberais a sociedades mais desenvolvidas do ponto de vista material, e de certa forma ordenadas por essa via. Contudo, e principalmente porque as tais “sociedades-modelo” têm Estados fortes, discernir o que é fruto da ordem estatal ou da ordem espontânea é próximo do impossível: avançamos por aproximação, associamos uma certa relação de causa-efeito à liberdade e ao desenvolvimento económico. Mas garantir um resultado ordenado é próximo do impossível, o que torna o apreço pela liberdade radical um fenómeno intelectualmente extraordinário e, do ponto de vista humano, um fenómeno que só se compreende com recurso ao transcendental: acreditar na liberdade como fundadora das sociedades sem equacionar o Transcendente é, para mim, teoricamente quase impossível.

Não é por isso de estranhar, que o liberalismo racionalista e não-transcendental (passo o termo) não escape à suspeita que fundamenta o mundo em que vivemos. Há uma relação de suspeita permanente do Homem com o próprio Homem, suspeita essa que a razão não resolve. Tudo parece assentar na premissa de que o indivíduo deve ser de alguma forma governado, sob pena de cairmos na absoluta anarquia. Mais (pior, talvez?): o indivíduo deve ser libertado de si próprio. Não é só o indivíduo em sociedade que deve ser governado. Não se trata apenas do risco, por exemplo, de um indivíduo poder explorar outros indivíduos; trata-se de uma suspeita permanente do indivíduo em relação a si próprio. Suspeita que tomou um caráter “científico” e, portanto, proto-religioso, com a entrada em cena de “coisas” como a psicanálise: como confiar no indivíduo se o próprio indivíduo não sabe, aparentemente, nada de si próprio? Qual besta, presa dos outros durante séculos e aprisionada a si própria por via da suspeita freudiana, ao indivíduo não restou muito mais do que a triste rendição aos ditames da hierarquia, da ciência, da tecnologia, de tudo o que possa ser percebido como estando para lá do indivíduo. O liberalismo racionalista e não-transcendental tem dificuldade em escapar a isto, tendo encontrado na “rule of law“, na rejeição do anarco-capitalismo (rejeição essa que não passa de um “liberdade sim, mas…”), etc, a escapatória perfeita para escamotear um racionalismo incapaz de lidar com o que é próprio do humano.

Parece-me que foi por aqui que o poder de encanto da religião sempre residiu: enquanto Deus esteve para lá do indivíduo, a suspeita sobre o próprio indivíduo e sobre os outros tinha uma “solução”, a qual, não resolvendo nada, garantia pelo menos algum sentido à vida e ao que é do humano. A perda de Deus decorrente dos encantos da modernidade eliminou tudo isto. Numa espiral obsessiva, o Deus em quem confiávamos porque estava para lá de tudo o que é humano, foi rapidamente substituído por outros deuses, os quais partilham com o Deus original o facto de não serem humanos (por isso são confiáveis). A ciência, o Estado e a tecnologia são exemplos das ditas “conquistas” da modernidade e que estão devidamente distanciadas do indivíduo. Essa distância é medida pela imparcialidade e objectividade, que funcionam como garantes da sua putativa moralidade.

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Por isso, as criações do indivíduo para governar o indivíduo, como é o caso do Estado, têm um caráter transcendente – o Estado está para lá do indivíduo, o que lhe confere uma dimensão moral; a ciência, mesmo sendo descoberta pelo indivíduo, parece referir-se a uma ordem natural que é externa ao indivíduo e por isso assume uma dimensão moral; e a tecnologia, a qual é criada pelo indivíduo, uma vez “dada à luz”, de imediato se liberta do indivíduo, o que também lhe confere um carácter moral. O liberalismo racionalista e não-transcendental não conseguiu libertar-se destas tentações. Por isso não tem dificuldade em apoiar o uso do açaime com base na “rule of law” (Estado) ou na ciência, conferindo ao uso do açaime uma racionalidade que é discutível, mas que quando alcança uma dimensão moral não resiste à tentação totalitária inerente à busca da ordem (sanitária neste caso) e à suspeita como fundadora da política (legislar sobre o uso de um açaime garante que todos o usam).

A causa da liberdade está por isso armadilhada pelo próprio liberalismo racionalista e não-transcendental, o qual vive em permanente suspeita de tudo o que é humano. Arrisco dizer que é isto o que na verdade distingue as várias facções liberais, as quais poderiam ser catalogadas de acordo com os níveis de medo dos outros indivíduos e de si próprios.

À parte as variantes do liberalismo, o liberalismo só faz sentido, parece-me, enquanto forma de interrogação das categorias modernas, as quais tendem a aprisionar o próprio sonho liberal: devaneios modernos como o primado da ciência, da tecnologia, da economia, ou o progresso infinito em direcção a uma qualquer utopia, seja essa utopia política, tecnológica, ambiental, económica ou social, devem ser constantemente questionados. E sem o indivíduo, com todas as suas limitações, ansiedades, medos, falhas e quejandos no centro, tal interrogação não ocorre e o liberalismo perde sentido, a fé perde conteúdo e a tradição desaparece.

Não é por isso de estranhar que, uma vez aqui chegados, dentro do liberalismo exista a tentação de substituir o que é do plano do humano pelo que é do plano do racional. A perda de relevância de tudo o que escapa à razão e a tudo o que dela resulta, como a ciência, é um mal que parece percorrer a esquerda e a direita.

A razão para tal, talvez a encontremos na perda de relevância das humanidades, as quais forneciam “soluções” para tudo o que é do plano do humano. Contudo, num contexto em que tudo o que não é científico não é considerado verdadeiro, o não-racional, o transcendental e a tradição são considerados secundários. E a substituição da Transcendência por transcendências criadas pelo próprio humano só agravou a suspeita fundamental em relação ao outro, em relação a nós próprios e em relação a tudo o que é realmente importante na vida: a ambiguidade, o mistério, o erro, a falha, a surpresa, o que não pode ser dito, etc.

Sucede que só aquilo que é do domínio do humano tem o potencial de gerar uma ordem livre. A ordem que nasce da liberdade só existe enquanto em relação com o não racional e com o transcendental: o mistério, a ambiguidade, a surpresa, o erro, a insegurança e a própria desordem, que é na verdade a única coisa que fundamentalmente caracteriza a vida. A forma de “ordenação tradicional” do amor é um exemplo disto mesmo. O que fascina no amor não é a possibilidade de um amor fiel e ordenado, mas a tensão geradora de acção que resulta da possibilidade da infidelidade. A certeza de um amor fiel não constitui amor, nem gera a necessidade de um “contrato” de casamento. Contudo, a possibilidade da infidelidade gera uma dinâmica na relação capaz de ordenar uma relação e de a sustentar no futuro. Aliás, uma promessa só faz sentido enquanto parte de um “contrato” que é passível de ser quebrado. Não faz sentido nenhum prometer o que sabemos nunca iremos quebrar. Por isso mesmo, o casamento é, na tradição cristã, uma promessa, um sacramento. Isto é, um mistério. Reparem na beleza do que é dito quando duas pessoas se casam: é uma promessa feita “na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza”; a promessa matrimonial assenta no mistério em relação à vida e não na certeza de uma relação duradoura, saudável e próspera. Se a promessa matrimonial fosse feita com base em certezas, tal promessa não era necessária, perdia o seu sentido. Só o mistério justifica a promessa.

Há outro exemplo histórico que sempre exerceu sobre mim algum fascínio: o da “Law Merchant”, a qual não era mais do que a codificação de práticas ancestrais de coordenação voluntária entre comerciantes internacionais, sem necessidade de qualquer tipo de intervenção externa aos próprios comerciantes. Os mercadores governavam os seus assuntos com base na “boa fé e na reciprocidade”. E é este tipo de categorias humanas, como “boa fé” e “reciprocidade”, há muito identificadas pelos antropólogos como sendo fundamentalmente humanas e comuns a todos (na medida em que estão identificadas em várias tribos, culturas, continentes e ao longo da história), que julgo ser necessário recuperarmos. Ainda no contexto da “Law Merchant”, em caso de disputa, a evidência oral sobrepunha-se, em várias circunstâncias, à evidência escrita; um acordo verbal era suficiente para fundar uma parceria privada; a transmissão de propriedade era informal/oral; os juízes, em caso de disputa, não eram juízes nem advogados – os juízes eram outros comerciantes pois só estes sabiam de comércio internacional.

À parte as minudências técnico-jurídicas que certamente estão por detrás destes arranjos legais não escritos e resultantes de uma descoberta progressiva da lei, o que importa aqui realçar é o facto de nas entrelinhas estar o indivíduo enquanto humano: a ordem jurídica na “law merchant” resultava da “boa fé” e “reciprocidade”, não de qualquer tipo de ciência mascarada de moral, muito menos dos ditames de um burocrata cujas regras ganham dimensão moral, não porque façam sentido, muito menos porque tenham base científica, mas somente porque a centralização burocrática é um dos mais poderosos mecanismos para distanciar o individuo daquilo que é humano.

Parece-me, por isso, que o liberalismo, incluindo a vertente económica do mesmo, não fazem sentido sem um tratamento exaustivo do desconhecido, do imprevisto, da surpresa, do risco, do erro, da falha, da sorte, “boa fé”, da “reciprocidade”. Em resumo: a liberdade não existe sem humanos. Não existe liberdade quando ordenamos a vida com base em certezas, mesmo que estas sejam científicas; a liberdade só existe quando somos confrontados com o mistério, a ambiguidade, a desordem e tudo aquilo que é do humano. Por isso, não há nenhuma razão para os liberais justificarem a sua oposição ao uso regulado do açaime. O liberal não tem que rejeitar o uso do açaime de per si, mas a regulação do uso. Nem o liberal tem que justificar tal posição com base na ciência, mas somente com base na liberdade. Afirmar a oposição ao uso de máscara não necessita de qualquer tipo de justificação para lá do “trato disso como me aprouver”. E se todos tratarem disso como lhes aprouver, até poderá suceder que, com base na simples boa fé e na reciprocidade, alcancemos alguma ordem, a qual pode ser melhor ou pior para a saúde pública. Mas não é ordenação do resultado que importa, mas somente a garantia de que a ordem nasce de uma verdadeira liberdade e espontaneidade. Infelizmente, a maioria das pessoas não vai entender esta posição. A culpa não é sua, mas de um sistema de ensino que desvalorizou as humanidades e o encontro com o transcendente, favorecendo uma visão racionalista do humano que nem sequer tem adesão à realidade. O apoio generalizado ao uso do açaime é só mais um sinal do fim, no Ocidente, da religião, da academia e da única coisa capaz de gerar uma verdadeira ordem espontânea: a tradição (enquanto forma civilizada de garantia da interrogação constante da realidade). Não tenhais medo…